Por Marco Vasques, para Desacato.info.
Ao terminar a leitura do livro Tia Gorda e Tia Magrinha na Guerra do Paraguai e outros contos de guerra, sonho, amores, de José Eduardo Degrazia, o leitor, muito provavelmente, vai entrar num estado de silêncio. Contudo, não se trata de qualquer silêncio, mas aquele que é a matéria primeira da poesia e da escrita. O poder e o impacto da escritura se impõem quando arranca o leitor da agitação corpórea cotidiana; quando transporta o nosso espírito para os abismos mais profundos e quando aproxima quem lê das suas experiências e dos seus temores mais delicados. Então, para começo de conversa, basta dizer que o livro de Degrazia, composto por 24 narrativas breves, consegue deslocar o corpo e o espírito do leitor para dentro da experiência sensível e da experiência estética. Em resumo: é um baita livro! Contudo, para aguçar a imaginação de novos possíveis leitores, se faz necessário um pouco mais.
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Quando cruzei as páginas finais do livro, fui tomado por um estado de espanto, para fazer uma breve referência ao tio Platão. Num instante fui parar dentro de duas peças de Bertolt Brecht: Os Fuzis da Senhora Carrar e Mão Coragem e seus Filhos. Na primeira, Thereza Carrar, após perder o marido que lutou contra o fascismo franquista, resolve esconder as armas do marido e proteger seus dois filhos de terem o mesmo destino do pai. Na segunda, temos uma comerciante de destroços de guerra e de outras mercadorias que transita entre os campos de batalha fazendo negociações com o objetivo de, também, salvaguardar e sustentar seus filhos. Ela acaba os perdendo, num fim bastante didático, para o conflito que a sustentava.
Degrazia traz em seu livro o que podemos chamar de guerras dentro da guerra, algo que Brecht sempre fez em sua dramaturgia com maestria. Talvez por isso, ao terminar de ler Tia Gorda e Tia Magrinha na Guerra do Paraguai, meu espírito tenha, de súbito, adentrado de forma automática nas peças do dramaturgo alemão.
Comerciantes, donos de bares, jogadores, imigrantes europeus, bugres, ladrões de galinha, senhoras e senhores prenhes de memórias, travessias, oficiais, pequenos delinquentes, lembranças de família, núcleos familiares desajustados, viventes solitários e identidade geográfica surgem nos breves textos que compõem a primeira parte do livro. Indagado sobre a origem das narrativas, Degrazia afirma: “praticamente todas as narrativas dos contos ou foram vividas, ou presenciadas por mim. Outras, me foram contadas pelos meus pais e tios que viveram aquela fronteira há quase cem anos. Desde pequeno passava férias nas casas dos meus avós em Itaqui e escutava aquelas histórias de guerra, revolução e contrabando. Via, também, a faina nas estâncias, e o movimento das barcas no rio Uruguai, que transportavam pessoas e mercadorias”.
É do rescaldo da oralidade, da vivência e da memória que as escrituras são tramadas, numa linguagem que privilegia a poesia existente na paisagem humana, a linguagem característica da região fronteiriça, a relação do homem com lugares de passagem e, sobretudo, a síntese verbal que caracteriza a prosa de José Eduardo Degrazia. O leitor, como acentuou o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, está diante de “histórias que envolvem a gente da fronteira Sul do Brasil, nos seus teres e haveres, nos seus episódios bélicos, nos seus contrabandos, nos bolichos povoados de bandidos que bebem cachaça e estão prontos a usar seus revólveres e adagas, tudo isso entremeado por amores ásperos e carnais”. Acontece que essas diatribes interiores são, também, pano de fundo para indagar, muito mais que revelar, as consequências que um mundo organizado em disputas e confrontos geopolíticos traz na formação e na vivência das gentes expostas às violências organizadas nos gabinetes de guerra.
UMA GUERRA, TODAS AS GUERRAS
A segunda seção do livro apresenta quatro textos que trazem como referência espacial outro contexto, não menos bélico e violento. Contos como “O trem da morte” e “Amor e política” nos colocam diretamente dentro de acontecimentos que ensejaram o nascimento e a instauração das ditaduras militares ocorridas na América Latina. Mais uma vez, o gabinete da guerra e do ódio passam a atravessar a vida dos personagens. Num trânsito entre relato pessoal e construção ficcional, Degrazia expõe as cruezas que a maquinaria do fascismo e do autoritarismo são capazes de produzir: morte, separação, perseguição, violação de direitos, miséria, fome, exílio, tortura e toda sorte de atrocidades que imaginávamos estacionadas no passado. Mas, como disse Millôr Fernandes, “o Brasil tem um enorme passado pela frente”.
Luiz Antonio de Assis Brasil já disse que os contos presentes na obra de Degrazia são “a mais alta expressão que a literatura pode abrigar”. Cabe acrescentar, sobretudo no momento em que toda sorte de violência social se avoluma sobre nossas vidas; no momento em que o fascismo escancara seu instinto de morte e guerra; no momento em que se insiste na sanha destruidora de povos originários e na tentativa de aniquilamento das diferentes alteridades, Tia Gorda e Tia Magrinha na Guerra do Paraguai e outros contos de guerra, sonho, amores é mais que um livro de contos. Estamos diante de livro-ferida, de um livro-fogo pronto para queimar, mas também acariciar a vida e o corpo do leitor. Porque ele afirma que uma guerra não é só uma guerra e que estamos espelhados em todas as guerras, das mais próximas às mais distantes.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato e tem o programa semanal Cismos de Arquipélagos toda quinta às 20:00 h.
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