Por Mariana Costa com colaboração de Marcos Hermanson, em O Joio e o Trigo.
Uma das principais apostas da política econômica do governo Lula, a reforma tributária pode colocar o Brasil a um passo de corrigir distorções nos impostos que incidem sobre os alimentos e favorecem produtos ultraprocessados. Atualmente, a política fiscal está desalinhada às diretrizes de saúde estabelecidas pelo Guia Alimentar para a População Brasileira.
Embora seja um tema de difícil entendimento e frequentemente oculto nas discussões sobre alimentação, os impostos ajudam a entender por que os alimentos in natura e minimamente processados lideram a inflação e vêm se tornando progressivamente mais caros no Brasil. Como já mostramos no Joio, a estrutura tributária brasileira hoje favorece produtores de commodities e fabricantes de ultraprocessados, enquanto onera a agricultura familiar, o pequeno produtor e o pequeno comércio, além do alimento orgânico.
São distorções que explicam como uma garrafa de 1,5 litro de Coca-Cola pode custar menos da metade do que um suco de uva integral. Ou como é possível que um refrigerante pague a mesma alíquota que a água mineral. Ou ainda que ultraprocessados como margarina e achocolatados sejam desonerados e em alguns estados tenham o mesmo tratamento fiscal que o arroz e o feijão.
Em linhas gerais, o que se propõe é a unificação de cinco tributos (PIS/Cofins, IPI, ICMS e ISS) em um único, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), que passa a incidir tanto sobre bens, como sobre serviços.
A reforma tributária se baseia em duas Propostas de Emenda Constitucional que já tramitam no Congresso desde 2019: a PEC 45, da Câmara, e a PEC 110, do Senado. Ambas propõem a unificação dos tributos, com algumas diferenças, e são fruto de nove anos de discussão. A expectativa do governo federal é que o tema seja finalmente colocado em pauta após a votação do arcabouço fiscal, outro projeto-chave para a política econômica do governo Lula, previsto para ser apreciado ao longo do mês de maio.
O Ministério da Fazenda defende que este modelo é o mais simples e eficaz, e permitirá atrair mais investimentos para o Brasil, acabar com a guerra fiscal entre estados e dar mais transparência ao consumidor. Neste primeiro momento, a proposta é mexer apenas com os impostos que incidem sobre o consumo.
Elencamos a seguir três pontos-chave, em relação aos alimentos, que podem ser corrigidos pela reforma tributária.
Cesta básica deve perder desoneração
A criação de um imposto único vai impactar a indústria de ultraprocessados, que hoje se beneficia de um arcabouço fiscal bastante favorável graças a distorções em todos os níveis da estrutura tributária brasileira, inclusive quando a intenção é aparentemente boa.
É o caso da desoneração de impostos federais dos itens da cesta básica. Em 2022, custou aos cofres públicos R$ 32,5 bilhões, segundo a Receita Federal. É a segunda maior renúncia de arrecadação da União, atrás apenas do Simples Nacional. A isenção de PIS/Cofins, no entanto, causa uma redução média de 5% nos preços dos produtos da cesta básica, segundo estima o Ministério da Fazenda.
Além de não estimular uma redução significativa nos preços, a desoneração de impostos federais sobre a cesta básica não prevê diferenciação ou um escalonamento das alíquotas de acordo com o nível de processamento dos alimentos. Isso explica a inclusão de achocolatados, bebidas lácteas, margarina e macarrão instantâneo – todos ultraprocessados – entre os itens beneficiados ao ficarem isentos do PIS/Cofins.
Mas os problemas não param por aí. Há disparidades na cobrança de ICMS, que também é utilizado para tornar os itens da cesta básica mais baratos e acessíveis. Cabe aos estados decidirem que alimentos e produtos podem se beneficiar de isenção ou imposto menor: no caso da cesta, a alíquota de ICMS pode ser 7% ou isenta.
“O macarrão instantâneo, por exemplo, em alguns estados está dentro da cesta básica, em outros está fora. Cada legislador define o que entra: alguns colocam nuggets, carne enlatada e margarina dentro desse conceito de cesta básica”, explica o economista Arnoldo de Campos, ex-secretário nacional de Segurança Alimentar e Nutricional durante o governo de Dilma Rousseff (2013-16).
Produtos com maior qualidade nutricional muitas vezes ficam de fora. Pagando mais imposto, chegam ao consumidor com o preço mais alto. “A farinha de mandioca está dentro, mas, se é uma farinha de aveia, está fora. Polpa de açaí poderia estar dentro, mas paga tributação de ICMS máxima”, critica Campos.
A criação de um imposto único colocaria um fim nas discrepâncias na cobrança de ICMS, reduzindo a margem de lobby da indústria de alimentos sobre as secretarias de Fazenda estaduais. No Paraná, em São Paulo e na Bahia, ultraprocessados como macarrão instantâneo e salsicha foram incluídos na cesta básica.
