Projeto Rafael: Como as mineradoras sangram a terra seca na Colômbia

RAFAEL-illustration-mine.

Por Aïda Delpuech, em Amazônia Real. 

Paris (França) – Na Colômbia, Rafael Moreno denunciou os danos causados pela atividade mineradora em sua região, antes de ser silenciado. Trinta jornalistas, coordenados pela Forbidden Stories, retomaram suas investigações e estão trazendo à tona os métodos condenatórios das empresas que ele investigou. Com novas provas, eles revelam graves irregularidades que confirmam o trabalho feito pelo jornalista assassinado.

“Eu revivo meu tempo como um mineiro tradicional”. Em um vídeo postado em sua página no Facebook em 17 de setembro de 2020, Rafael Moreno desce a vários metros de profundidade, pendurado em uma corda e com um sorriso no rosto. O jornalista investigativo passou a maior parte de sua infância lá, na mina de ouro artesanal de El Alacrán. “Hoje mostro aos meus filhos onde aprendi a me defender na vida, onde vivi tantos momentos inesquecíveis e onde vivem tantas pessoas que me amam, que se emocionam ao me ver, que se orgulham de que Rafael Moreno é um filho deste lugarzinho esquecido”, declarou ele em outra publicação.

Nesta aldeia no norte da Colômbia, onde casas e poços de mineração coexistem no meio de uma floresta quase virgem, todos se lembram do “pequeno” Rafael Moreno. Embora ele tenha deixado El Alacrán quando tinha apenas 18 anos de idade, o jornalista manteve laços estreitos com o vilarejo mineiro, visitando-o com frequência. “Ele ficou conosco, em sua antiga casa. Ele fazia parte de nossa comunidade”, recorda María Martínez, uma das moradoras. “De vez em quando, eu lhe dizia: ‘Rafael, por que você não fica quieto? Pare com tudo isso, isso vai te meter em problemas, eles vão te matar’. E foi isso que finalmente aconteceu com ele”, diz ela, secando as lágrimas.

Rafael Moreno viveu sua infância e adolescência entre os mineiros de ouro artesanais; dessas experiências nasceu uma das causas que ele mais defendeu em seu trabalho de jornalista: a luta contra a extração ilegal de recursos minerais realizada pelas empresas mineradoras do sul do Departamento de Córdoba, sua região de origem.

“Trabalhamos em questões ambientais […] (e investigamos) administrações públicas e consórcios (de empresas que operam) sem nenhuma licença ambiental ou título mineiro…”, explicou ele durante um primeiro telefonema para Forbidden Stories, em 7 de outubro de 2022, apenas nove dias antes de ser morto. Vítima de ameaças graves, Moreno havia contatado nosso consórcio para salvaguardar seus documentos na Rede SafeBox, uma rede que permite aos jornalistas sob ameaça protegerem suas informações sensíveis, compartilhando-as com Forbidden Stories. Rafael Moreno queria manter seus documentos em um lugar seguro para que seu trabalho pudesse continuar no futuro.

A casa onde Rafael Moreno morava quando era mineiro, aldeia Alacran, Puerto Libertador (Créditos: Aïda Delpuech/Forbidden Stories)

O jornalista nunca limitou o que falava, e poucos escaparam de suas críticas. Acompanhado por Organis Cuadrado, seu sócio e co-administrador da página do Facebook Vocês de Córdoba – o principal canal de divulgação de seu trabalho jornalístico – Rafael Moreno percorreu as estradas sinuosas de sua região para relatar ao vivo os “crimes” que estava investigando.

A partir do dia seguinte à sua morte e durante os seis meses seguintes, trinta jornalistas, coordenados pelo consórcio de investigação Forbidden Stories, assumiram seu trabalho em três das minas que ele investigou. Estas pesquisas são hoje publicadas por trinta e dois veículos de mídia. O consórcio encontrou graves irregularidades na operação dessas minas, o que confirmou as alegações do jornalista: elas estavam extraindo recursos sem permissão ambiental, sem consultar as comunidades indígenas ou causando danos ambientais e à saúde das populações vizinhas.

