Caso Lojas Americanas: como “fazer dinheiro” a partir de dinheiro. Por José Álvaro Cardoso.

Imagem: Joseph V M por Pixabay

Por José Álvaro Cardoso, para Desacato.info.

A Americanas S.A., uma das maiores companhias do varejo nacional, há cerca de um mês emitiu um Fato Relevante ao mercado, comunicando a existência de “inconsistências contábeis” em demonstrações financeiras de exercícios dos últimos anos, incluindo 2022. Tais “inconsistências”, que alcançam a cifra impressionante de cerca de 20 bilhões de reais, não refletem ainda segundo a empresa, todos os possíveis impactos do problema. Conforme o texto divulgado pela Companhia a contabilização das operações de “risco sacado” (que acontecem quando um banco fornece crédito para pagamento de produtos de fornecedores), teria sido realizada de forma inadequada.

A empresa tomava empréstimos dos bancos para efetuar compras dos fornecedores mediante pagamento à vista, contraindo dívidas sobre as quais pagava juros. Na contabilização de parte das operações, nos últimos anos, os valores não foram inseridos na conta de dívida bancária da empresa e, sim na conta de fornecedores, como se não houvesse a intermediação dos bancos no processo. Ou seja, maquiavam os balanços, visando acessar condições de crédito mais favoráveis.

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Os números divulgados impressionam. A companhia vale atualmente R$ 1,3 bilhão na bolsa de valores brasileira. O valor da dívida da empresa no pedido de recuperação judicial, é de R$ 43 bilhões. Ou seja, a dívida vale trinta e tantas vezes mais do que o valor de mercado da companhia. No mês de janeiro o preço da ação da Americanas na bolsa caiu 85%, após a divulgação do rombo. Virou poeira. O grupo tem mais de 44 mil empregados diretos, contando com os empregos indiretos a estimativa é que chegue a mais de 100 mil trabalhadores. É muita gente prejudicada. Essa é a quarta maior recuperação judicial ocorrida no Brasil, atrás apenas de Samarco, Odebrecht e Oi.

Na lista de credores estão alguns dos mais importantes bancos do país: Deutsche Bank, Bradesco, Santander, BTG Pactual, Votorantim, Itaú Unibanco e Safra. Somente para essas 7 instituições financeiras, as Americanas devem quase 22 bilhões, metade da dívida total. A auditoria independente, responsável por auditar as contas das Americanas é a Pricewater House Coopers (atualmente PwC), uma das mais bem conceituadas do mundo. Como essa empresa de auditoria não detectou um rombo dessa magnitude, que ao que tudo indica, é resultado de fraude? Vale sempre lembrar que as agências de classificação de risco, que dão notas para países, empresas e negócios, estabelecendo assim sua credibilidade financeira, erraram olimpicamente na super crise global de 2008/2009.

No Brasil, há oito anos, precipitaram o golpe encabeçado por Michel Temer, rebaixando a nota do país em 2015, quando a economia apresentava superávit primário todo ano. Nos governos de Michel Temer e Bolsonaro, que destruíram a economia do país, não se ouvia falar nessas agências. Dá para entender a razão: elas estão ao serviço dos bancos e do imperialismo.

O impacto da crise das Americanas na economia pode ser grande, porque, além da economia já estar estagnada ou crescendo pouco há vários anos, na relação de credores da companhia há o envolvimento de diversas cadeias produtivas, especialmente ligadas aos setores de alimentos, eletrônicos e tecnologia. Isso deve afetar o crescimento e os empregos desses setores. As previsões de crescimento do PIB para este ano giram em torno de 1%. Ou seja, a crise das Americanas agrava uma situação que, em si, já é extremamente difícil.

Uma das bases do esquema das Americanas era o de atrasar pagamentos a fornecedores, em períodos acima da média do mercado (em média mais de 180 dias, metade de um ano). Isso que os donos das Americanas eram tidos como “exemplos de gestores”. A empresa pegava o empréstimo no banco a taxas mais favoráveis, mas não pagava o fornecedor, atrasava o mais que podia. O dinheiro, claro, não ficava parado, era colocado na especulação financeira. Ao mesmo tempo, iam manipulando o balanço, escondendo o nível de endividamento.

Esse sistema foi montado com indústrias, bancos e fundos, que tinham vantagens no modelo estruturado. Todos os segmentos do capital, ganhavam. É muito difícil que os parceiros da empresa, pelo menos uma parte, não tivessem conhecimento de possíveis práticas irregulares nas Americanas. Afinal os montantes envolvidos nessas operações eram cada vez maiores. A indústria emitia as faturas para pagamento, a Americanas atrasava meses, e assim as empresas industriais bloqueavam o fornecimento de mercadorias. Era um padrão que se repetia: quando atrasava muito, as vendas eram interrompidas, a companhia fechava um contrato de “risco sacado” para a dívida, e então destravava a linha para retomar o ciclo de vendas.

O objetivo dos donos da companhia não era obter lucro com a venda das mercadorias, mas “fazer dinheiro” a partir de dinheiro, fenômeno típico da fase de financeirização da economia. Só pessoas muito ingênuas podem acreditar que um esquema desses não tivesse conhecimento da antiga diretoria das Americanas e dos chamados acionistas de referência (Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles). A direção da empresa está chamando de “inconsistência contábil’ um golpe monumental na praça, contra os milhares de acionistas minoritários e o mercado de capitais brasileiro.

Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, com fortuna estimada em R$ 90 bilhões, um dos acionistas de referência das Americanas, é também um dos principais acionistas da Eletrobrás, privatizada no ano passado por Bolsonaro, em um processo cheio de ilegalidades. Os donos das Americanas são conhecidos por extrair de empresas o que é possível e depois “jogar a casca fora”. Costumam adotar métodos temerários de gestão visando ganhar o máximo de dinheiro no menor tempo possível. Não há nenhuma visão de geração de empregos, estratégia nacional, ou coisa que o valha.

O grande risco que corremos é o método predatório utilizado nas Americanas, já estar sendo desenvolvido na Eletrobrás. Nenhum país do mundo, que queira ser soberano, entrega o controle do seu sistema elétrico para a iniciativa privada, ainda mais para predadores. Energia elétrica não é o mesmo que os produtos vendidos pelas Americanas, que podem ser supridos pela concorrência. Um dos fundamentos da sustentabilidade econômica de um país é a sua capacidade de prover logística e energia para o desenvolvimento da produção, com segurança e em condições competitivas e ambientalmente sustentáveis. Sem alimentos e formas diversificadas de energia pública, não existe nação.

O caso das Americanas, e o fato dos compradores da Eletrobrás estarem diretamente envolvidos no processo, abre possibilidades concretas de revisão da privatização da Eletrobrás. Se o governo Lula, que está cercado por tubarões por todos os lados, quiser comprar essa briga fundamental, terá que se comunicar muito com a população e construir correlação de forças.

José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

 

 

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