Por Cynthia García e Pablo Dipierri, Página 12.
Iván Saquicela, atual presidente da Suprema Corte de Justiça do Equador, antes de ouvir o caso de suborno contra o ex-presidente Rafael Correa, considerou as ações dos tribunais de primeira instância nulas e sem efeito, de acordo com um áudio vazado acessado pelo Página/12.
No entanto, Saquicela, então juiz de uma câmara criminal do tribunal superior, decidiu contra o ex-presidente quando o caso chegou ao seu tribunal. Então, como corolário de uma linha histórica que se repete em sua dinâmica em todo o continente, Saquicela recebeu a presidência da mais alta corte do Equador.
O áudio vazado
“Tanto a existência da infração quanto a suposta responsabilidade são muito diferentes da imputação inicial, que não existe mais, e, portanto, ele deveria ter pedido para justificar seus elementos e não o faz”, expressou Saquicela, atual presidente da Corte Nacional de Justiça do Equador, em 21 de junho de 2019, quando ainda era magistrado da mais alta corte. Sua objeção foi dirigida às ações da juíza Daniela Camacho e da promotora Diana Salazar em um caso que terminou com a sentença de oito anos de prisão contra o ex-presidente Rafael Correa, um punhado de funcionários de seu governo e empresários acusados de suborno.
A declaração de Saquicela foi feita dois dias depois de Camacho ter participado da audiência de 19 de junho de 2019, que resultou na reformulação das acusações e na decisão de prisão preventiva de Alexis Mera, ex-secretário jurídico de Correa, e María de los Ángeles Duarte, ex-ministra de Transportes e Obras Públicas. “Vamos analisar: o que diz o documento? Excelência, por favor, emita o mandado de prisão preventiva emitido em 19 de junho. O que foi em 19 de junho? O que Daniela (Camacho) responde? Eu não emiti uma prisão preventiva no dia 19. E se a senhora não a decretou, por que diabos ele (Mera) está preso?“, argumenta Saquicela em um áudio ao qual o Página/12 teve acesso exclusivo.
Na troca de palavras com o magistrado, ele responde que “se ele não ordenou, ele tinha que soltá-la imediatamente”, e Saquicela responde: “exatamente, isso é tudo. Então, por que ela (Duarte) está na prisão?
O processo que Saquicela estava questionando era conhecido como o caso “Subornos”, ressignificado como “Bochornos” (N. da T.: Vergonhas) pelos militantes da Alianza País com as coordenadas do lawfare e divulgado pela imprensa equatoriana como o caso “Arroz Verde”, um prato típico da região ao qual um dos corruptores havia recorrido para intitular o assunto de um e-mail enviado a um funcionário implicado. A investigação foi semelhante ao caso Lava Jato no Brasil e ao caso Cuadernos na Argentina. Tanto é assim que as provas foram plantadas por meio da redação de um caderno por uma das delatoras durante sua detenção, usando recibos e documentos apócrifos como suposta prova de recebimento de um pagamento a Mera, sem qualquer tipo de assinatura ou rubrica. De fato, a determinação de responsabilidade atribuída a Correa foi feita sob a figura da “influência psíquica”, em uma suposta irradiação da vontade de fazer com que outros cometessem crimes.
Em 2019, a Procuradoria Geral da República abriu uma investigação formal sobre o caso “Arroz Verde” e o chamou de caso “Subornos 2012-2016”. Em 2020, Salazar acusou vários funcionários públicos e ex-funcionários do governo de Correa de participarem do suposto esquema de corrupção, recebendo pagamentos para financiar a campanha eleitoral de Correa em troca da concessão de obras públicas. Em 2021, o julgamento começou na Corte Nacional de Justiça.
O processo foi repleto de irregularidades e etapas tragicômicas, como a preparação de testemunhas na Polícia de Quito e a subsequente suspensão da audiência em que elas iriam depor, porque essas testemunhas não se mostraram confiáveis para os acusadores. A audiência foi marcada em tempo recorde porque os oponentes políticos de Correa precisavam condená-lo antes que os prazos para sua desqualificação eleitoral expirassem ou, na falta disso, para que a notícia de sua condenação desmoralizasse seus partidários e Guillermo Lasso pudesse vencer as eleições.
A ligação com a Argentina e a perseguição à vice-presidenta Cristina Kirchner é inevitável, já que nesta semana a decisão da Suprema Corte local manteve a constitucionalidade da Lei do Arrepentido, em resposta a um recurso apresentado pelo ex-ministro do Planejamento Federal, Julio De Vido. No Equador, os holofotes se voltaram para José Conceição dos Santos, ex-executivo da Odebrecht no país tropical que confessou, em setembro de 2019, que a construtora entregou US$ 2,6 milhões para a campanha presidencial de 2013 do Alianza País e outros US$ 2,5 milhões para as eleições regionais de 2014. No entanto, ele não foi sequer acusado pela Procuradoria Geral da República.