“Esta terra é ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição”

Visão aérea da aldeia Alacran e mina artesanal (Créditos : FRANCE 24)

Sob um denso tapete de vegetação, o subsolo da região de Puerto Libertador, terra natal de Rafael Moreno, possui abundantes reservas de carvão, níquel, cobre, ouro, prata, cobalto e ferro. Esta área remota, localizada no norte da Colômbia, concentra a maior parte da atividade mineira e energética da província: possui cinquenta licenças de mineração em vigor, mais da metade das concessões concedidas no Departamento de Córdoba.

Localizada aos pés de uma vasta colina da selva, a mina de ouro El Alacrán abriga uma grande comunidade de mineiros artesanais, que extraem o metal à mão, numa escala irrisória em comparação com os recursos financeiros, humanos e tecnológicos comum às grandes empresas mineradoras.

Sentada diante de uma mesa de plástico branco no terraço da casa que já foi o lar de Rafael Moreno e sua família, Brenda Bohórquez Díaz, uma mulher que beira ter trinta anos, canta com sua poderosa voz uma canção que ela mesma escreveu: “Aqui, onde a riqueza é mineral, de forma artesanal, nossas famílias extraem o ouro”. Bohórquez é uma das porta-vozes da comunidade de El Alacrán, cujos 1.200 habitantes vivem ao redor da mina de mesmo nome. “Como os camponeses, nossa riqueza é a terra”, diz ela.

Sua comunidade está ameaçada pelo megaprojeto mineiro de San Matias. Liderado pela empresa Cordoba Minerals – cujo capital é majoritariamente proveniente dos Estados Unidos e da China – este colossal projeto poderia fazer da Colômbia o maior produtor mundial de cobre. Entretanto, a empresa descreve o projeto do seguinte modo: “uma iniciativa de pequena escala em um contexto global”. A empresa pretende extrair 22.000 toneladas de minerais (cobre, ouro e prata) por dia em uma área de 20.000 hectares.

“Recebemos desde o apoio das autoridades locais até o topo do governo (…) e as comunidades locais são muito favoráveis ao projeto”, diz Sarah Armstrong Montoga, a representante legal da Córdoba Minerals.

Mas os habitantes de El Alacrán discordam. “Este projeto vai sangrar nossas terras”, adverte Brenda Bohórquez Díaz. Junto com outros ativistas de sua comunidade, ela denuncia a opacidade das autoridades. “Nós nunca fomos consultados. Eles obtiveram a concessão sem consultar nossa comunidade, (…) nossa existência é incompatível com este projeto, e um dia eles nos despejarão”. A lei colombiana estabelece que o processo de consulta às comunidades indígenas é obrigatória antes de iniciar a fase de exploração de qualquer projeto de mineração, ou para “qualquer decisão que as afete diretamente”.

Brenda Bohorquez Diaz, uma das líderes da comunidade de Alacran (Créditos: Aïda Delpuech/Forbidden Stories)

A empresa nega a presença de comunidades indígenas na aldeia de El Alacrán, embora “várias famílias indígenas da comunidade de San Pedro vivam lá”, diz Israel Aguilar, líder e ex-chefe da reserva indígena Zenú, localizada em Alto San Jorge.

Em um relatório preliminar elaborado em 2019, a própria empresa admitiu que sua atividade mineira poderia causar uma “potencial deterioração da saúde da comunidade e um aumento das patologias sociais”, bem como causar poluição sonora e perda da biodiversidade.

Na avenida principal do vilarejo, os trabalhadores de Córdoba Minerals fardados removem a cobertura de uma casa humilde antes de demoli-la completamente. “Aqui, a Cordoba Minerals vai escavar para seu projeto de exploração mineira”, explica Brenda. Segundo Brenda, a empresa nunca levou em conta a presença da população local ao elaborar seus mapas, o que explica porque eles estão cavando um poço no meio da vila. “Eles ficaram surpresos quando perceberam quantos nós éramos”, acrescenta ela. De acordo com os moradores, o pessoal da Cordoba Minerals prometeu reconstruir as casas quando a fase de exploração mineral for concluída.

