Por Tatiana Dias, para The Intercept.
Certa vez, em 2012, eu estava em Nova York a trabalho e fui passar uns dias na casa de uma amiga, mas a viagem foi interrompida por um furacão. Dois dias antes da passagem do Sandy, como foi batizado, já estávamos comprando comida e água e assistindo à TV, que emitia alertas 24h. O clima era de tensão. “Hope for the best, prepare for the worst” (espere o melhor, se prepare para o pior), disse o apresentador na televisão, em uma frase que jamais esqueci.
Passamos dois dias em casa à espera. Perto de onde estávamos, um bairro de classe média, árvores caídas e casas destelhadas. Onde estávamos preparados, não havia inundação, desabastecimento e destruição como previsto. Longe dali, porém, os estragos foram imensos – 18o vítimas, a maioria pessoas pobres nos EUA e também no Haiti.
Lembrei dessa história ao ver um tuíte do jornalista Pedro Burgos criticando a maneira como os alertas foram ignorados pela mídia paulista. Nenhuma manchete, nenhum sinal, nada indicava uma tempestade e tragédia daquela magnitude no litoral norte de São Paulo no sábado de carnaval. Na GloboNews, o apresentador ainda mandou um “não se assuste, continue animado, vai dar tudo certo” ao mencionar o ciclone extratropical que se aproximava. “Esse mapa não vai nos atrapalhar nesse carnaval. Isso aqui é tudo chuva”.
Não era apenas chuva. Era um evento climático extremo, que matou pelo menos 50 pessoas, desabrigou mais de 700, e explicitou o apartheid do litoral paulista (e do Brasil, onde a história segue se repetindo). Do lado do mar, a tempestade destruiu, sim, mas nada se compara com o que aconteceu na subida das encostas, do outro lado da BR-101, onde a população pobre que trabalha no turismo é empurrada pelo alto preço dos terrenos. Barra do Una, Barra do Sahy, Cambury, Boiçucanga, todas aquelas praias têm a mesma dinâmica de ocupação, em um processo que dura décadas e continua acontecendo, atravessado por diferentes governos e prefeituras.
O Ministério Público de São Paulo avisou que as ocupações irregulares, especialmente a Vila Sahy, epicentro do desastre, eram uma tragédia anunciada. A prefeitura culpou as gestões anteriores e disse não ter recursos para regularizar todas as ocupações. Qualquer um que já visitou aquelas praias – cheias de condomínios de luxo – pode imaginar que recursos não deveriam ser o problema.
O prefeito de São Sebastião, o tucano Felipe Augusto, ainda contou que até tentou fazer um projeto de moradias populares em Maresias, mas o plano afundou após protestos dos moradores. A justificativa da Sociedade Amigos da Praia de Maresias era que o local não tinha saneamento básico. Fábio Wajngarten, ex-ministro da Secom de Bolsonaro – e proprietário de uma casa lá – era um dos presentes na reunião. Na quinta, os moradores rebateram o prefeito, e criticaram a tentativa de jogar a culpa nos “ricos”.
Mas a culpa, na verdade, está sobrando para os pobres. “Muitas áreas de risco são ocupadas com apoio de candidatos a prefeito e vereador que manipulam os mais pobres prometendo regularização futura em troca de votos na sua eleição”, tuitou Ricardo Salles, ex-ministro de Meio Ambiente de Bolsonaro e ex-secretário de Meio Ambiente de São Paulo (foi um posicionamento semelhante ao que ele fez na tragédia de Petrópolis, só para registro).
A visão classista do ex-ministro ignora todo o processo de ocupação daquele trecho do litoral, que ele deveria conhecer bem. E ignora também o processo de eventos climáticos extremos, que sempre atingem de forma mais dura a população mais pobre e negra. E continuarão atingindo, se não houver políticas perenes de habitação segura para essa população.
No caso da tragédia de sábado, não foi só o Ministério Público que havia avisado. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas já havia feito um relatório emitindo alerta para casas em locais de risco. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais também avisou que a chuva tinha potencial catastrófico. A Defesa Civil também emitiu alertas ao governo estadual e à prefeitura.
Quem se importou?
Tarcísio emitiu alertas via SMS para a população avisando sobre “chuvas isoladas com ventos e raios” – e os avisos chegaram apenas a pouco mais de 10% dos moradores. A prefeitura de São Sebastião só publicou algo nas redes sociais no domingo às 7h, quando pessoas já estavam soterradas. A mídia? Nada que indicasse a calamidade antes dela acontecer. Quantas vidas poderiam ser salvas se houvesse alertas efetivos, abrigos, uma Defesa Civil preparada, uma política para evitar turismo naqueles dias?
Foi a maior tempestade da história, sim, mas o desastre em São Sebastião não foi culpa apenas da chuva. Como quase toda grande tragédia, teve uma cadeia de omissões e irresponsabilidades. E não foi um evento isolado. Quem vai morrer da próxima vez que escrevermos “tragédia anunciada” em uma notícia de jornal?
Obs: a opinião da autora não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.