O Projeto de Lei do Divórcio, por Karl Marx

“Se a legislação não pode decretar a moralidade, ainda menos pode pronunciar a imoralidade como legalmente válida.”

Imagem de arquivos públicos: Karl Marx e sua esposa Jenny.

Por Karl Marx, marxists.org, traduzido por Gabriel Mauricci

O Projeto de Lei do Divórcio

Colônia, 18 de dezembro [de 1842]. Em relação ao Projeto de Lei do Divórcio, a Rheinische Zeitung adotou uma posição bastante especial, e até agora nenhum argumento foi apresentado em nenhum lugar que prove que essa posição seja insustentável. A Rheinische Zeitung concorda com o Projeto de Lei na medida em que considera a legislação prussiana existente sobre o casamento imoral, os inúmeros e frívolos motivos para o divórcio inadmissíveis e o procedimento existente não condizente com a dignidade do assunto em questão, o que, aliás, pode ser dito em relação ao procedimento judicial prussiano antigo como um todo. Por outro lado, a Rheinische Zeitung apresentou as seguintes principais objeções ao novo Projeto de Lei: 1) Em vez de uma reforma, houve uma mera revisão, o que resultou em uma considerável falta de vontade e incerteza em relação à lei prussiana como a lei básica; 2) a legislação trata o casamento não como uma instituição moral, mas como uma instituição religiosa e eclesiástica, ignorando assim a essência secular do casamento; 3) o procedimento é muito defeituoso e consiste em uma combinação superficial de elementos contraditórios; 4) não se pode ignorar que há, por um lado, severidades de natureza policial que são contrárias ao conceito de casamento e, por outro, grande leniência em relação ao que se chamam de considerações de equidade; 5) toda a formulação do Projeto de Lei deixa muito a desejar quanto à consistência lógica, precisão, clareza e pontos de vista abrangentes


Na medida em que os oponentes do Projeto de Lei condenam um ou outro desses defeitos, concordamos com eles; por outro lado, de forma alguma podemos aprovar sua apologia incondicional pelo antigo sistema. Repetimos mais uma vez a declaração que fizemos anteriormente:

“Se a legislação não pode decretar a moralidade, ainda menos pode pronunciar a imoralidade como legalmente válida.” Quando perguntamos a esses oponentes (que não são oponentes da concepção da igreja e das outras deficiências que indicamos) sobre o que baseiam seus argumentos, eles sempre falam conosco sobre a posição infeliz do marido e da esposa unidos contra sua vontade. Eles adotam um ponto de vista eudêmico, pensam apenas nos dois indivíduos e esquecem a família. Eles esquecem que quase todo divórcio é a ruptura de uma família e que mesmo do ponto de vista puramente jurídico, as crianças e sua propriedade não podem depender da vontade arbitrária e seus caprichos. Se o casamento não fosse a base da família, não seria mais objeto de legislação do que, por exemplo, a amizade. Assim, os oponentes acima mencionados levam em conta apenas a vontade individual ou, mais corretamente, o desejo arbitrário do casal casado, mas não prestam atenção à vontade do casamento, à substância moral dessa relação. O legislador, no entanto, deve se considerar um naturalista. Ele não cria as leis, ele não as inventa, apenas as formula, expressando em leis positivas conscientes as leis internas das relações espirituais. Assim como se teria que reprovar o legislador pelo comportamento arbitrário mais desenfreado se ele substituísse a essência da questão por suas próprias noções, assim também o legislador certamente tem o direito de considerar como o mais desenfreado arbítrio se pessoas privadas buscam impor seus caprichos em oposição à essência da questão. Ninguém é obrigado a contrair matrimônio, mas todo aquele que o fizer deve ser compelido a obedecer às leis do casamento. Uma pessoa que contrai casamento não cria o casamento, não o inventa, assim como um nadador não cria ou inventa a natureza e as leis da água e da gravidade. Portanto, o casamento não pode ser subordinado a seus desejos arbitrários; ao contrário, seus desejos arbitrários devem ser subordinados ao casamento. Qualquer pessoa que quebra arbitrariamente um casamento afirma assim que a arbitrariedade, a ilegalidadeé a lei do casamento, pois nenhuma pessoa racional terá a presunção de considerar suas ações como privilegiadas, como dizendo respeito somente a ele; ao contrário, ele manterá que suas ações são legítimas, que dizem respeito a todos. Mas o que vocês se opõem? Vocês se opõem à legislação da arbitrariedade, mas certamente não querem elevar a arbitrariedade ao nível de uma lei no exato momento em que estão acusando o legislador de arbitrar.