Em resposta a um questionário detalhado enviado pelo consórcio Forbidden Stories, a empresa negou que quaisquer casas tivessem sido afetadas pelos efeitos da prospecção, mas ao mesmo tempo reconheceu que havia pago indenização como resultado de intervenções na área.

Por mais de quatro décadas, ou seja, muito antes da chegada da empresa – em 2015 – os mineiros de El Alacrán vêm solicitando uma licença para explorar legalmente os recursos minerais de sua região. Até hoje, a Agência Nacional de Mineração continua a ignorar tal pedido. A Córdoba Minerals, por sua vez, detém quase metade das licenças de mineração da região, conforme documentado pelo Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (CLIP).

Conflitos como este abundam na região, cujas reservas minerais atraem interesses vorazes. “Esta riqueza é tanto uma bênção quanto uma maldição”, diz Brenda Bohórquez.

Rafael Moreno estava acompanhando de perto a luta da comunidade de El Alacrán contra a empresa mineradora. Em junho de 2022, ele lançou um chamado para testemunhos e reclamações sobre o projeto. “As comunidades merecem respeito”, declarou ele.

Paralelamente, nos meses que antecederam a seu assassinato, o jornalista havia colocado em evidência o caso da Carbomas S.A.S., uma empresa mineira que extrai carvão entre as cidades de Puerto Libertador e Montelibano.

Carbomas, a última obsessão mineira de Rafael

“Estamos abrindo uma investigação na empresa Carbomas (…) sobre irregularidades na execução de seu projeto de extração de carvão nos municípios de Puerto Libertador e Montelíbano”. Com este tom solene, Rafael Moreno anunciou em 10 de junho de 2022, em sua página no Facebook Voces de Córdoba, o lançamento de um novo projeto jornalístico.

O interesse de Rafael Moreno em Carbomas tinha um precedente: o jornalista já suspeitava que a empresa estava extraindo carvão sem licença ambiental, e dois meses antes havia enviado a ela  um pedido de acesso a informações solicitando uma cópia das licenças ambientais, o certificado de origem dos minerais extraídos, bem como a garantia de que o projeto de mineração teria um impacto sócio-econômico positivo sobre as comunidades vizinhas.

Algumas semanas depois, a empresa respondeu que não pretendia responder a seu pedido, pois o considerava como sendo “não pertinente”. Para Rafael Moreno e seu colega Organis Cuadrado, esta resposta significava que a empresa estava “escondendo informações por medo de expor irregularidades óbvias”. Eles também acusaram a empresa de não realizar qualquer processo de consulta prévia com as comunidades vizinhas, um protocolo obrigatório antes de empreender qualquer projeto de mineração.

Em Vocês de Córdoba, os jornalistas multiplicaram suas acusações contra a empresa. Insistindo em suas denúncias, eles se tornaram alvo de críticas maldosas. “A todos aqueles que me acusam de fazer isso por dinheiro ou por um trabalho (…) eu respondo que é absurdo”, afirmou Rafael Moreno em um vídeo de 25 minutos por ele publicado para refutar as acusações. Minha denúncia é baseada em meu trabalho de investigação e realizado em campo (…) Não estou inventando nada, tudo está documentado”.

O caso Carbomas estava marcado para durar muito tempo; no entanto, um documento que o consórcio descobriu em uma mensagem eletrônica de Rafael Moreno revela que, em 5 de julho de 2022, em um e-mail dirigido diretamente a Homero Gómez Anaya – o representante legal da empresa – o jornalista retirou seu pedido de informações que havia enviado três meses antes.

Esta mudança de planos ocorreu apenas três dias depois que Moreno recebeu uma ameaça de morte deixada em sua motocicleta, uma bala de revólver, na caixa de sua motocicleta, acompanhada de um bilhete onde estava escrito: “Você se acha intocável porque fala publicamente, mas ninguém aqui é (…) nós sabemos tudo a seu respeito e não o perdoaremos pelo que você faz”.

