Por que governos não fazem checagem de fatos

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Por Luiz Fernando Menezes, Aos Fatos.

Em meio à discussão sobre a regulação das redes, a Secom (Secretaria Especial de Comunicação) da Presidência da República lançou o site Brasil Contra Fake, autodescrito como um repositório de “respostas para as principais fake news envolvendo o governo federal”. Desde que entrou em funcionamento, no entanto, o site misturou no mesmo lugar textos produzidos por veículos de checagem e posicionamentos institucionais do governo, sem clara distinção.

A mistura de peças de comunicação oficial com o jornalismo profissional produzido por empresas como este Aos FatosAgência Lupa e Fato ou Fake, citados no site estatal, pode causar confusão entre o que é checagem de fatos e o que é posicionamento do governo. Isso acontece por três motivos principais:

  • A iniciativa estatal não deixa claro quais os critérios usados para selecionar e desmentir os boatos;
  • O Estado é fonte de informação, ou seja, é quem tem dados oficiais que podem corroborar ou não com os fatos e, desse modo, derrubar ou confirmar a veracidade de uma alegação;
  • O governo é parte interessada, porque usa o site Brasil Contra Fake para desmentir alegações que tratam apenas de suas ações. É, portanto, um instrumento de relações públicas, e não jornalismo.

Após as críticas, o ministro-chefe da Secom, Paulo Pimenta (PT), negou que o Brasil Contra Fake se proponha a substituir iniciativas de checagem independentes. Segundo o ministro, o site “é um espaço do governo para esclarecimentos à população”, criado “para evitar que a população seja mal informada sobre um decreto, uma lei ou uma política pública”.

Há questões éticas e metodológicas na checagem de fatos que colocam o Estado de um lado e o jornalismo de outro nesta discussão. Para entender isso, é necessário saber quais os processos e a metodologia adotados por iniciativas de checagem independentes de poderes políticos:

  1. O que é a checagem de fatos?
  2. Qual é a metodologia da checagem?
  3. Quais são os princípios que um veículo deve seguir para garantir a qualidade das checagens?
  4. Quais são os problemas de um governo fazer checagem?

1. O QUE É A CHECAGEM DE FATOS?

A checagem de fatos é uma resposta jornalística à desinformação — tenha ela sido disseminada por um usuário anônimo nas redes sociais ou pelo presidente da República em um discurso oficial. A principal função é fiscalizar a comunicação e ajudar a melhorar a qualidade do debate público. O acesso a verificações também pode ajudar pessoas na tomada de decisões e auxiliar o monitoramento de políticas públicas baseadas em fatos e evidências.

Em resumo, a checagem de fatos busca atestar a veracidade de uma afirmação ou oferecer mais contexto para uma alegação que, sozinha, pode induzir a erros graves. Isso abarca uma ampla gama de conteúdos — como fotos editadas, vídeos antigos que circulam como se fossem recentes, alegações que negam fatos concretos ou consensos científicos e afirmações falsas ou distorcidas de autoridades públicas.

Por ser baseada em fatos e evidências concretas, a checagem não pode avançar sobre determinados territórios. Não é sua função, por exemplo, fazer qualificações — por isso, não há como determinar se um político é “melhor” ou “pior” do que outro, por exemplo. Também não é parte de suas atribuições prever o futuro: não há como checar a promessa de uma autoridade no momento em que ela é feita.

2. COMO É A METODOLOGIA DA CHECAGEM?

O conteúdo publicado por uma empresa de checagem mostra apenas a ponta do iceberg de um processo rigoroso de pesquisa, apuração com especialistas e redação que envolve uma metodologia desenvolvida para atestar a veracidade de uma informação com o máximo grau de transparência e isenção.

No Aos Fatos, todas as checagens atendem a uma metodologia pública que envolve os seguintes passos:

  • Os jornalistas tomam conhecimento de uma desinformação — uma declaração enganosa de uma autoridade ou um boato que circula na internet, por exemplo — ao monitorar o alcance de conteúdos nas redes ou receber avisos de leitores;
  • Como não é possível desmentir tudo que circula, são analisados o impacto e a relevância de se checar aquela desinformação específica. Quantas pessoas ela atingiu? Quais são os seus principais disseminadores? Por quais canais ou plataformas ela circulou? Quais os possíveis danos causados por sua disseminação?
  • Caso a empresa opte por produzir a checagem, os jornalistas buscam em fontes confiáveis — que podem ser órgãos oficiais, especialistas ou documentos públicos — fatos e dados que mostrem o que é factualmente correto sobre aquele assunto. Em caso de divergências entre as fontes, os repórteres devem buscar informações adicionais que ajudem a formar uma maioria;
  • Com base na apuração, o jornalista pode conferir os selos FALSO, NÃO É BEM ASSIM e VERDADEIRO à informação checada e preparar um texto que explica, da forma mais didática e transparente possível, quais argumentos embasaram sua escolha e qual foi o caminho da apuração;
  • Antes de ser publicada, a checagem passa pelas mãos de ao menos dois editores, que conferem as fontes consultadas e as informações apresentadas, além de revisar e formatar o texto de acordo com os padrões editorais;
  • Por fim, a checagem é publicada e distribuída nas diferentes redes sociais do Aos Fatos a fim de atingir o maior número possível de leitores.

3. QUAIS SÃO OS PRINCÍPIOS QUE UM VEÍCULO DEVE SEGUIR PARA GARANTIR A QUALIDADE DAS CHECAGENS?

De forma similar a uma série de iniciativas de checagem do mundo todo, o Aos Fatos segue um código de princípios previsto pela IFCN (International Fact-Checking Network), órgão regulatório internacional sediado no Instituto Poynter, nos Estados Unidos.

