O caso das Americanas e a reestatização da Eletrobrás. Por José Álvaro Cardoso.

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Por José Álvaro Cardoso, para Desacato.info.

A Americanas S.A., uma das maiores companhias do varejo nacional, há cerca de um mês emitiu um Fato Relevante ao mercado, comunicando a existência de inconsistências contábeis em demonstrações financeiras de exercícios dos últimos anos, incluindo 2022. Tais “inconsistências”, que alcançam a cifra de cerca de R$ 20 bilhões, não refletem ainda segundo a empresa, todos os possíveis impactos do problema. Conforme o texto divulgado pela rede a contabilização das operações de “risco sacado” (que acontecem quando um banco fornece crédito para pagamento de produtos de fornecedores), teria sido realizada de forma inadequada.

Ao que tudo indica, a companhia tomava empréstimos dos bancos para efetuar compras dos fornecedores mediante pagamento à vista, contraindo dívidas sobre as quais incidem juros. Na contabilização de parte das operações, nos últimos anos, os valores não foram inseridos na conta de dívida bancária da empresa e, sim, na conta de fornecedores, como se não houvesse a intermediação dos bancos no processo. Essa seria a fonte das alegadas inconsistências contábeis. Uma das consequências do processo é que os balanços dos últimos anos precisarão ser republicados.

No período apurado ocorreu uma subnotificação da dívida bancária, o que levou a uma melhoria contábil dos indicadores de endividamento, desempenho e patrimônio das Americanas. Essa maquiagem do balanço possibilitou inclusive o acesso da empresa a condições de crédito mais favoráveis (volume de empréstimos, prazos e juros cobrados) do que aconteceria se a contabilização tivesse sido realizada de maneira correta.

Os números divulgados até agora impressionam. A companhia tem atualmente o valor de R$ 1,3 bilhão na bolsa de valores brasileira. O valor da dívida da empresa no pedido de recuperação judicial, que foi aceito pela justiça em 19 de janeiro último, é de R$ 43 bilhões. As “inconsistências contábeis” nos balanços da Americanas, ao longo os últimos anos, em relação às dívidas com fornecedores, alcança, conforme mencionado, R$ 20 bilhões. No mês de janeiro o preço da ação da Americanas ON na bolsa caiu 85%, após a divulgação do rombo. As agências de classificação de risco, como Fitch, S&P e Moody’s, rebaixaram as notas de crédito da Americanas – o que ocorreu novamente após o pedido de recuperação judicial da empresa, em 19/01/2023. O grupo tem mais de 44 mil empregados diretos. Contando com os empregos indiretos a estimativa é que chegue a mais de 100 mil trabalhadores (segundo o Comunicado ao Mercado – Americanas S.A. – Petição Judicial – 19/01/2023). Segundo dados de especialista do mercado acionário essa é a quarta maior recuperação judicial ocorrida no Brasil, atrás apenas de Samarco, Odebrecht e Oi.

Na lista de credores publicada pela empresa no processo de recuperação judicial, estão alguns dos mais importantes bancos do país: Deutsche Bank: R$ 5,2 bilhões; Bradesco: R$ 4,5 bilhões; Santander Brasi: R$ 3,6 bilhões; BTG Pactual: R$ 3,5 bilhões; Votorantim: R$ 3,2 bilhões; Itaú Unibanco: R$ 2,7 bilhões; Safra: R$ 2,5 bilhões; Banco do Brasil: R$ 1,3 bilhão; Caixa Econômica Federal: R$ 501 milhões (ver Síntese Especial: subsídios para debate nº 12, divulgado pelo DIEESE em 1º de fevereiro).

Um efeito do processo das Americanas foi a queda da credibilidade das auditorias chamadas independentes, como a Pricewater house Coopers, uma das mais conceituadas do mundo, responsável pela revisão das demonstrações da Americanas. Como a empresa de auditoria não detectou um rombo dessa magnitude, possivelmente resultado de fraude? Vale sempre lembrar que as agências de classificação de risco, que dão notas para países, empresas e negócios, estabelecendo assim sua credibilidade financeira, falharam olimpicamente na super crise global de 2008/2009. Elas deram boas notas para operações de vendas de hipotecas imobiliárias nos EUA que afundaram bancos e investidores e geraram a grande crise financeira daqueles anos, com profundos reflexos nos anos subsequentes.

Em setembro de 2008, por exemplo, o governo norte-americano resgatou de uma falência certa as duas maiores financiadoras imobiliárias do país, Freddie Mac e Fannie Mae. A avaliação do governo à época, George Busch, era de que a falência de ambas paralisaria o setor completamente, talvez por anos. Uma das maiores crises financeiras da história do capitalismo, com efeitos que duram até hoje e as agências não perceberam, ou fizeram vista grossa para a situação. Às vésperas do estouro, as empresas estavam com notas excelentes, o que é uma ironia e mostra que essas agências pouco servem para fiscalizar a situação real das empresas.

Mais recentemente, em 2015, a agência Standard & Poor’s rebaixou o Brasil em sua avaliação sobre os riscos do país, o que significou instabilidade e fuga de bilhões de dólares de investimentos, acirrando ainda mais a crise política, que culminou no golpe de 2016 dado sobre a presidente Dilma Rousseff. Rebaixaram o Brasil em um período que havia superávit primário todo ano, possivelmente o período mais longo de superávit primário ocorrido no país, após a ditadura militar. Curiosamente, nos governos Temer e Bolsonaro, frutos de um golpe, que tomaram medidas que afundaram o país, não se ouviu falar em agências de risco.