Por causa de sua luta contra a extração ilegal de recursos e a corrupção de todo tipo, Rafael Moreno foi um incômodo em muitos setores. É difícil associar diretamente a ameaça de morte e o e-mail enviado à Carbomas para retirar o pedido de informações, mas é certo que os jornalistas deixaram de publicar sobre a empresa após aquela data.

O consórcio Forbidden Stories e seus parceiros solicitaram novamente as informações que Rafael Moreno pretendia receber. Um dos documentos obtidos como resultado de um pedido à Corporación Autónoma Regional de los Valles del Sinú y del San Jorge (CVS) – o órgão local de gestão ambiental – revela que, no momento em que Rafael Moreno denunciava a Carbomas, a empresa não tinha uma licença ambiental para seu novo projeto de mineração de carvão La Estrella.

Graças a imagens de satélite inéditas da Planet Labs, obtidas pela OCCRP – membro do consórcio – observamos que, em maio de 2022, na época das acusações de Rafael Moreno, a mina já estava em fase de exploração, embora a empresa ainda não tivesse uma licença ambiental. “Esta imagem mostra claramente que a mina estava em fase de exploração, dado o nível avançado de desmatamento e a presença de cavidades”, confirma Guadalupe García Prado, diretor do Observatorio de Industrias Extractivas da Guatemala. Apesar de nossas investigações, a empresa não comunicou uma data exata de início das operações.

A Carbomas não é a única empresa mineradora que causa problemas na região. A empresa fornece carvão para Cerro Matoso, a maior mina de níquel do continente, cujo impacto sobre o meio ambiente e a saúde das comunidades vizinhas vem sendo denunciado há anos.

O níquel de Cerro Matoso: o poluidor número um

Entrada de Montelibano, “capital niquelera”. Este caminhão foi oferecido à cidade de Montelibano pela Cerro Matoso em 2022, para comemorar os 40 anos de atividades da mina (Créditos: Aïda Delpuech/Forbidden Stories)

“Capital de níquel”. Na entrada da cidade de Montelíbano, esta placa multicolorida, colocada em frente a uma escavadeira Caterpillar 773-D, acolhe alegremente os visitantes. “Junho 2022 – Por ocasião de seu 40º aniversário e 115º aniversário de Montelíbano, Cerro Matoso entregou este caminhão ao município (…) como símbolo da atividade mineira e industrial da região”.

A fama de Cerro Matoso vai além das fronteiras de Montelíbano: é a primeira mina de níquel da América Latina e a quarta do mundo em termos de área de superfície. Na estrada, caminhões passam um após o outro em um desfile interminável, transportando sua preciosa carga de ferro-níquel da mina para a cidade portuária de Cartagena.

O minério, utilizado principalmente na produção de aço inoxidável, é exportado principalmente para a China, os Estados Unidos e a Europa. “Estamos participando ativamente da transição energética porque nossos materiais estão em alta demanda para a produção de painéis solares”, orgulha-se Pedro Oviedo, chefe de operações na mina.

Mas o níquel divide opiniões. Para alguns, o mineral é uma fonte de orgulho; mas para muitos, a mina de Cerro Matoso representa, acima de tudo, um desastre ambiental e sanitário. A gigantesca mina, com 84.989 hectares, está localizada no meio da reserva indígena Alto San Jorge Zenú, onde cerca de quinze comunidades indígenas vivem ao seu redor. A cidade mais próxima, Puerto Colombia, fica a apenas 750 metros das escavações e das plantas onde o níquel é transformado em ferro-níquel.

“Aqui você não encontrará ninguém com boa saúde, estamos todos doentes”, diz Estela Isabel Hoyos Arcia, uma moradora. A floresta densa ao redor da vila não é suficiente para reduzir os danos causados pelas atividades de mineração. “Nossos olhos estão irritados durante o dia todo”, acrescenta ela.

