Gaza: As pessoas não morrem de fome, mas de humilhação. Por Carmen Parejo Rendón.

Palestinos fogem de suas casas após ataques israelenses. Gaza, 20 de fevereiro de 2024.
Foto: Dawoud Abo Alkas / Anadolu / Gettyimages.ru

Por Carmen Parejo Rendón.

O filme “Et après…” (“E depois…”) do cineasta marroquino Mohamed Ismail termina com a citação “Os povos não morrem de fome, mas de humilhação”, na qual ele aborda a questão dos movimentos migratórios do continente africano para a Europa.

Na verdade, todos os movimentos populacionais em massa ao longo da história estão diretamente ligados a situações políticas e econômicas anteriores que explicam o desenvolvimento desses eventos. Muitas vezes, ignorar o fio histórico dos acontecimentos torna mais fácil, como diz o ditado, quando um dedo aponta para o céu, ficar olhando apenas para o dedo.

Nos últimos dias, o foco tem sido a situação humanitária em Gaza após cinco meses de guerra de extermínio de Israel no enclave. Entretanto, a situação humanitária crítica, assim como o próprio conflito, não começou em 7 de outubro de 2023.

Em 2012, as Nações Unidas apresentaram um relatório intitulado Gaza em 2020: um lugar habitável?, no qual advertiam que ou a situação mudaria ou o enclave entraria em colapso. Qual era essa situação?

Em primeiro lugar, devemos esclarecer que Gaza é uma cidade portuária histórica do Mediterrâneo que se desenvolveu de forma próspera e aberta, como tendem a ser as cidades portuárias, acostumadas ao movimento de vários comerciantes durante séculos, e que também foi considerada no início do século XX como um exemplo de coexistência entre judeus, muçulmanos e cristãos na Palestina. A criação da chamada “Faixa” é uma consequência direta do processo de colonização israelense, depois que centenas de palestinos foram forçados a fugir de suas casas e, com o fechamento da fronteira egípcia, Gaza acabou se tornando um refúgio que triplicou sua população original e passou a ser identificada como uma faixa, um pedaço de terra superlotado e sitiado do lado de fora.

A Palestina em termos sociais e políticos

Em 2006, ocorreram as primeiras eleições gerais na Palestina em dez anos, que deram a vitória ao partido político Hamas. A análise do motivo dessa vitória é muito extensa e profunda, mas há dois fatores-chave que são fundamentais e que servem para entender o que aconteceu depois e que levam diretamente ao cenário atual.

Por um lado, a desconfiança gerada na Autoridade Palestina que, após os Acordos de Oslo, atuou como mais um apêndice da colonização, algo que, não podemos negar, afetou diretamente a credibilidade do partido Al-Fatah. Por outro lado, o trabalho social do Hamas nos territórios palestinos economicamente degradados deu a ele uma base popular inquestionável. Nesse sentido, a desconsideração e a perseguição que se iniciaram contra o vencedor das eleições, considerado um grupo terrorista por Israel e alguns aliados internacionais, e a atitude de confronto do partido Al-Fatah – que levou até mesmo à divisão e à separação de fato dos territórios da Cisjordânia, governados pelo Fatah, e da Faixa de Gaza, onde permaneceu o governo do Hamas – serviram, por sua vez, para reforçar o papel do Hamas como interlocutor e ponto de referência na causa palestina.

Em vez de abordar os motivos da vitória do Hamas, ela foi usada como desculpa para impor um bloqueio sangrento que aprofundou ainda mais a degradação do enclave costeiro palestino.

Após a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) em 2015, um novo relatório sobre a situação na Faixa foi divulgado. Esse documento foi claro: oito anos de bloqueio israelense, apoiado pelo Egito, juntamente com três operações militares israelenses desde 2008, foram responsáveis pela situação degradada na Faixa. A degradação é descrita no texto como um fenômeno de “desdesenvolvimento” ou reversão do desenvolvimento ao “devastar a infraestrutura já enfraquecida de Gaza”.

O documento também observa que “é muito mais necessário que o povo palestino garanta seu direito humano ao desenvolvimento de acordo com a lei internacional do que a ajuda dos doadores”. Um direito ao desenvolvimento que é absolutamente inviável, devido ao bloqueio e à destruição sistemática da infraestrutura e dos ativos privados.

De acordo com dados do Banco Mundial, o bloqueio causou uma queda de 50% no Produto Interno Bruto (PIB) de Gaza somente entre 2007 e 2015; cerca de 100.000 pessoas, incluindo 40.000 trabalhadores agrícolas e 34.000 trabalhadores industriais – praticamente todo o setor privado – perderam seus empregos. O empobrecimento generalizado significou que, em 2010, 75% das famílias de Gaza já dependiam de alguma forma de ajuda humanitária.

“Apostando” na ajuda à Palestina

Uma vez que esse cenário de dependência da ajuda externa foi gerado, veio a segunda parte: jogar com essa ajuda para fins políticos. Como em 2012, quando, após uma campanha de bombardeio israelense, foi aberto um cenário de negociação entre o Hamas e o Al-Fatah, que foi boicotado sob a ameaça do Estado sionista de cortar a eletricidade e a água em Gaza se um acordo de governo de unidade fosse alcançado. Ou em 2018, quando Donald Trump decidiu cortar o financiamento dos projetos da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA) e da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) como parte de sua estratégia de cercar os palestinos. Mais recentemente, em janeiro, o financiamento da UNWRA foi novamente restringido em vários países, no mesmo dia em que o Tribunal Penal Internacional (ICC) tornou públicas suas medidas preliminares no caso de genocídio movido pela África do Sul contra Israel. A desculpa? Os trabalhadores da UNWRA estariam supostamente envolvidos nos ataques de 7 de outubro.

Nas últimas semanas, passamos de imagens horríveis de seres humanos desesperados sendo crivados de balas enquanto tentam acessar caminhões de alimentos para uma nova demonstração de cinismo e arrogância que combina o lançamento de bombas com o lançamento de alimentos do ar. O exemplo mais recente é a proposta de Joe Biden, em 7 de março, de construir um cais “temporário” em Gaza para distribuir suprimentos de alimentos na Faixa. Isso é algo do qual as Nações Unidas se distanciaram completamente.

Em 2020, o jornalista israelense Gideon Levy relembrou o relatório da ONU de 2012 e observou: “O Hamas é culpado. Como se eles tivessem imposto o bloqueio! Ou impedissem as exportações, as importações, os locais de trabalho. Ou eles (o Hamas) são os que atiram nos pescadores em Gaza, ou impedem que as pessoas com câncer recebam tratamento adequado.

Compensação urgente

A ajuda humanitária é entendida como uma forma de assistência diante de uma crise. Como as mesmas pessoas que levaram Gaza a essa situação vão administrar essa ajuda? O povo de Gaza não precisa de ajuda humanitária, ele precisa ser indenizado.

Uma compensação justa pelos danos causados a eles durante décadas, tanto pelas forças de ocupação de Israel quanto por seus aliados internacionais, e que facilite seu desenvolvimento econômico e o respeito por seus direitos humanos, sociais e políticos de autodeterminação.

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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