Essa empresa que avaliava as Americanas, S&P, Pricewater House Coopers (atualmente PwC, nome adquirido em 1998 por uma fusão entre duas empresas) há alguns meses foi ré em um processo movido pelo Departamento de Justiça dos EUA, que acusou a agência de ter mascarado o grau de risco de investimentos nos chamados papéis sub prime, os vilões da crise financeira desencadeada em 2008. Segundo as acusações a empresa teria propositalmente ocultado chances de prejuízos. Em um acordo extrajudicial anunciado em 3 de fevereiro, a S&P concordou em pagar ao Tesouro americano o equivalente a quase US$ 1,4 bilhão (mais de R$ 7 bilhões pela cotação atual).

Os bancos têm sempre um comportamento pró-cíclico, ou seja, em momentos de incerteza econômica, tendem a adotar comportamento conservador, segurando o crédito e elevando as taxas de juros. Conforme uma frase muito conhecida, um banco é um estabelecimento que nos empresta um guarda-chuva num dia de sol e nos pede de volta quando começa a chover. Ou seja, os bancos só querem emprestar com razoável garantia de que irão receber o dinheiro de volta.

No caso do Brasil isso é um pouco pior, porque os juros da dívida pública garantem uma “vida doce” aos banqueiros, que ganham muito dinheiro com os maiores juros do planeta. No ano retrasado 52% do orçamento público federal foi para pagar juros e amortizações da dívida, e os grandes bancos são os principais beneficiários desta ciranda paga pela população brasileira. Isso equivale a R$ 1,9 trilhão, imagina esse dinheiro em investimento social, ou nas áreas de Saúde e Educação. E é todo ano assim, 5% ou mais do PIB para engordar banqueiros.

O impacto da crise das Americanas na economia pode ser grande porque, além da economia já estar estagnada ou crescendo pouco há vários anos, na relação de credores da companhia há o envolvimento de diversas cadeias produtivas, especialmente ligadas aos setores de alimentos, eletrônicos e tecnologia, e outros. Isso deve afetar o crescimento e os empregos desses setores. Observe-se que as previsões de crescimento do PIB para este ano, até o momento, giram em torno de 1%, ou seja, a crise das Americanas piora uma situação que já é extremamente difícil.

Uma das bases do esquema da Americanas era o de atrasar pagamentos a fornecedores, em períodos acima da média do mercado – em média mais de 180 dias. A empresa pegava o empréstimo no banco a taxas mais favoráveis, mas não pagava o fornecedor, atrasava o mais que podia. E o dinheiro, muito provavelmente, era destinado à especulação financeira. Ao mesmo tempo, iam manipulando o balanço, escondendo o nível de endividamento. Esse sistema foi montado com indústrias, bancos e fundos, que tinham vantagens no modelo estruturado. É difícil aceitar que os parceiros da empresa, pelo menos uma parte, não tivessem conhecimento de possíveis práticas irregulares nas Americanas, já que os montantes envolvidos nessas operações eram cada vez maiores.

A indústria emitia as faturas para pagamento, a Americanas atrasava meses, e a indústria bloqueava o fornecimento de mercadorias. Era um padrão que se repetia. Quando atrasava muito as vendas eram interrompidas, a companhia fechava um contrato de risco sacado para a dívida, e então destravava a linha para retomar o ciclo de vendas. O objetivo não era obter lucro com a venda das mercadorias, mas “fazer dinheiro” a partir de dinheiro, fenômeno típico da fase de financeirização da economia.

Um grupo de 20 acionistas minoritários das Americanas, num universo de 146 mil acionistas minoritários, foram ao Judiciário contra a empresa e pediram o afastamento dos acionistas de referência da empresa, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, que detêm, sozinhos, 30,1% das ações da empresa. Esses acionistas minoritários acreditaram na Companhia e viram parte do seu patrimônio virar pó. É muito difícil que um processo dessa magnitude não tivesse ciência da antiga diretoria das Americanas e dos chamados acionistas de referência. A direção da empresa chamou de “inconsistência contábil’ um golpe na praça, monumental, contra os acionistas minoritários e o mercado de capitais brasileiro.

Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, com fortuna estimada em R$ 90 bilhões, um dos acionistas de referência das Americanas, é também um dos principais acionistas da Eletrobrás, privatizada no ano passado por Bolsonaro. Segundo analistas do mercado os donos das Americanas são conhecidos por extrair de empresas o que é possível e, depois, “jogar a casca fora”. Costumam adotar métodos temerários de gestão visando ganhar o máximo no menor tempo possível. Não há nenhuma visão de geração de empregos, estratégia nacional, ou coisa que o valha. Como têm apontado alguns especialistas independentes o grande risco é o método predatório utilizado nas Americanas, já estar sendo desenvolvido na Eletrobrás.

Nenhum país do mundo, que queira ser soberano, entrega o controle do seu sistema elétrico para a iniciativa privada, sendo esta mais ou menos predatória. Energia elétrica não é o mesmo que os produtos vendidos pelas Americanas. Um dos fundamentos da sustentabilidade econômica de um país é a sua capacidade de prover logística e energia para o desenvolvimento da produção, com segurança e em condições competitivas e ambientalmente sustentáveis. Sem alimentos e formas de energia não existe nação.

Existe uma ampla rede de credores e fornecedores em torno das atividades das Americanas, como vimos. São milhares de empresas e um contingente estimado em mais de 100 mil trabalhadores empregados direta e indiretamente, que muito provavelmente serão prejudicados ao longo do processo de recuperação judicial. O caso das Americanas, e o fato dos compradores da Eletrobrás, estarem diretamente envolvidos no processo, abre possibilidades concretas de revisão da privatização da Eletrobrás. Se o governo Lula, que está cercado por tubarões, quiser comprar essa briga fundamental, terá que construir correlação de forças.

José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.

 

 

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