Por Carmen Susana Tornquist, para Desacato.info.
“Se o senhor e seu governo continuarem em silêncio diante da massiva mobilização social que atravessa todos os setores sociais do país, e que pedem a retirada do seu projeto, esta ausência de resposta – que constitui um grave problema democrático – levará sem dúvida, a uma situação que poderá ser explosiva. Diante de urgência deste momento e da gravidade das suas consequências, as organizações sindicais que compõe a Intersindical exprimem, juntas, o pedido de encontrá-lo”. É assim que os dirigentes da coalizão de centrais sindicais francesa (Intersindical) encerram a carta enviada ao Presidente Macron, no dia 8 de março, um dia depois da sexta jornada de lutas contra a reforma da aposentadoria (“Reforme des Retraites”). Na virada para o dia seguinte (24 horas do dia 9), o famoso artigo 7 da proposta defendida pelo “Renaissance” – partido do presidente – foi aprovado pelo Senado, contrariando olimpicamente o desejo expresso pela maioria da população francesa, segundo pesquisas de opinião, como as feitas pelo IFOP, e como expressam, evidentemente, os setores mobilizados da classe trabalhadora do país. Figuras públicas, do setor da cultura e da política, também tem se manifestado nos últimos meses, contra a proposta de Macron e demais partidos de direita, entre as quais a prefeita de Paris, Anne Hidalgo e a escritora Annie Ernaux. Do outro lado, os setores empresariais capitaneados pela MEDEF (a principal associação empresarial da França, presididas por Geoffroy Roux de Bézieux) repetiram à exaustão e com amplo apoio da mídia burguesa, a ideia de que as mudanças “apesar de duras”, serão necessárias, face à realidade demográfica do país, à escassez de recursos do Estado e momento difícil para a iniciativa privada. Narrativa acrescida da acusação, bem conhecida no Brasil, de que os servidores públicos são preguiçosos, vivendo às custas dos que realmente trabalham e se beneficiando, apenas eles, do fundo público.
O artigo 7 contém o pior aspecto da proposta de Macron aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, fazendo avançar a idade mínima para 64 anos (atualmente, ela é de 62 anos). Há uma série de outros pontos polêmicos, como o tempo de contribuição que passaria para 43 anos(!), as especificidades das diferentes categorias profissionais (bombeiros, por exemplo, também paralisados) tendo em vistas critérios de penosidade e periculosidade e as diferenças entre homens e mulheres. Após horas de uma sessão extremamente tensa, com discursos inflamados por parte da oposição, ecoando a marcha nas ruas, e manobras regimentais para evitar o debate, entre as quais impedimento de envio de centenas de emendas (tática adotada pela esquerda) a maioria dos senadores (201) contra 115 e 29 abstenções, aprovou, como era previsto, este item do texto. As posições de rechaço à proposta da aposentadoria por parte da esquerda (França Insubmissa, Partido Comunista, Partido Socialista, Ecologistas, etc.) envolve tanto rechaços “pontuais” (como o artigo 7) quanto a retirada integral de todo o projeto, que provavelmente será o proposta da esquerda a partir de agora.
A Intersindical, junto com milhares de outras organizações políticas do país (aí incluídas feministas, ecologistas, estudantis, até religiosas, etc.) segue empenhada em radicalizar o movimento: nova mobilização está prevista para o dia 11 de março, ou seja, este sábado, mas é importante sinalizar que, na França, neste momento, a mobilização social é muito mais do que fazer amplas passeatas pelas ruas ou decorar a cidade com grafitis, cartazes e panfletos com materiais explicativos: trata-se de realmente fazer o país parar(“Bloquer tout”). Estima-se que no dia 7 de março, 3,5 milhões de pessoas participaram das marchas públicas contra a reforma em todo o país, ao mesmo tempo em que avançou a greve por tempo indeterminado nos setores de transportes, de limpeza, educação e saúde entre outros. No setor de energia(hidrelétricas, centrais nucleares e refinarias de petróleo) segundo informe da CGT- Minas e Energia, em alguns casos, envolvendo até 80 % dos trabalhadores.