Hegel afirma: Em si mesmo, de acordo com o conceito, o casamento é indissolúvel, mas apenas em si mesmo, ou seja, apenas de acordo com o conceito. Isso não diz nada específico sobre o casamento. Todas as relações morais são indissolúveis segundo o conceito, como é facilmente percebido se sua verdade for pressuposta. Um Estado verdadeiro, um casamento verdadeiro, uma amizade verdadeira são indissolúveis, mas nenhum Estado, nenhum casamento, nenhuma amizade corresponde totalmente ao seu conceito, e assim como a verdadeira amizade, mesmo na família, assim como o verdadeiro Estado na história mundial, assim, também, o verdadeiro casamento no Estado é dissolúvel. Nenhuma existência moral corresponde à sua essência ou, pelo menos, não precisa corresponder a ela. Assim como na natureza a decadência e a morte aparecem por si mesmas onde uma existência deixou de corresponder totalmente à sua função, assim como a história mundial decide se um Estado se afastou tanto da ideia de Estado que já não merece existir, assim, também, o Estado decide em que circunstâncias um casamento existente deixou de ser um casamento. O divórcio não é nada mais do que a constatação de que o casamento em questão é um casamento morto, cuja existência é mera aparência e engano. É óbvio que nem a decisão arbitrária do legislador, nem o desejo arbitrário de pessoas privadas, mas apenas a essência da questão pode decidir se um casamento está morto ou não, pois é bem conhecido que a constatação de que a morte ocorreu depende dos fatos e não dos desejos das partes envolvidas. Mas se, no caso da morte física, é necessário um prova precisa e irrefutável, não é claro que o legislador deveria ser permitido registrar o fato de uma morte moral apenas com base nos sintomas mais indubitáveis, uma vez que preservar a vida das relações morais não é apenas seu direito, mas também seu dever, o dever de sua autopreservação!

certeza de que as condições nas quais a existência de uma relação moral não corresponde mais à sua essência sejam corretamente registradas, sem opiniões preconcebidas, de acordo com o nível alcançado pela ciência e com as visões geralmente aceitas – essa certeza, é claro, só pode existir se a lei for a expressão consciente da vontade popular e, portanto, originar-se e ser criada por ela. Adicionaremos algumas palavras sobre a facilitação ou dificuldade do divórcio: Você pode considerar um objeto natural como saudável, forte e verdadeiramente organizado se cada impacto externo, cada lesão, é capaz de destruí-lo? Você não se sentiria insultado se alguém afirmasse como axioma que sua amizade não suportaria o menor acidente e deveria ser dissolvida por qualquer capricho? Em relação ao casamento, o legislador só pode estabelecer quando é permitido dissolvê-lo, ou seja, quando em sua essência já está dissolvida. A dissolução jurídica do casamento só pode ser o registro de sua dissolução interna. O ponto de vista do legislador é o ponto de vista da necessidade. O legislador, consequentemente, dá devido valor ao casamento, reconhece sua profunda essência moral, se o considera forte o suficiente para resistir a uma infinidade de colisões sem se prejudicar. A indulgência dos desejos individuais se transformaria em rigor em relação à essência dos indivíduos, em relação à sua razão moral, que se manifesta em relacionamentos morais.

Finalmente, podemos apenas denominá-lo de pressa indevida quando de muitas partes a acusação de hipocrisia é dirigida contra países com leis rigorosas sobre o divórcio, entre os quais a Província do Reno orgulha-se de estar incluída. Apenas pessoas cujo campo de visão não ultrapassa a corrupção moral ao seu redor podem se atrever a fazer tais acusações. Na Província do Reno, por exemplo, essas acusações são consideradas ridículas e são vistas, na maioria das vezes, como prova de que até mesmo a ideia de relacionamentos morais pode ser perdida, e todo fato moral considerado um conto de fadas ou uma falsidade. Isso é o resultado direto de leis que não são ditadas pelo respeito aos seres humanos; é um erro que não é eliminado pelo desprezo pela natureza material do homem, tornando-se desprezo por sua natureza ideal e exigindo obediência cega a uma autoridade sobrenatural e super-moral em vez de subordinação consciente às forças morais e naturais.



O Projeto de Lei do Divórcio – Nota Editorial (Crítica de uma Crítica) [novembro de 1842]

Por Karl Marx, via marxists.org, traduzido por Gabriel Mauricci.

