Por Schirlei Alves e Marcella Semente, em Gênero e Número.
“A minha mãe me treinou a não gritar para não ser discriminada no hospital”. Essa foi a resposta que a professora do curso de Ciências Sociais e pesquisadora do Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Fronteiras (Geifron), na Universidade Federal de Roraima (UFRR), Márcia Maria de Oliveira, recebeu de uma menina indígena, de nacionalidade venezuelana, que recém havia completado 14 anos.
A adolescente deu à luz um bebê por parto vaginal, em completo silêncio, no Hospital e Maternidade Nossa Senhora de Nazaré, em Boa Vista (RR). A cena, que chocou a professora, foi presenciada em agosto de 2022, durante uma pesquisa de campo com imigrantes.
Levantamento feito pela Gênero e Número revela que Roraima lidera o ranking de taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos no Brasil, seguida por outros quatro estados da região Norte: Amazonas, Acre, Pará e Amapá. Entre 2017 e 2021, Roraima foi o único estado brasileiro que não apresentou queda na taxa de fecundidade entre meninas nessa faixa etária.
A taxa é calculada a partir de dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), do Ministério da Saúde, e da Projeção de População (IBGE).
É provável que a história da menina que pariu em silêncio faça parte da estatística. Mas a realidade da maternidade na infância não cabe apenas às estrangeiras. Em Roraima, estado onde indígenas representam 11% da população, 51% das meninas que foram mães com 10 a 14 anos, entre 2017 e 2021, eram indígenas.
Aspectos culturais e de tradição precisam ser levados em consideração em casos de gravidez precoce em comunidades indígenas – tanto brasileiras quanto estrangeiras – alerta a professora da UFRR. No caso da menina venezuelana, pesou ainda sobre seus ombros a necessidade de garantir moradia à família no Brasil.
De acordo com a Lei de Migração (13.445/2017), o visto ou autorização de residência para fins de “reunião familiar”, ou seja, para todos os membros da família, pode ser concedido ao imigrante que for cônjuge ou companheiro de um brasileiro; para filho de imigrante beneficiário de autorização de residência ou que tenha filho brasileiro ou imigrante beneficiário de autorização de residência; ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; ou que tenha brasileiro sob sua tutela ou guarda.
Aborto legal
Por lei, crianças e adolescentes menores de 14 anos que tenham sido submetidos a atos libidinosos ou relações sexuais são vítimas de estupro de vulnerável, o estupro presumido, uma vez que não possuem capacidade para consentir. De acordo com a legislação brasileira, elas também deveriam ter acesso ao serviço de aborto legal.
Joici Mandulão, do povo Macuxi-Wapixana, apoiadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) e médica de Família e Comunidade em uma unidade básica de saúde (UBS) de Roraima, já atendeu meninas grávidas.
Mandulão conta que os casos são encaminhados para a rede de proteção, o que envolve o Conselho Tutelar e os serviços de assistência social. Caberia a eles, então, o oferecimento da denúncia de estupro de vulnerável, mas a médica não fica sabendo dos desdobramentos após o atendimento na UBS. A profissional também revela que nunca recebeu orientações sobre o serviço de abortamento legal.
“Nunca tivemos nenhuma orientação, não tem protocolo na atenção primária. Se tiver, [ocorre] na atenção secundária: emergência do hospital, maternidade, hospital da mulher. Se suspeitarmos de abuso, encaminhamos para o hospital da criança”, relata.
O desdobramento mais comum, portanto, é o encaminhamento para o pré-natal, o que significa que a menina receberá assistência em saúde para manter a gestação. Mandulão observa que boa parte das meninas e mulheres indígenas que atende na unidade básica de saúde têm como parceiros homens não indígenas.
A médica acredita que as relações com pessoas de fora da comunidade ocorram tanto em função das invasões aos territórios indígenas quanto pelo contato em áreas urbanas, quando elas já saíram das comunidades.
