Desenvolvimento nacional, agricultura e indústria. Por José Álvaro Cardoso.

Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal

Por José Álvaro Cardoso.

O desenvolvimento econômico está longe de ser uma consequência natural de uma política econômica “adequada”. Os países que conseguiram se desenvolver o fizeram por ter encarado a luta pela soberania nacional e pelo desenvolvimento. Além de aproveitar, de forma estratégica, as “janelas” de oportunidades que se apresentam a cada conjuntura mundial específica. A experiência de Getúlio Vargas, nesse sentido, tem muito a ensinar, pois combinou conjunturas mundiais singulares, com uma compreensão superior dos processos políticos internacionais. Além, é claro, de uma visão de construção nacional soberana, independentemente da avaliação que possamos ter acerca dos governos de Vargas1.

No contexto mundial atual o Brasil se encontra em uma posição estratégica. O país se posiciona geopoliticamente distante dos principais conflitos globais e mantém uma postura de neutralidade, em um mundo cada vez mais conflagrado, o que lhe confere, objetivamente, uma vantagem rara. Além disso, o país tem também liderança na tal agenda global de sustentabilidade. Com uma matriz energética diversificada, incluindo fontes renováveis como a energia eólica, solar e hidrelétrica, o país se destaca por sua contribuição para a redução das emissões de carbono. Sem contar o fato de que o Brasil é um dos maiores produtores de biocombustíveis, o que o posiciona como um importante ator no mercado energético global. Além disso, o país se destaca pela posição de maior exportador de alimentos do mundo, com uma extensa área de terra disponível para agricultura. Essa posição privilegiada permite ao Brasil atender à crescente demanda global por alimentos, consolidando sua posição como um dos principais fornecedores internacionais.

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O país tem uma condição singular no mundo, que é poder contar com grandes quantidades de recursos naturais, distribuídos por vasta extensão territorial. Isso lhe garante um enorme potencial de realização de projetos de infraestrutura, que podem alavancar o crescimento econômico e facilitar a integração regional. Uma indagação que se pode fazer é: por que o Brasil não deve basear sua economia e exportações em comodities e matérias-primas, na medida em que poucos países do mundo têm tão grande capacidade de produzir tais mercadorias? É que, como mostra a história, nenhum país consegue proporcionar uma vida melhor para o seu povo, sem desenvolver o setor industrial e o setor de serviços mais sofisticado.

No seu livro “Como os países ricos ficaram ricos e por que os países pobres continuam pobres”, o economista norueguês Erik Reinert apresenta três paradoxos da agricultura:

1º: as crises de fome ocorrem principalmente nos países que se especializam na produção de produtos alimentícios. Quanto menor o peso da agricultura como porcentagem do PIB, menores são as probabilidades de crises de fome. Observo que o G20, por exemplo, que congrega os países mais desenvolvidos do planeta, produz 80% dos alimentos no mundo;

2º: ao longo dos últimos 60 anos a produtividade na agricultura cresceu mais do que em muitos setores da indústria. Um agricultor pode produzir hoje o que dez produziam há 80 anos. O paradoxo é que a agricultura mais eficiente do mundo é incapaz de sobreviver sem subsídios e proteção. No exemplo dado pelo autor, cada vaca suíça é subsidiada com um montante que significa quatro vezes a renda per capita da África Subsaariana;

3º: apesar da explosão de produtividade no setor agrícola, não diminuiu significativamente o número de pobres e famintos no mundo. Pelo contrário, no período recente esse número se elevou.

Como diz o autor do livro, essas três contradições, são aparentes e estão profundamente interligadas. Entender essa relação possibilita compreender por que nenhum país do mundo pode se tornar rico sem um setor industrial e um setor de serviços, sofisticados. Fica claro, também, porque os países subdesenvolvidos nunca se desenvolverão exportando alimentos para os desenvolvidos. Agricultura, Indústria e Serviços desempenham papeis diferentes nas economias nacionais e, de certa forma, suas dinâmicas seguem diferentes leis econômicas, quando se desenvolvem ou se retraem.

Reinert construiu um esquema interessante, no qual dividiu em dois tipos de atividades exportadoras, as boas e as ruins. O tipo de atividades exportadoras boas são aquelas ligadas a indústria manufatureira. As atividades exportadoras ruins decorrem de um tipo de produção que acontece quando a agricultura e a indústria extrativa são deixadas ao sabor da lógica do mercado. As atividades exportadoras boas têm características como rendimentos crescentes, preços estáveis, criam uma classe média, tem salários inflexíveis, as mudanças técnicas levam a maiores salários e geram grandes sinergias entre os segmentos da economia. As atividades exportadoras ruins, ao contrário, apresentam rendimentos decrescentes, preços extremamente flutuantes, “concorrência perfeita” (mas em produtos primários), preços extremamente flutuantes, trabalho geralmente não qualificado, criam estruturas de classes “feudais”, tem salários flexíveis (geralmente para baixo), mudanças técnicas tendem a diminuir o preço ao consumidor e criam poucas sinergias entre os setores da economia.