A crítica ao Projeto de Lei do Divórcio apresentada aqui foi traçada a partir do ponto de vista da jurisprudência renana, assim como a crítica publicada anteriormente (veja o Suplemento nº 310 da Rhein. Ztg.) foi baseada no ponto de vista e na prática da antiga jurisprudência prussiana. Uma terceira crítica ainda precisa ser feita, uma crítica a partir de um ponto de vista preeminentemente geral, o da filosofia do direito. Não será mais suficiente examinar as razões individuais para o divórcio, pro et contra. Será necessário expor o conceito de casamento e as consequências desse conceito. Os dois artigos que publicamos até agora concordam em condenar a interferência da religião em questões de direito, sem, no entanto, expor em que medida a essência do casamento em si é ou não religiosa, e sem, portanto, ser capaz de explicar como o legislador consistente deve necessariamente proceder se for guiado pela essência das coisas e não puder estar satisfeito apenas com uma abstração da definição dessa essência. Se o legislador considera que a essência do casamento não é a moralidade humana, mas a santidade espiritual, e coloca, portanto, a determinação de cima no lugar da autodeterminação, uma sanção sobrenatural no lugar da consagração natural interna, e no lugar da subordinação leal à natureza do relacionamento coloca a obediência passiva aos mandamentos que estão acima da natureza deste relacionamento, então este legislador religioso pode ser culpado se também subordinar o casamento à igreja, que tem a missão de implementar as demandas e reivindicações da religião, e se colocar o casamento secular sob a supervisão das autoridades eclesiásticas? Não é essa uma consequência simples e necessária? É uma autoilusão acreditar que o legislador religioso pode ser refutado provando-se que uma ou outra de suas decisões é contrária à natureza secular do casamento. O legislador religioso não se engaja em uma polêmica contra a dissolução do casamento secular; sua polêmica é contra a essência secular do casamento, e ele procura, em parte, purificá-la dessa secularidade e, em parte, quando isso é impossível, deixar claro em todos os momentos para essa secularidade, como uma parte meramente tolerada, seus limites e contrapor-se à provocação pecaminosa de suas consequências. Totalmente inadequado, no entanto, é o ponto de vista da jurisprudência renana, que é astutamente exposta na crítica publicada acima. É inadequado dividir a natureza do casamento em duas partes, uma essência espiritual e uma secular, de tal forma que uma é atribuída à igreja e à consciência individual, e a outra ao Estado e ao senso de lei dos cidadãos. A contradição não é abolida sendo dividida entre duas esferas diferentes; pelo contrário, o resultado é uma contradição e um conflito não resolvido entre essas duas esferas da vida em si. E o legislador pode ser obrigado a adotar um dualismo, uma perspectiva de mundo dupla? Não é o legislador consciente que adere ao ponto de vista religioso responsável por elevar a autoridade única no mundo real e em formas seculares que este reconhece como verdade na espiritualidade e nas formas religiosas, e que adora como a única autoridade? Isso revela o defeito básico da jurisprudência renana, sua perspectiva dual do mundo, que, por uma separação superficial da consciência e do senso de justiça, não resolve, mas divide em dois os conflitos mais difíceis, que separa o mundo do direito do mundo do espírito, portanto, a lei do espírito, e daí a jurisprudência da filosofia. Por outro lado, a oposição ao Projeto de Lei atual revela ainda mais claramente a falta absoluta de fundamento da antiga jurisprudência prussiana. Se é verdade que nenhuma legislação pode decretar a moralidade, é ainda mais verdade que nenhuma legislação pode reconhecê-la como vinculativa na lei. A lei prussiana é baseada em uma abstração intelectual que, sendo em si mesma desprovida de conteúdo, concebeu o conteúdo natural, legal e moral como matéria externa que em si mesma não conhece leis e então tentou modelar, organizar e arranjar essa matéria sem espírito e sem lei de acordo com um objetivo externo. Trata o mundo objetivo não de acordo com suas leis inerentes, mas de acordo com ideias subjetivas arbitrárias e uma intenção que é alheia à própria matéria. Os antigos juristas prussianos mostraram pouca compreensão em relação a esse caráter da lei prussiana. Eles criticaram não sua essência, mas apenas características externas individuais de sua existência. Portanto, eles atacaram não a natureza e o estilo do novo Projeto de Lei do Divórcio, mas sua tendência reformista. Eles pensaram que poderiam encontrar na má moralidade uma prova de que as leis eram más. Exigimos da crítica, acima de tudo, que ela tenha uma atitude crítica consigo mesma e não ignore a dificuldade de seu objeto de estudo.

A equipe editorial da Rhein. Zeitung.

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