O Ministério da Saúde informou que trabalha na revisão de portarias e normas relacionadas à atenção ao aborto e na pactuação com estados e municípios para garantir o acesso a esse direito.
Uma das portarias que já foi revogada é a 2.561/ 2020, assinada durante o governo de Jair Bolsonaro, que previa a necessidade da equipe médica notificar a autoridade policial em caso de solicitação de aborto por estupro. Segundo o MS, a portaria dificultava o acesso ao procedimento para casos previstos em lei.
A portaria também exigia que a vítima descrevesse detalhadamente o crime para que os profissionais de saúde pudessem redigir um termo de relato circunstanciado para ser entregue às autoridades policiais, além de preservar possíveis evidências do crime como prova.
A vítima ainda deveria assinar um termo de responsabilidade que continha advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica e de aborto, caso não tivesse sido vítima de estupro. A equipe médica também deveria redigir um parecer técnico sobre a condição da paciente e esclarecer a vítima sobre os supostos riscos à saúde, caso o aborto fosse realizado.
Gravidez na adolescência diminui, mas entre meninas negras a queda é de apenas 3,5% em três anos
Estupros em abrigos
Para compreender a alta taxa de fecundidade em Roraima, a reportagem ouviu lideranças e especialistas locais. Além dos aspectos culturais que fazem parte do contexto no qual meninas indígenas estão inseridas, que mudam de um povo para o outro, as indígenas que migraram da Venezuela para o Brasil, tendo Roraima como porta de entrada, estão sujeitas a uma série de violações de direitos. A realidade migratória, na opinião das especialistas, pode ter contribuído para a alta taxa de fecundidade no estado.
O marco da imigração venezuelana foi novembro de 2015, quando indígenas, expulsos por grandes empreendimentos, começaram a imigrar. Diferente do Brasil, os povos indígenas da Venezuela não possuem seus territórios demarcados, contam apenas com a possibilidade de uso da terra.
A professora Márcia Maria de Oliveira, que trabalha com a questão migratória, já ouviu vários relatos de estupros de meninas e adolescentes dentro dos abrigos onde imigrantes estão alojados.
As mães relatam que não deixam mais as meninas caminharem sozinhas até o complexo de banheiros coletivos (cerca de 800 metros de distância) porque elas são estupradas no meio do caminho”, conta a professora.
Os relatos foram colhidos no Abrigo Rondon 3, em Boa Vista, e nos abrigos de Passagem de Pacaraima e Janokoida, em Paracaima. Segundo o que Márcia Maria ouviu, os estupros foram praticados por pessoas abrigadas (familiares e não familiares) e também por agentes responsáveis pela segurança. De acordo com a professora, é comum ouvir que determinadas crianças são “filhas da boina”, ou seja, de agentes ligados ao Exército.
Ainda segundo a professora, as violências não são denunciadas por medo de represálias. Os relatos estão sendo incluídos em um relatório de pesquisa do GEIFRON/UFRR.
A Casa Civil da Presidência da República, órgão responsável pela coordenação da Operação Acolhida, respondeu que “não há registro, até o momento, de crimes sexuais cometidos por servidores civis ou militares que sejam de conhecimento do Comitê Federal de Assistência Emergencial (CFAE)”.
Segundo o órgão federal, os crimes que eventualmente ocorram nas dependências da Operação são encaminhados às autoridades policiais competentes e aos equipamentos públicos de proteção social. “O CFAE considera inadmissível a existência desses delitos nas dependências da Operação e orienta que qualquer suspeita dessa prática, cometida por qualquer pessoa, seja levada imediatamente ao conhecimento das autoridades e informada ao Comitê”, afirmou por e-mail.
A taxa média anual de estupro de meninas entre 10 e 14 anos em Roraima, estimada a partir de dados do Sinan entre 2017 e 2021, é de três a cada mil meninas, a terceira maior do país, atrás apenas de outros dois estados do Norte: Tocantins e Acre.
Nelita Frank, uma das fundadoras do Núcleo de Mulheres de Roraima (NUMUR) e ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), destaca mais uma situação de violência a qual as imigrantes venezuelanas são submetidas: a prostituição.