Conforme mostra o autor, o Plano Marshall, o plano de reconstrução da Europa, não foi apenas uma brutal injeção de dinheiro para países destruídos pela guerra de rapina, a II Guerra Mundial. Foi sim uma tentativa muito bem-sucedida de reindustrializar a Europa. Logo após a guerra, os EUA montaram um plano para desindustrializar a Alemanha, que foi o país “gatilho” da Segunda Guerra. Para punir a Alemanha, que supostamente havia provocado duas guerras mundiais, os países imperialistas que saíram vencedores da guerra definiram que ela iria se tornar um Estado agrário. De 1946 a 1947 foi colocado em prática o plano Morgenthau (Henry Morgenthau Jr, secretário do tesouro dos EUA entre 1934 e 1945), autor do plano. A partir de maio de 1945 (quando a Alemanha se rendeu), os equipamentos industriais foram retirados do país ou destruídos e as minas de extração mineral foram submersas em água e concreto.

Segundo Reinert, em 1947 os EUA já tinham percebido que a desindustrialização havia provocado rápido declínio da produtividade agrícola. Os conhecidos mecanismos de sinergia entre indústria e agricultura, funcionaram pela via contrária: na medida em que se destruía a indústria, caia também a produtividade da agricultura. Esse é um dado muito interessante. O próprio Morgenthau, em um relatório, divulgado em 18 de março de 1947, admitiu que a tentativa de transformar a Alemanha em um estado agrário poderia exterminar 25 milhões de alemães. A produção de matérias-primas e de bens manufaturados obedece a diferentes lógicas econômicas, razão pela qual os países que produzem matérias primas também necessitam de um setor industrial desenvolvido. Também por essa razão o neoliberalismo e a globalização foram tão destrutivos, especialmente para os países subdesenvolvidos e muito especialmente para os pequenos e pobres.

É fácil verificar essa sinergia entre agricultura e indústria, através de um dado muito direto. Os 5 maiores produtores agrícolas do mundo (pela ordem: China, EUA, Brasil, Índia e Rússia), além de produzirem muitos alimentos, tem também em comum a utilização cada vez mais, de tecnologias, visando aumentar a produtividade agrícola. Com a tecnologia, esses países ampliam a produção de alimentos, sem precisar expandir, na mesma proporção, a área cultivada.

Na China, que encabeça o ranking, a agricultura já é em boa parte, digital. A produtividade avançou muito com a modernização da cadeia de distribuição e a cadeia agroindustrial. A mecanização do setor agrícola no país já superou os 80%. Uma nova geração de máquinas vem sendo desenvolvida e testada: as máquinas autônomas, que não tem condutor, recebem suas coordenadas via GPS. Tais máquinas atuam com grande precisão e possibilitam que o operador gaste menos insumos e tempo. Os drones também têm destaque na agricultura chinesa. Com sistemas de Inteligência Artificial e sensoriamento remoto, aplicam defensivos de forma precisa e econômica.

Nos EUA, o setor agrícola, apesar de ser a segunda produção do mundo, emprega em torno de um milhão de pessoas, o que é ínfimo já que a força de trabalho norte-americana deve estar em torno de 160 milhões de trabalhadores (para uma população de 332 milhões). Atualmente, cerca de 95% dos agricultores norte-americanos usam alguma tecnologia da agricultura de precisão e mais de 30% investem significativamente nessa tecnologia. As grandes companhias mundiais de tecnologia e plataformas de distribuição, como Microsoft e Amazon, já entraram com força no setor de alimentos, o que está possibilitando a crescente integração entre as empresas que fornecem insumos agrícolas, como defensivos, tratores, drones etc., e aquelas que atuam com fluxo de dados e têm acesso aos consumidores.

A Agricultura brasileira, terceira do mundo, não fica devendo muito nessa área, usando também muita tecnologia. Se estima que a produção nacional gera alimentos para cerca de 10% da população do mundo, tendo a sua participação no mercado mundial saltado de US$ 20,6 bilhões para mais de US$ 100 bilhões na última década. Os especialistas preveem que a área plantada do Brasil irá crescer 13% até o final desta década. É possível que, entre os maiores produtores, esse potencial de expansão da área plantada do Brasil, seja caso único.

O uso de tecnologia tem sido estratégico para os países garantirem a oferta de alimentos à população. Por isso a existência de um setor industrial forte é o que caracteriza os países que possuem agricultura forte. Conforme demonstra o livro mencionado acima, quanto menor o peso da agricultura como percentual do PIB, menores são as probabilidades de crises de fome. A China nas últimas décadas retirou mais de 200 milhões de pessoas da fome, com uma série de medidas. Uma delas foi justamente se converter na “fábrica do mundo”. Converter-se em “fábrica do mundo” possibilitou à China que se tornasse também um grande “celeiro”. Não do mundo, mas pelo menos para atender sua população, que corresponde a mais de 18% da população mundial. Os países que produzem muitos alimentos e matérias-primas, como o Brasil, também necessitam de um setor industrial forte.

1 A Companhia Siderúrgica Nacional, é exemplo. Inaugurada em 1941, foi fruto de um debate sobre indústria siderúrgica nacional, que vinha desde a década de 1920. Em 1939, ano de início da Segunda Guerra, o governo brasileiro mantinha negociações, tanto com os Estados Unidos e Inglaterra, quando com a Alemanha nazista, visando, dentre outros, financiar seu projeto siderúrgico. Os EUA não queriam financiar a companhia, estavam interessados no minério de ferro fornecido pelo Brasil. Mas cedeu em função dos riscos de o governo brasileiro obter o empréstimo com o governo da Alemanha Nazista.

José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.
A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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