Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.
Até o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, Brasil tinha no manejo das relações internacionais um dos seus principais motivos de orgulho. Líder territorial, econômico e da política internacional da região, era um país regulador e termómetro da estabilidade, com uma relativa independência com relação aos desígnios de Washington e da União Europeia.
A política externa brasileira, baseada em boa parte na acumulação articulada do Foro de São Paulo, refletiu notavelmente na construção da UNASUL e da CELAC, fortaleceu o Mercosul e, especialmente, destacou-se na construção do BRICS. A região se beneficiou política e economicamente das posturas internacionais do Brasil. Houve um posicionamento sempre claro em favor da não intervenção e pelo respeito à autodeterminação dos povos. Brasil defendeu sempre a não interferência e foi chave em outros aspectos sensíveis, apesar das pressões sempre existentes do imperialismo norte-americano.
Quando o país foi assolado pelo governo canalha de Jair Bolsonaro, as relações internacionais, antes exemplares, transformaram o Brasil num país pária e ridicularizado nos corredores de todas as organizações. Apêndice farsesco do governo de Donald Trump, Brasil se constitui em uma das lideranças dos governos fascistas e do crescimento das ultradireitas no mundo. A mentira, a covardia, o ridículo e abandono total das antigas práticas tiraram o Brasil do mapa das melhores democracias e o país se transformou em chacota das mídias internacionais.
Esperava-se que com o retorno do presidente Lula não se cometessem erros graves que pudessem manchar a reputação que, mesmo antes de assumir, o próprio mandatário começou a recuperar rapidamente. Mas, bem, quem sabe uma frente tão ampla no Planalto e a velha busca “governabilidade”, além das terríveis urgências econômicas estão aí, para colocar cascas de banana no caminho governamental.
O Ministério de Relações ficou de novo nas mãos do Embaixador Mauro Vieira, que já tinha ocupado a pasta durante o governo de Dilma Rousseff. Antes foi nomeado embaixador do Brasil nos Estados Unidos de 2010 a 2015. De 2015 a 2016, foi então ministro das Relações Exteriores da presidenta Dilma Rousseff. Em 2016, depois do golpe, o Senado aprovou sua nomeação, pelo presidente Michel Temer, para o cargo de representante permanente do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU). Antes de ser ministro do presidente Lula, Vieira era embaixador na Croácia desde 2018. Ativo e sinuoso currículo. E sua orientação na primeira votação na ONU foi um desrespeito à política dos anteriores governos do presidente Lula, e quando menos, se revisamos os discursos recentes do presidente, surpreendente.
O voto de dias atrás na Assembleia Geral das Nações Unidas -ONU-, conglomerado mundial amarrado ao veto das grandes potências, é no mínimo deplorável. O Brasil aderiu-se à resolução que condena Rússia e exige que esse país retire de forma imediata, completa e sem condições a totalidade das suas forças militares da Ucrânia. Não terá esse voto brasileiro esquecido do avanço armado da OTAN, o instrumento europeu dos Estados Unidos, nos arredores da Rússia, desde o fim da União Soviética? Esqueceu o golpe de 2014 que impôs o nazismo em Kiev com a participação zambelliana de Victoria Nuland, diplomata norte-americana, que atualmente ocupa o posto de subsecretária de Estado para assuntos políticos, distribuindo bolinhos e biscoitos às juventudes fascistas na Praça Maidan? Ou o massacre de trabalhadores na central sindical contrária ao golpe organizado pela “revolução colorida” a serviço dos interesses dos Estados Unidos que deixou mortos e feridos?
A posição brasileira não leva à paz proclamada pelo presidente Lula da Silva, mesmo ele se oferecendo para mediar no conflito eurasiático. Apenas denota que a pauta econômica emergencial escolhida como ponto central, e legítimo depois da tragédia bolsonarista, pelo governo, o leva a erros que se podem pagar muito caro no presente e no futuro em um cenário onde os Estados Unidos não é mais o único chefão do mundo, um mundo multipolar como o próprio conflito na Ucrânia deixa claro. Inesperadamente, aquele Brasil mais ou menos neutral, articulador da crescente autonomia dos povos do sul global com relação ao imperialismo norte-americano e ao colonialismo ainda existente dos países europeus, ficou de joelhos e quem fica de joelhos precisa rezar, mas hoje é para outros santos.
O anunciado refortalecimento do Brics tem um ator decisivo para a economia brasileira: a China. Essa China tem relembrado nos últimos dias que não existe país que mais tenha invadido territórios e levado a guerra pelo mundo como os Estados Unidos. Só durante 16 anos da sua existência, de quase 244 anos, o país nortenho não esteve envolvido em guerras. Guerras por sinal muito lucrativas. Como o está sendo a guerra na Ucrânia que ajudou e ajuda muito a economia estadunidense em diversas áreas, além de lhe reforçar o poderio encima da instrumentalizada União Europeia, seu robô de guarda na OTAN.
A China, além de ser sócio estratégico para a economia brasileira no presente, é o maior e melhor sócio possível pensando no futuro, mais ou menos imediato. O novo mundo multipolar tem a China como líder e ponto de equilíbrio das relações políticas e comerciais do planeta. Mas o Brasil decidiu de forma inexplicável votar com o principal inimigo da China, os Estados Unidos. Como isto influirá nas relações com o Brics, onde a Rússia e a Índia são os outros sócios de destaque? Exatamente o Brics, que são a angústia cotidiana dos Estados Unidos na sua luta desesperada por manter uma hegemonia superada, vetusta e violenta.
Pelo visto o Brasil acenou um retorno de aceitação da política intervencionista dos Estados Unidos, o que também pode trazer problemas com alguns países amigos históricos dos governos petistas e com outros amigos recentes da América Latina. Países que tem fortes relações comerciais com a China e a Rússia e que dependem dessas relações para superar o caos social e econômico herdado de governos conservadores.
Se o Brasil buscou ser duvidosamente pragmático e agradar os Estados Unidos o tempo dirá, agora, o voto já aconteceu e a ajoelhada será lembrada e faturada pelos outros sócios comerciais da Eurásia e do Oriente.
Edição, arte e publicação: Tali Feld Gleiser.
Raul Fitipaldi é jornalista e cofundador do Portal Desacato e da Cooperativa Comunicacional Sul.
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