O pior cego…
Pode considerar-se opaco, sem ofensas, qualquer serviço público que deixa dúvidas sobre seu funcionamento ao contribuinte que o mantém. Para uma pessoa brasileira no exterior, a representação diplomática é o local que reúne muito – quase tudo; tudo, não! – em matéria de burocracia. A palavra burocracia também não é ofensa: designa um sistema criado pelo Estado para, em princípio, beneficiar a cidadania. Isso sim: há pessoas e formas de operar que o podem complicar ou não. Como a polícia. Deveria servir para proteger, enquanto no Brasil ela assassina (quem ela quer, em geral; já sabemos quem).
O Brasil nunca teve a real dimensão e nem se interessou por saber, quem são e como vivem as comunidades de brasileiros no exterior. Faz mais de quinze anos que me dedico a isso. Os governos, não. Não é nem mera estatística. É saber como vivem, o que necessitam, o que aportam… A única vez que o governo do Brasil se interessa com afinco em saber quem somos é na hora em que o Banco Central conta o dinheiro dos bilhões de remessas que as comunidades de brasileiros no exterior enviam ao país.
Para demonstrar a desatenção, possuo uma lista de páginas do Governo na Internet que só funcionam quando a pessoa (no exterior) é obrigada a colocar endereço brasileiro, com CEP brasileiro, por exemplo: injustiça com milhões de pessoas que vivem fora do Brasil e que nem por isso deixam de ser brasileiros. Pelo contrário: costumamos dizer que quanto mais anos e distância longe do nosso país, mais brasileiros nos sentimos. Isso é amor. Amor pelo nosso país.
Por isso, não estranhei quando os Contratados Locais (CL), trabalhadores em cada consulado e embaixada do Brasil no exterior, convocaram greve e isso tenha confundido a imensa maioria das pessoas – confundiram estes com as duas outras categorias profissionais que atuam ali dentro: os funcionários públicos (os CL não são servidores federais e não possuem os direitos daqueles) e os diplomatas (com vantagens contratuais incomparavelmente melhores que os devidos aos CLs). Todo princípio da confusão pode ser ignorância, desinformação, ou má fé!
Entre uns e outros, por exemplo, quase ninguém sabe, apesar de ser informação pública (principalmente depois da Lei de Transparência desenvolvida pela Presidenta Dilma), que um Contratado Local pode ter um salário bem menor que uma das cláusulas de manutenção de um representante do serviço público federal no exterior, o auxílio moradia. Isso mesmo, um benefício contratual para um, pode superar absolutamente o valor de todo um salário mensal, para outro. Não se trata de diminuir nem de desmerecer o primeiro, e sim de analisar, gráfica e exemplarmente, de forma justa e responsável, as dificuldades na qualidade de vida de TODAS as famílias que contribuem para o serviço público no exterior. O que há de esconder-se em relação a esses valores? Nada, se o consideramos justos. Quem não deve, não deve temer que o contribuinte saiba cada valor daquilo que contribui. É de lei. A injustiça sempre quer esconder-se. A justiça, não. Nada deve temer.
Por outro lado, o Nosso Novo Governo, o Governo Lula, está reconstruindo o país das cinzas fascistas. No oitavo dia, enfrentou um Golpe de Estado que envergonhou o mundo. Mesmo assim, já foi capaz de conceder aumento de 9% aos funcionários públicos –menos aos CLs, que estão há mais de onze anos (!) sem nenhum reajuste do seu poder de compra, devorado pelo aumento do custo de vida, em tempos de guerra, em todos os lugares do mundo.
O que fazer? Greve contra Lula que acabou de assumir? Só um demente acharia que sim! Claro que não! Faz mais de uma década que foram enviados vários comunicados, realizados protestos, tentativas de interlocução com o Ministério das Relações Exteriores. Nenhuma resposta. A esperança depositada num governo dos trabalhadores é reanimadora.
Os movimentos sociais, principalmente o movimento sindical, de onde Lula vem, o conhece como ninguém. Sabem que Lula nasceu da greve e que respeita o direito sagrado de greve por direitos, pois foi lá onde o PT nasceu. Lula sabe que a CUT, a maior central sindical da América Latina tem a greve no seu DNA. Assim como sabe que o MST, o maior movimento em defesa da Reforma Agrária do mundo, não vai deixar de fazer ocupação de terras. Porque até Lula sabe que a concentração de terras e riquezas é um dos principais entraves ao pleno desenvolvimento do nosso país. Lula sabe que nesse país direito se conquista, não se mendiga.
Daí que Lula vai fazer greve ou ocupar terras, ele mesmo, ou os seus ministros? Claro que não!