Na boa tradição do sindicalismo classista, significa sustentar greves nos diversos setores da economia, seja no âmbito publico quanto privado: nesta via, deve-se apontar que o estado de greve indeterminado em várias categorias já é uma realidade no país desde o dia 3 de março, quando começaram as primeiras paralisações dos setores de transporte e de energia, que foram crescendo a medida em que o dia 7- a sexta jornada de luta deste ano – ia se aproximando.A paralisação parcial dos serviços e transportes (sobretudo SNCF, responsável por todo o sistema de transporte férreo, mas também a Air France) junto com educação, saúde, limpeza urbana, etc. articulou-se com a paralisação de grandes refinarias e portos em diversas áreas do país, expressando a consciência da classe verdadeiramente produtora – que garante a reprodução a vida do país, ainda que na França como em tantas outras partes do mundo, seja visível o rebaixamento da luta de classes e a perda de radicalidade do movimento sindical. Expressão disto é, evidentemente, a aprovação de recente Reforma doTrabalho (em 2016) e as diversas reformas da previdência que já foram colocadas em prática, desde 1990, e o papel que jogaram nestes processos os partidos considerados “de esquerda” eas próprias centrais sindicais. A própria CGT, baluarte de uma classe trabalhadora avançada – e até mesmo exemplar, para os países periféricos – é uma pálida lembrança do que foi nos anos do entre guerras, quando a mobilização sindical era a principal via de luta da classe trabalhadores e um portentoso sistema social foi constituído no país. Fruto de um longo e complexo processo, no qual persistiram no combate várias organizações trotskistas marxistas leninistas, anarco-sindicalistas e outras, buscando, cada qual a sua maneira, manter viva a consciência de classe, que parece estar de volta, agora, no dia a dia do povo que vive na França. Cabe ressaltar que estão aí compreendidos os milhares de migrantes dos países periféricos, que compõe significativa parcela da classe trabalhadora do país. Processo complexo, é fato, que decorre não apenas de crise de direção- ainda que estas sejam notáveis- mas das mudanças profundas que o avanço do capital provocou no Estado, no mundo do trabalho e no campo da ideologia. A fragmentação sindical, que se expressa na existência de várias outras centrais (FO, CFTD, Solidaires, Sud), todavia, em momento de crise extrema, como o vivido nos últimos anos, começa a ser superada, de certa forma, pela criação de ações e grupos como a Intersindical, cuja unidade se faz na própria mobilização, como o que vemos na cena hoje. Ao mesmo tempo, uma ampliação das questões envolvendo a precaridade crescente do mundo do trabalho se impõe, a cada dia: a reaparição da questão de gênero na pauta sindical, que remete à questão das mulheres , na virada do XIX para o XX, a ecológica e climática, a das migrações, que repõe na cena política o tema da raça e da colonialismo, em suas contemporâneas configurações. Assim, esta semana de março que ainda não terminou foi composta por um intenso e articulado calendário: greves e marchas contra a reforma da previdência do dia 7, seguidas das mobilizações das mulheres(dia 8), estudantil (dia 9), e marcha sobre o câmbio climático no dia 10. Todo o calendário desta semana tendo sido tomado pelo rechaço massivo do povo à reforma macronista, com ampla participação da juventude, ciente do absurdo de ter a sua frente um futuro de precariedade e penosidade (no trabalho e na vida). A postura à la “egípcia” de Macron, que até hoje não se dispôs a receber nenhuma representação sindical, parece estar contribuindo com o desgaste de sua figura, ao mesmo tempo em que cresce “la colère” do povo, até mesmo aqueles que acreditavam piamente no regime democrático-representativo, ilusão que caiu por terra com a votação no Senado. Assim, como costuma acontecer em certos momentos, e bem além das eleições, a reforma da previdência francesa escancara e opõe, de forma clara, dois grandes polos da nação. O Le Monde divulgou hoje o que chamou de “a insolente saúde das principais multinacionais francesas”: 38 das 40 principais empresas multinacionais francesas acumularam mais de 153 bilhões de euros em 2022, tendo crescido, ainda mais, com relação à 2021.
As cartas estão sendo jogadas, e dia após dia: observemos atentos o que se passará, então, nesta sétima jornada de lutas contra a Ordem, no país.