“Os ultraprocessados devem ser retirados da cesta básica. Em alguns casos, recebem o mesmo benefício tributário que arroz e feijão. Essa situação é inadmissível”, alertou Luciana Maya, nutricionista do Instituto Nacional do Câncer (Inca), em audiência pública convocada pela Comissão da Saúde na Câmara dos Deputados para discutir a reforma tributária.
Para o Inca, a política fiscal é crucial nos esforços de prevenção ao câncer.
Luciana chamou atenção para o caso da salsicha. “Assim como não há mais dúvida da relação do tabaco com o desenvolvimento de câncer, também não há dúvida da relação do consumo de carnes processadas como a salsicha com o aumento do risco de câncer de colo retal”, explicou. Associado a maus hábitos alimentares, o câncer de colo retal vem crescendo no Brasil e já é o segundo mais comum entre ambos os sexos.
Convidada formalmente a participar da discussão, a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) não compareceu à audiência, assim como as associações brasileiras da Indústria do Fumo (Abifumo) e de Bebidas (Abrabe).
Cashback para os mais pobres
Em que pese o crescente número de pesquisas que associam o consumo de ultraprocessados e bebidas açucaradas à obesidade e a desfechos nocivos à saúde, ao que tudo indica, retirar os subsídios a esses produtos não será um caminho fácil. “Vai aparecer o argumento de que ‘é um absurdo encarecer a salsicha’. O que está se defendendo é difícil de aprovar, pois existe uma barreira política. Com essa frente ampla, os interesses estão dentro do governo. Tá todo mundo lá dentro”, prevê Arnoldo de Campos. “Nossa preocupação é como definirão as faixas inibidoras, que estimulam ou isentam. Essa será uma discussão grande.”
Para compensar o fim da desoneração da cesta básica, a proposta do governo federal é criar uma espécie de cashback que devolva uma parte dos tributos aos consumidores de menor renda. Especula-se que o benefício possa ser aplicado aos usuários do Bolsa Família, mas a faixa de renda e o percentual a ser devolvido ainda dependem do avanço das discussões entre parlamentares e governo federal.
Caso seja utilizado como base os inscritos no CadÚnico, 72% dos beneficiários seriam pessoas negras e 57%, mulheres, dois grupos populacionais com maior incidência de insegurança alimentar no Brasil hoje.
“A proposta é que a gente acabe com a desoneração. A cesta básica passaria a ser tributada normalmente e haverá devolução do imposto recolhido pelas famílias de baixa renda. Pode ser 100%, 50% ou 60%: essa política pública será desenhada posteriormente.Isso não está na PEC”, explicou Nelson Machado, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCIF), durante um webinar realizado pela Fundação Getúlio Vargas.
O CCIF é um think tank sobre políticas públicas do qual o atual secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, fez parte até entrar para a equipe do Ministério da Fazenda. Foi essa organização que formulou uma das PECs em discussão no Legislativo.
“O montante do recurso devolvido será retirado do montante de arrecadação global pra manter a carga tributária e a receita. Isso significa que a alíquota vai subir o equivalente. É aritmética: se aumenta o benefício pra devolver, tenho que aumentar a arrecadação pra ficar tudo no mesmo lugar”, afirmou Machado.
Imposto seletivo sobre ultraprocessados
Devolver parte dos tributos à população de menor renda pode ser um passo importante para promover a chamada justiça fiscal no âmbito do consumo, uma vez que os gastos com alimentação pesam muito mais sobre os mais pobres. Mas isoladamente talvez não seja suficiente para frear o consumo dos ultraprocessados, associados a 57 mil mortes prematuras (30 a 69 anos) no Brasil em 2019.
Por esse motivo, a reforma também propõe a criação de um imposto seletivo (IS) sobre produtos e atividades prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. Isso incluiria os ultraprocessados e as bebidas açucaradas, além de bebidas alcoólicas e tabaco.
O imposto seletivo teria caráter exclusivamente arrecadatório. Ou seja, além de corrigir distorções, modernizar e tornar mais simples a estrutura tributária atual, a proposta é criar um imposto para desestimular o consumo desses produtos e, ao mesmo tempo, aumentar a arrecadação.
“O imposto seletivo é a primeira pauta que defendemos. Criar um tributo sobre produtos nocivos à saúde, ou seja, incidente sobre tabaco, álcool e alimentos ultraprocessados”, defende Marcello Baird, coordenador de advocacy da ACT Promoção da Saúde. A entidade é uma das financiadoras do Joio. “Outra defesa nossa é vincular essa arrecadação à área da saúde”, acrescentou.
Mais de 70 organizações da sociedade civil, entre elas a ACT, assinam um manifesto pela Reforma Tributária 3S: Saudável, Solidária e Sustentável. O documento foi entregue aos deputados Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) e Reginaldo Lopes (PT-MG), relatores das PECs, em um ato simbólico na Câmara dos Deputados. E foi incorporado ao grupo de trabalho que discute o tema.