Este desconforto é causado pela fumaça que escapa das chaminés da planta de mineração, “ainda mais à noite”, de acordo com os moradores. Em novembro de 2021, Rafael Moreno publicou uma fotografia comprometedora para a mineradora Cerro Matoso: nela, vemos uma enorme nuvem de fumaça rosada, com o aspecto de um redemoinho, saindo do local da mineração e cobrindo uma vasta área. “Como nossa sub-região fica bonita com as decorações que Cerro Matoso traz para ela”, comentou ele em tom irônico.

A empresa então acusou Rafael de publicar uma fotografia desatualizada. Em reação, o jornalista e seu colega Organis Cuadrado foram até a mina alguns dias depois e filmaram a nuvem. “Hoje, 23 de novembro de 2021 :(…) esta nuvem rosa que você vê é a que faz mal, a que prejudica as comunidades”, disseram eles.

A mineradora continua negando que é poluente: “somente vapor de água sai de nossas chaminés; quanto a esta nuvem rosa, certamente é uma falha do sistema, é uma exceção”, disse Pedro Oviedo, chefe de operações de Cerro Matoso, em uma entrevista com Forbidden Stories. Entretanto, vídeos lançados por fontes locais mostram que episódios semelhantes ocorreram no mesmo ano e também em abril de 2022.

Em 2017, o Ministério do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável já havia advertido sobre “emissões não controladas” provenientes da mina; esta observação foi corroborada pelo Ministério da Saúde e Proteção Social, que relatou a existência de uma “nuvem laranja”.

Em 2020, antes das acusações de Rafael Moreno, Cerro Matoso já havia sido condenada pelo CVS – o órgão regional de gestão ambiental – por exceder as emissões de partículas, bem acima dos padrões ambientais.

Entretanto, Cerro Matoso nega qualquer acusação de poluição do ar e se defende: “nenhuma das medições (do ar ambiente em 2022, nota editorial) atingiu o limite da média anual das diretrizes definidas pela Organização Mundial da Saúde”. A empresa também alega ser transparente, e todas as medições de suas estações de amostragem estão disponíveis on-line.

Victor Pineda trabalhou por 22 anos em Cerro Matoso, principalmente na área dos fornos onde o níquel é transformado a temperaturas muito altas, e dos quais escapam essas nuvens controversas. “Muitos gases são liberados durante estas operações e contêm substâncias perigosas, muitas das quais são cancerígenas, como a sílica cristalina, um reconhecido carcinógeno”, explica ele.

A quatro quilômetros da mina, entre as colinas verdes, encontra-se a aldeia da comunidade indígena Guacarí-La Odisea. Ao longe, enormes montes cinzentos podem ser vistos: são os resíduos da produção de ferro-níquel, amontoados ao ar livre.

Os milhões de toneladas de resíduos gerados desde o início das operações da mina são armazenados ao ar livre e dispersos pelas condições meteorológicas. “Eles são compostos de partículas muito tóxicas. Basta um pouco de vento ou chuva para que as partículas se movimentem e contaminem”, explica o antigo trabalhador da Cerro Matoso.

As doenças também se multiplicam ali: de acordo com os habitantes, não há uma única pessoa que não tenha uma deficiência, eles dizem que nem mesmo as crianças são poupadas das doenças “incomuns” que assolam a comunidade. Yolanda Rosa Hayos, 63 anos, conta: “Tenho dores em toda parte (…) e estas manchas negras apareceram em todo o meu corpo. Consultei os médicos da clínica Cerro Matoso, eles me disseram que estava tudo bem, que eu não tinha nada com que me preocupar”.