Será contra quem o faz, reivindicar seus direitos? Claro que não! Mais didático, impossível.
Agora vem o melhor. Lula não somente não será contra, jamais; ele, animal político, com somente um olhar se entende e dialoga com os movimentos sociais. O Presidente não cansa de repetir que não quer bajuladores, nem a direita pautando a sua agenda política. Lula sabe, como ninguém, que NECESSITA dos movimentos sociais pressionando a ele mesmo para levar adiante as reformas e o avanço, ou reconquista, dos direitos que serão a base da reconstrução do nosso país.
O melhor de tudo é que a cidadania, nas ciências políticas, se define pela conjunção entre direitos e deveres. Duas faces da mesma moeda. Exigir deve ser também cumprir. A greve nos consulados da Espanha, longe do que dirá a imprensa golpista (quem dela espera, se assemelha a ela), foi convocada para o exato dia em que Lula visitou a Península Ibérica. Ansioso por encontrar os movimentos sociais ativos, mais que a corja de empresários que se aproxima do governo – e que Lula já os conhece muito bem. Me inclinem pra esquerda, não cansa de repetir.
Por meio de interlocução com a assessoria especial da Presidência (para isso existem), receberam logo o comunicado dos trabalhadores, institucionalizado na figura do movimento sindical espanhol, representado por Comisiones Obreras (CCOO, a maior central sindical da Espanha). CCOO, irmã da CUT – a maior central sindical da América Latina, criada por… Lula!
Mas, afinal, o que querem do Nosso Governo, as assembleias de Contratados Locais das representações diplomáticas na Espanha? Destruir Lula? Não faltaram lunáticos, carregados de má intenção, para fazer o papel de espalhador das fake news, que estes mesmos dizem combater. É claro. O pior direitista é o disfarçado de esquerda. O pior canibalismo é o político. O pior cego é aquele que não quer ver.
Em resumo, o que se quer? Que não se passe a descontar em dinheiro os dias de trabalho em que se estiver doente, como antes já não se fazia. Que se respeite, pela lei local, o conceito de direitos adquiridos. Que a trabalhadora que exerce a mesma função há mais de trinta anos, fazendo o mesmo ofício, no mesmo cargo, possua um Plano de Cargos e Carreiras, como já existe no serviço público federal brasileiro. Que haja equiparação de direitos. Que não se tenha que assumir o custo de ajuizar ações trabalhistas na justiça espanhola para assegurar direitos (quando já lhes deu razão a justiça local). Que seja respeitado o calendário laboral implementado anos atrás. Que novas contratações não entrem em condições discriminatórias em relação às antigas. Quer-se Justiça. Nada mais e simplesmente.
Mas, sabe qual a principal e primeira reivindicação? Diálogo. Sentar e conversar. A palavra mais repetida pelo maior Estadista mundial dos últimos tempos, Lula. Mais que nunca, faz falta formação política, conceitual, de base: Estado, Governo, Partido, Hegemonia, Poder, Movimentos Sociais…
Como dito no início deste texto, a ignorância dá origem ao mal. Pra querer sair dela há de saber escutar, até mesmo antes de falar bobagem. Mas, quando o ódio fascista contamina aquele que se diz de esquerda, é neste momento que percebemos que temos muito caminho pela frente, além de derrotar o Ovo da Serpente, cortar o mal pela raiz. Não somente derrotar Bolsonazi, nem tampouco o bolsonazismo, mas também a hipocrisia dos que se querem aliados.
Cidadania, direito e dever, pode representar, para as comunidades brasileiras no exterior – quase uma dezena de milhão de pessoas, oportunidade a ser perdida. Qual a contrapartida? Reconhecer a injustiça nos consulados poderia ser não somente escutar a classe trabalhadora que grita pelos seus direitos. Quem adoece por não estar bem no trabalho, não pode prestar o atendimento público que todo contribuinte merece.
Porque a greve nos consulados brasileiros, antes de cegueira intencionalmente política, não poderia significar um novo tempo na melhora dos serviços e nas formas de atendimento? Num melhor relacionamento entre quem atende e entre quem é atendido? Afinal, não esquecer que quem atende a cidadãos e cidadãs brasileiras no exterior, em sua imensa maioria, também são brasileiras e brasileiros, no exterior.
Fácil. Né?
Aquele abraço.
PS.: este texto está dedicado àquela pessoa que queria furar a fila no atendimento consular. E a ética profissional lhe respondeu que não.
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Flávio Carvalho é sociólogo, participante da FIBRA e do Coletivo Brasil Catalunya.@1flaviocarvalho. @amaconaima. Sociólogo, Escritor e Poeta (é o que dizem).
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