Por ora, a proposta que o governo federal vem defendendo menciona uma definição ampla. A expectativa é que, caso o imposto seletivo seja aprovado, a definição de quais produtos seriam sobretaxados aconteça posteriormente, em legislação complementar.
O imposto seletivo se baseia em uma experiência bem-sucedida com a taxação de bebidas açucaradas, em vigor em mais de 50 países. No México, levou a um aumento de 11% no preço dos refrigerantes, o suficiente para reduzir o consumo, além de pressionar a indústria a reformular produtos, reduzindo a quantidade de açúcar nessas bebidas.
No Reino Unido, houve uma redução de 43,7% no teor de açúcar nas bebidas taxadas após quatro anos da implementação do imposto. Os dados são do Obesity Evidence Hub, que reúne as evidências também nos demais países onde a medida foi adotada.
Um paraíso que pode chegar ao fim
O fim das desonerações e a criação de um imposto seletivo, em última instância, implicaria também em colocar um fim no paraíso fiscal dos refrigerantes, a Zona Franca de Manaus. É um enorme desafio político que coloca em lados opostos interesses conflitantes e assimétricos: o interesse público e duas das maiores corporações globais de bebidas – a Coca-Cola e a Ambev.
A Zona Franca de Manaus é uma região isenta de impostos federais, estaduais e municipais criada para gerar desenvolvimento econômico sustentável na região. A indústria de refrigerantes é um entre vários segmentos industriais que se beneficiam dessas isenções com a produção do concentrado, principal matéria-prima para a fabricação da bebida.
O concentrado atualmente é taxado em 8% pelo IPI. Quem produz esse concentrado na Zona Franca de Manaus tem isenção tributária. Porém, desde os anos 90, quando começou a se instalar na região, a indústria de refrigerantes cobra créditos em cima de impostos que nunca foram pagos. No final daquela década, o Supremo Tribunal Federal admitiu que o esquema contraria a legislação, mas decidiu mantê-lo com base na ideia de que a retirada poderia criar uma concorrência desigual entre Antarctica (hoje, Ambev) e Coca-Cola.
Desde então, governos de diferentes cores têm cogitado cortar a benesse, mas, pressionados, sempre voltam atrás. No ano passado, a indústria de refrigerantes chiou e pressionou o governo Bolsonaro a recuar na intenção de zerar a tabela de IPI dos refrigerantes.
Pelas regras atuais, gigantes como Coca-Cola e Ambev utilizam a região como uma espécie de plataforma de geração de créditos sobre impostos que nem sequer foram pagos. “Ao mexer em toda a tabela do IPI, ele mexeu no IPI do concentrado. Esse a indústria quer alíquota grande, pra poder cobrar créditos. A indústria fez pressão e a alíquota original voltou a ser implementada”, explicou Marília Albiero, da ACT Promoção da Saúde.
O secretário especial da Reforma Tributária, Bernard Appy, chegou a dizer que a Zona Franca perderia incentivos de forma gradual. Especula-se que isso possa levar até 50 anos, mas ainda há mais perguntas do que respostas sobre o futuro do regime especial de incentivos na região – e dos refrigerantes em particular.
Para o economista André Paiva, pesquisador do tema e doutorando na Universidade de Brasília, é preciso fortalecer o objetivo principal da Zona Franca de Manaus, que é o desenvolvimento econômico e social, mantendo a responsabilidade ambiental. “Pra isso, também é muito importante que sejam combatidas as práticas de planejamento tributário abusivo, que é feito por empresas do setor de refrigerante inflando artificialmente preços para aumentar subsídios tributários”, defende, destacando que a indústria de refrigerantes é apenas uma entre as várias atividades que atuam na região e uma das que menos geram empregos.
“Isso também nivela significativamente o ambiente concorrencial em favor de poucas grandes empresas que já são oligopolistas. Tanto a empresa oligopolista do setor de cerveja, como a empresa oligopolista do setor de refrigerante, sofreram autuações relacionadas a essas práticas. E isso desnivela significativamente o ambiente concorrencial, impactando diretamente as empresas de menor porte”, acrescenta.
Os deputados federais Reginaldo Lopes, coordenador do grupo de trabalho, e Aguinaldo Ribeiro, relator do projeto na Câmara, estiveram no Amazonas e ouviram as demandas de políticos locais e de representantes do setor produtivo. A expectativa é de que o grupo de trabalho apresente um relatório ainda no mês de maio.
Ainda há muita incerteza sobre o futuro das negociações. A bancada ruralista já indicou que exigirá tratamento diferenciado para o agro e existe o temor de que isso também aconteça com os alimentos – o que abriria brecha para os ultraprocessados e bebidas açucaradas.
Uma vez aprovada a criação do IVA, a discussão sobre as alíquotas, ou seja, o que deverá ser incentivado ou desestimulado pela tributação, deverá se estender pelos próximos meses, por meio de legislação complementar. É aí que o bicho vai pegar.