Yolanda Rosa Hayos, 63 anos, da comunidade Odisea-Guacari ao lado da mina Cerro Matoso. Ela começa a chorar enquanto explica como a mina afetou sua saúde (Créditos: Aïda Delpuech/Forbidden Stories)

Na verdade, a empresa mineira financia uma clínica através de uma de suas estruturas, a Fundação Panzenú. Tanto seus funcionários quanto os membros das comunidades vizinhas podem ir lá para receber atendimento médico. “Este território foi abandonado pelas autoridades sanitárias. Para receber atendimento, as pessoas vão ao hospital, que é pago pela empresa Cerro Matoso, ou à clínica que pertence à mina, (Cerro Matoso) é portanto juiz e júri em matéria de saúde”, diz Camilo Castellanos, toxicologista da Pontifícia Universidade Javeriana.

Para as comunidades que vivem perto da mina, não há dúvida: as atividades de níquel têm um impacto devastador sobre sua saúde. “São principalmente os problemas respiratórios que nos levam às nossas sepulturas”. Há anos eles vêm lutando para que Cerro Matoso seja responsabilizada por esses danos”.

Um caso nacional

  • Doença de pele na perna de uma criança, comunidade indígena de Puerto Colombia (Créditos: Aïda Delpuech/Forbidden Stories)
  • Doença de pele na perna de uma mulher, comunidade indígena de Puerto Colombia (Créditos: Aïda Delpuech/Forbidden Stories)
  • Carlos Enrique Aguirre Pérez, presidente da Associação dos Mineiros de El Alacrán (Créditos: Aïda Delpuech/Forbidden Stories)
  • Monitor de água implantado por Cerro Matoso na aldeia indígena Odisea-Guacari (Créditos: Aïda Delpuech/Histórias Proibidas)
  • Uma família na aldeia indígena de Puerto Colombia, a mais próxima da mina Cerro Matoso (Créditos: Aïda Delpuech/Forbidden Stories)

Em 2013, Israel Aguilar, então governador e chefe indígena da comunidade Zenú do Alto San Jorge, e Luis Hernán Jacobo, presidente do Conselho Comunitário das Comunidades Negras de San José de Uré, apresentaram uma ação tutelar perante a Corte Constitucional Colombiana contra a Cerro Matoso, o Ministério de Minas e Energia e a Agência Nacional de Mineração, por danos ambientais e danos à saúde. A mais alta corte aceitou o caso e mobilizou recursos significativos para determinar a extensão da responsabilidade da empresa mineradora pelos danos causados.

Um estudo sem precedentes foi solicitado ao Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses – uma autoridade altamente reconhecida no país – para determinar a presença de níquel no sangue e na urina de 1.147 pessoas que vivem nas proximidades da mina, e para identificar a taxa de doenças ligadas à atividade mineradora. Seus resultados foram devastadores: eles estabeleceram que “os níveis obtidos na amostragem tanto do sangue quanto da urina estão acima dos dados fornecidos por estudos mundiais”, e foram posteriormente confirmados pelo Ministério da Saúde.

Estela Isabel Hoyos Arcia, residente de Puerto Colombia, segura firmemente a folha de resultados que recebeu quando o estudo foi tornado público: ela foi medida com 6 ?g de níquel em seu sangue e 19 ?g em sua urina, índices 10 e 11 vezes mais altos, respectivamente, que os limites estabelecidos pelo Instituto Nacional de Saúde Pública de Quebec, um dos padrões mais rigorosos do mundo.

À luz destas análises, o tribunal emitiu uma sentença contra a Cerro Matoso: ordenou que a empresa pagasse indenização às comunidades afetadas, e ordenou que cobrisse todos os custos do atendimento médico e renovasse sua licença ambiental, que não tinha mudado desde 1981. Em caso de não cumprimento das sanções, o tribunal considerou a possibilidade de decretar “a suspensão de suas atividades extrativistas”.

Mas a empresa South 32, proprietária da mina, contestou tal decisão e armou-se com os advogados mais poderosos do país, incluindo Eduardo Cifuentes Muñoz, ex-presidente do Tribunal Constitucional (1991-1998).

Os advogados alegam que “o tribunal interpretou mal o relatório médico publicado pelo Instituto de Medicina Legal (…) porque não foi estabelecido um nexo causal direto entre o impacto observado na população e a exploração de Cerro Matoso”. Argumentaram que não era possível atribuir a presença de níquel nas amostras de sangue somente à empresa Cerro Matoso, pois “fatores externos” poderiam ter influenciado os resultados.