Em resumo, o código de conduta prevê que as empresas:

  • Sejam apartidárias: as iniciativas devem usar a mesma metodologia para cada checagem e não podem não concentrar seus esforços em nenhum ponto do espectro político. Também não é permitido que os signatários defendam ou assumam posições sobre as questões que verificam;
  • Sejam transparentes em relação às fontes: as fontes usadas nas checagens devem estar disponíveis para que qualquer leitor possa conferir as informações e refazer o caminho da verificação. No Aos Fatos, essas fontes aparecem como links ao longo da matéria e também constam em uma lista de referências publicada ao pé do texto;
  • Sejam transparentes em relação ao método de financiamento: as agências devem informar suas fontes de renda e assegurar que não estão sendo influenciadas por outras organizações que podem interferir no processo editorial;
  • Sejam transparentes em relação à metodologia de checagem: os processos de escolha, pesquisa, redação, edição, publicação e correção de informações devem ser públicos;
  • Adotem uma política de erros transparente: caso errem, as agências devem corrigir a informação e deixar claro aos leitores quais alterações foram feitas.

Para garantir que os princípios exigidos sejam cumpridos, todas as empresas signatárias devem passar por uma análise de um avaliador da IFCN, que produz um relatório para determinar se elas estão seguindo ou não o código de conduta exigido. Essa análise deve ser renovada anualmente e é feita por avaliadores independentes. Todos os relatórios sobre o Aos Fatos podem ser acessados aqui.

4. QUAIS SÃO OS PROBLEMAS DE UM GOVERNO FAZER CHECAGEM?

Agências ou serviços de checagens financiados por governos não podem ser signatários da IFCN. Isso porque a ideia de um governo realizando checagens e verificando o debate público viola o primeiro critério do código de conduta: o apartidarismo.

Uma iniciativa de checagem deve tratar igualmente todos os atores do debate público e verificar os mais diversos pontos do espectro político. Nesta semana, por exemplo, o Aos Fatos desmentiu publicações compartilhadas tanto por petistas quanto por bolsonaristas. Um serviço governamental que se preze a checar desinformações nas redes, no entanto, tende a desmentir apenas publicações de opositores que atacam o próprio governo.

No caso do serviço lançado pela Secom, há ainda problemas em relação à transparência de fontes e metodologia de checagem: em nenhum lugar do site há informações sobre como são escolhidas as mentiras a serem desmentidas ou quem são as pessoas responsáveis pela produção dos textos. Em alguns casos, a checagem sequer possui links externos que permitam que o leitor verifique as fontes citadas.

Print mostra tela inicial do Brasil Contra Fake
Brasil contra Fake. Portal foi lançado no final de março e se diz um acervo de respostas para as principais fake news sobre o governo federal (Reprodução)

A plataforma também tem usado conteúdo produzido por empresas de checagem para publicar desmentidos institucionais. Um texto que rechaça alegações que circulavam nas redes sobre uma suposta decisão de Lula de acabar com aplicativos de entrega, por exemplo, usou apuração do Aos Fatos.

De acordo com levantamento do Chequeado, organização argentina de checagem independente, governos da América Latina e de outras partes do mundo, como Europa e Ásia, têm diferentes graus de participação em iniciativas que se propõem a verificar fatos:

  • Em algumas delas, como no México, esses espaços são usados de forma parcial para atacar oposicionistas e já espalharam desinformação;
  • Na Colômbia, uma campanha do Ministério da Defesa supostamente criada para combater desinformação foi classificada por jornalistas locais como um meio que o governo usou para perseguir, praticar “hipervigilância” e “criminalizar” conteúdos na internet;
  • Na Argentina, existem duas iniciativas, uma do Executivo dedicada a combater apenas desinformação ligada à Covid-19, e outra ligada ao Congresso que se propõe a produzir pesquisas e estudos sobre desinformação;
  • O levantamento do Chequeado também cita iniciativas de governos em países com histórico de autoritarismo político, como Cingapura, Índia, Tailândia e Vietnã.

COMO GOVERNOS PODEM COMBATER DESINFORMAÇÃO

A despeito dos problemas que envolvem a criação de plataformas de verificação ligadas a órgãos oficiais, governos podem adotar diversas medidas que auxiliem empresas de checagem a desmentir os boatos que circulam nas redes.

O principal deles é manter estruturas robustas de atendimento à imprensa que permitam respostas rápidas a campanhas de desinformação que, por vezes, só podem ser propriamente desmentidas com o auxílio de órgãos oficiais. Para isso, é essencial manter canais de comunicação abertos com jornalistas.

A agilidade dessas equipes também deve ser prioritária. Campanhas de desinformação sobre políticas públicas são relativamente previsíveis, por serem cíclicas. Mapear quais são os alvos mais comuns de mentiras nas redes sociais faz com que seja possível responder rapidamente a uma onda de desinformação.

Por serem detentores de informações oficiais que guiam políticas públicas, governos também podem prestar auxílio valioso a iniciativas de checagem ao publicar dados de maneira estruturada, confiável e transparente. Órgãos estatais como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), além de bases de dados importantes, como a do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) são valiosas fontes de informações a que o governo tem a obrigação de dar publicidade e de proteger de interesses particulares.

No caso de informações que não estejam prontamente disponíveis ao público, é importante que as autoridades ajam com rapidez para atender a pedidos de LAI (Lei de Acesso à Informação).

Referências:

1. Aos Fatos (1234 e 5)
2. Secom (12 e 3)
3. Poder360
4. EBC
5. IFCN (1 e 2)
6. Chequeado
7. Verificado
8. Defensoria Pública do Governo Argentino

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