O problema ocorre especialmente com as meninas que ficam fora do abrigo. O esquema de segurança, bastante militarizado, contribui para a situação, uma vez que os atrasos no retorno para o abrigo, por menores que sejam, não são permitidos. Segundo Frank, as pessoas que chegam atrasadas para o horário de recolhimento (22h) dormem na rua.
“É muito comum, em uma avenida que tem aqui perto de uma feira, meninas em situação de prostituição. Eu fiz uma ronda lá algumas vezes porque tinha muita notícia de meninas na rua, os carros passavam e elas acabavam indo. E os programas são feitos em condições muito precárias, por R$ 10, R$ 15, R$ 20”, lamenta.
Geografia e falta de acesso a serviços
Com uma extensão territorial imensa, de 3,8 milhões de km², e densidade demográfica de apenas 4,12 habitantes/km², a região Norte possui características geográficas que dificultam o acesso aos municípios no interior dos estados e às comunidades isoladas. Esse aspecto precisa ser levado em consideração ao observar os indicadores sociais, aponta Eunice Guedes, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e uma das coordenadoras nacionais da Articulação da Mulher Brasileira (AMB).
“Eu posso levar até seis horas de barco para chegar a um vilarejo dentro do próprio município. O deslocamento entre Belém e Santarém, por exemplo, depende de avião ou dois dias de barco. Para ir de Santarém para outra cidade na mesma região, pode levar 14 horas de barco. Existem áreas que a gente só consegue acessar por avião”, explica.
A complexidade de acesso aliada à falta de investimento em infraestrutura que possibilite o acesso a serviços básicos como saúde, educação, assistência social, justiça e internet tornam a população ainda mais vulnerável. Na avaliação de Eunice Guedes, há pouca retaguarda de serviços essenciais para atender os moradores da região Norte.
Socorro Baniwa, da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas Makira E’TA, é uma das lideranças indígenas que atua junto às mulheres das comunidades no sentido de empoderá-las e contribuir para o acesso a informações sobre saúde, direitos reprodutivos, violência de gênero e outras pautas. “Agora, a gente tem uma parceria com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) para trabalhar a questão da proteção com jovens e adolescentes”, conta.
O trabalho de conscientização feito com adolescentes e jovens relacionado à sexualidade, gravidez precoce e métodos contraceptivos ocorre em áreas urbanas e nas comunidades mais isoladas do Amazonas. Apesar dos desafios, tanto financeiros como de abordagem do tema, as mulheres da rede têm articulado atividades nos territórios para alcançar o maior número possível de mulheres.
Contrapontos
A reportagem enviou e-mail ao Ministério dos Povos Indígenas no dia 15 de maio para saber se existe alguma estratégia ou política pública para reduzir a maternidade infantil entre meninas indígenas e para proteger indígenas imigrantes. A assessoria de imprensa informou que está buscando as informações, mas que ainda não conseguiu responder por causa da grande demanda de pedidos. O espaço continua aberto.
A reportagem também entrou em contato com as Secretarias de Saúde dos cinco estados da região Norte que estão no topo do ranking da taxa de fecundidade entre meninas de 10 a 14 anos. Até a publicação da reportagem, apenas o Pará respondeu.
A Secretaria de Estado de Saúde do Pará informou que o Hospital Santa Casa de Misericórdia realiza o serviço de aborto legal “após decisão judicial”.
No entanto, não é necessária decisão judicial para realizar o procedimento nas três situações permitidas por lei no Brasil: quando a gravidez oferece risco à vida da gestante, quando é resultante de estupro e em casos de anencefalia fetal.
A Secretaria também afirmou que segue a Política de Atenção ao Adolescente e Jovem do Ministério da Saúde, com ações de fortalecimento da atenção primária e capacitação dos profissionais. Sobre os casos em que há suspeita de violência, os profissionais são orientados a notificar órgãos de saúde e o Conselho Tutelar.