“Claro que há um fator externo: a própria mina”, diz Camilo Castellanos, toxicologista e membro da equipe metodológica que produziu o relatório do Instituto de Medicina Legal. “Os níveis de níquel observados nas amostras foram entre 10 e 100 vezes superiores aos limites estabelecidos pela norma de Quebec. (…) Além da interpretação do relatório, os níveis de níquel foram de tal magnitude que estou intimamente convencido de que a mina está envenenando cronicamente a população”, diz ele.

Antes de realizar o estudo, a metodologia foi validada pelas instituições públicas participantes e todas as partes interessadas, incluindo o Cerro Matoso. Segundo Javier de la Hoz, que representou as comunidades no julgamento, “este relatório é a evidência mais forte que poderia existir para demonstrar a responsabilidade da empresa mineradora”.

Em sua resposta às nossas perguntas, Cerro Matoso cita um relatório de 2016 de um toxicologista americano que levanta as limitações metodológicas do Instituto de Medicina Legal.

Entretanto, o caso deu uma volta de 180 graus em setembro de 2018: numa segunda instância, a Suprema Corte decidiu a favor da empresa e anulou a maior parte das sanções contra a Cerro Matoso. Restaram apenas as decisões de renovação da licença ambiental – com a obrigação de realizar um processo de consulta às populações indígenas – para remediar os impactos ambientais e garantir serviços de saúde para as populações afetadas.

Muito poucos podem explicar a revogação da sentença na segunda instância, apesar das provas fornecidas pelo Instituto de Medicina Legal. Para Javier de la Hoz, não há dúvida: “houve corrupção. Três fontes altamente valorizadas que estiveram presentes nas sessões internas confirmaram isso para mim”.

Em 2015, meses depois que o Tribunal Constitucional colombiano iniciou a ação tutelar contra Cerro Matoso, o gigante grupo BHP Billiton, que possuía o depósito de níquel desde 1980, cedeu a concessão da mina à South 32, uma empresa australiana recém-criada, que nasceu de uma cisão da própria BHP Billiton e herdou os ativos considerados não-estratégicos da transnacional. “A BHP criou a South 32 para se livrar de todos os seus projetos sujos”, diz o advogado Javier de la Hoz.

Desde que o julgamento foi anunciado, foi alcançado um acordo com as comunidades para definir o protocolo para a consulta indígena. Este acordo contempla o pagamento de 58 bilhões de pesos para as comunidades através de projetos sociais, defende Cerro Matoso em sua resposta às nossas perguntas.

Em Puerto Colombia, a cidade mais próxima da mina, quase todas as casas foram renovadas, e algumas ainda estão em construção. Mas “a saúde não tem preço e esta nova casa não vai me devolver”, afirma Estela Isabel Hoyos Arcia, que sofre de múltiplos problemas digestivos.

Embora o caso tenha terminado, as acusações contra a Cerro Matoso continuam. Em San José de Uré, uma aldeia afro-colombiana a 10 quilômetros da mina de níquel, um desastre sanitário está ocorrendo em silêncio: nos últimos dois anos, quase vinte mulheres foram submetidas a uma histerectomia (remoção do útero), segundo uma investigação realizada pela RFI, membro do consórcio Forbidden Stories. Todas as mulheres relataram sintomas similares: hemorragia severa e dor excruciante. “Por que muitos de nós sofremos desta forma?”, perguntaram elas.

A resposta pode ser encontrada no relatório do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses: o documento afirma que o fibroma uterino é uma das dezessete doenças que afetam as pessoas que vivem perto de Cerro Matoso. Apesar da ordem do Tribunal Constitucional para que a empresa mineradora forneça assistência médica completa às vítimas destas doenças, nenhuma das mulheres recebeu apoio. Em seu relatório, a Corte Constitucional havia advertido sobre a “contaminação do rio Uré com partículas da mina”. A empresa se defende afirmando que, até o momento, “apenas uma pessoa solicitou assistência sob este protocolo”.