Na gravação que foi enviada a este jornal, Saquicela observou que Camacho denunciou concussão de uma série de crimes, que vão desde suborno e tráfico de influência até associação ilícita, mas depois abandonou essa linha de argumentação e teve que reformular a proposta. “É óbvio que os elementos de convicção desses três, tanto da existência do delito quanto da responsabilidade alegada, são muito diferentes da acusação inicial, que não existe mais”, disse o juiz.
Quase dois anos depois, Saquicela ratificou o que o judiciário havia feito. Apesar de a defesa do ex-chefe de Estado equatoriano alegar que o juiz, cujo áudio agora vem à tona, e seus colegas Marco Rodríguez e Iván León, presidente do tribunal após a conturbada demissão de 16 magistrados por iniciativa do Conselho do Judiciário, nem sequer foram escolhidos para julgar o caso, os juízes endossaram a sentença contra Correa.
Condenar é a tarefa
Neste áudio vazado por uma pessoa que estava na reunião com o juiz Saquicela, a coisa mais grave que o magistrado diz é que a acusação inicial está sendo alterada para todos os outros crimes pelos quais ele é posteriormente condenado. Isso é o que os juristas chamam de princípio da congruência. Para simplificar: Correa e outros foram acusados de uma coisa e condenados por outra.
A gravação mostra o escândalo, a disposição de certos juízes de condenar por qualquer coisa, como o caso foi montado e depois validado pelo próprio Saquicela, construindo o caráter fraudulento desses processos de acusação para fins proscritivos.
Especialistas em direito penal disseram ao jornal Página/12 que esse áudio poderia representar um fato superveniente que poderia dar origem a um recurso para uma revisão de todo o caso Subornos.
Como corolário para destacar e ser entendido, no melhor estilo Sergio Moro no Brasil, que acabou sendo ministro de Jair Bolsonaro, o establishment equatoriano premiou Saquicela com a presidência da Corte de seu país em 5 de fevereiro de 2021.
A palavra de Correa
“Nós tentamos honestamente. Quando estávamos no governo, realizamos uma reforma judicial que foi um exemplo no mundo. Há publicações, relatórios. Infelizmente, podemos mudar a infraestrutura, os processos, mas não podemos mudar o coração do ser humano. Então, na primeira pressão, muitos juízes se venderam ao poder do momento”. Essa frase foi dita por Correa em uma entrevista para o programa La García, na AM 750, em 27 de março de 2023.
Correa, assim como outros presidentes da era progressista na América Latina, há anos vem denunciando a perseguição judicial, o lawfare e a proscrição.
No mesmo programa, em 4 de novembro de 2021, o líder regional se referiu à sentença no chamado caso Subornos, a mais grave das acusações contra ele. Naquela manhã de primavera em Buenos Aires, Correa foi entrevistado pessoalmente nos estúdios da AM 750. As infecções maciças por Covid estavam começando a diminuir, as vacinas estavam fazendo efeito e estávamos de volta à vida social.
A entrevista foi realizada sem máscara, mas ainda com os painéis de acrílico dividindo a mesa e os microfones da rádio em cubículos.
Lá, o ex-presidente equatoriano disse: “Tenho mais de 46 casos em aberto. Toda manhã eu me levanto para ver qual é o meu último caso. Mas agora, o mais grave é que eles me envolveram em um caso de suborno que nunca existiu. Eles me acusaram de ser o chefe de uma organização criminosa. Como não tinham provas, acabaram me condenando como instigador por meio de influência psíquica. Esse julgamento foi realizado no meio da pandemia, quando todas as audiências haviam sido suspensas, exceto aquela.
“E a última etapa, na cassação, levou 17 dias úteis para que a sentença ficasse pronta, um ou dois dias antes de 18 de setembro de 2020, quando o registro das candidaturas estava previsto, para me impedir de ser candidato e até mesmo de voltar ao país.
“Porque, modéstia à parte, se eu estivesse no país, mesmo sem ser candidato, ganharíamos a eleição. Eles ganham com trapaças. Lasso é um presidente que é o resultado de uma trapaça.”
Correa estava se referindo às eleições de abril de 2021, em que o candidato anticorreísmo do movimento conservador CREO e aliado do Partido Social Cristão, Guillermo Lasso, venceu seu rival correista Andrés Arauz no segundo turno por mais de 53% dos votos.
A linha do tempo que estamos marcando não é coincidência: a sentença contra Correa no caso “Subornos” data de abril de 2020. Em setembro do mesmo ano, um tribunal de cassação confirmou por maioria de votos a sentença de oito anos contra Correa e um grupo de colaboradores. Desde então, Correa está proibido de retornar ao seu país.
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