“O caso da saúde não está encerrado (…) e as consequências sobre nossa mãe terra são piores do que antes”, diz Israel Aguilar.

Em Córdoba, arriscando sua vida para denunciar as atividades de mineração

Como Rafael Moreno, muitos atores locais e pessoas afetadas pelas atividades de mineração na região denunciaram seus efeitos negativos sobre a saúde e o meio ambiente; ao fazê-lo, eles se expõem a sérios perigos.

Desde a assinatura dos acordos de paz entre o governo colombiano e a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) em 2016, 56 líderes locais, alguns deles envolvidos em questões relacionadas à mineração, foram mortos no sul de Córdoba, segundo o Instituto de Estudos de Paz (Indepaz). Na Colômbia, as atividades de mineração são uma das principais causas de conflitos socioambientais.

Israel Aguilar, ex-mineiro e defensor enérgico das comunidades indígenas da região, fala do perigo latente: “Eu não posso mais me movimentar em espaços públicos. Em minha casa, não passo mais de vinte minutos no terraço, é muito arriscado”. Um orador público muito ativo em questões de mineração há várias décadas, o líder recebeu inúmeras ameaças e só se desloca com uma escolta. Em Córdoba, 202 pessoas são protegidas pela Unidade Nacional de Proteção.

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  • Visão aérea da mina Cerro Matoso (Créditos : FRANCE 24)
  • Visão aérea da mina Cerro Matoso (Créditos : FRANCE 24)
  • Mina Cerro Matoso (Foto: Aïda Delpuech/Forbidden Stories)

“Aqui, o poder funciona em triângulo: os grupos armados (o Clã do Golfo, o principal bando de drogas do país), os políticos e as empresas de mineração constituem o mesmo ecossistema de corrupção e criminalidade”, diz uma fonte que prefere permanecer anônima.

“Todas as empresas mineradoras aqui presentes pagam ao Clã”. “Onde há minas, há grupos paramilitares”, diz outra fonte, que também deseja permanecer no anonimato.

Victor Pineda deixou a Cerro Matoso em 2003 por motivo de saúde, após 21 anos trabalhando para a empresa. Vítima de desordem do sistema nervoso e de vários problemas digestivos e cardíacos, o ex-trabalhador vem lutando há duas décadas para que suas doenças sejam reconhecidas como doenças ocupacionais, o que lhe daria direito à receber indenização. O homem acusa a empresa de não implementar as medidas de proteção necessárias e de tê-lo exposto a temperaturas prejudiciais à sua saúde.

Poucos dias após o assassinato de Rafael Moreno, Victor Pineda compartilhou diversos posts do jornalista sobre a Cerro Matoso no Facebook para honrar sua memória. Após uma semana, ele recebeu uma carta ameaçadora em sua janela: “pare de ser um líder ambiental (…) você viu o que aconteceu com o jornalista Rafael Moreno em Montelíbano (…) você foi avisado”. Ele ficou atordoado. “Não entendo porque eles me ameaçam pessoalmente”. Há muitos de nós que denunciamos a mina; eu não sou nem líder, nem porta-voz”, diz.

Organis Cuadrado, sócio de Rafael Moreno e crítico ferrenho da atividade mineira em sua região, decidiu adotar uma postura discreta desde o assassinato de seu amigo. Ele agora apresenta um programa de música e notícias para a rádio local La Piragua: “Tenho uma família, quero ver meus filhos crescerem, (…) sei que eu seria o próximo na lista se continuasse a denunciar como denunciei, junto com Rafa”. O jornalista é sempre acompanhado por dois guarda-costas e viaja em um carro blindado.

O assassinato de Rafael Moreno marcou uma separação de águas, um antes e um depois na região. Embora alguns continuem a levantar a voz, muitos optaram por permanecer em silêncio. “Há silêncio”, diz Cuadrado.

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