Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.
Com o retorno da democracia e o Estado de direito no Brasil, na década de 80 nasceu o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Desde o início coube a ele um papel de destaque nas disputas teóricas, institucionais, sociais e políticas na defesa da Democratização da Comunicação. Décadas depois o papel do Fórum é mais complexo e os desafios com o avanço da tecnologia, o avanço das chamadas big techs e o uso desregulado das redes digitais e/ou sociais, são gigantes.
Para ampliar a discussão estratégica relativa à Democratização da Comunicação em todo o território nacional, estão sendo realizadas as plenárias regionais que vão desaguar na 24ª plenária nacional da rede. Formam parte do FNDC veículos, organizações e entidades filiadas em todo o país. A nossa Cooperativa Comunicacional Sul também está filiada na defesa do Direito Humano à Informação em Santa Catarina e no país.
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Levando em consideração a enorme relevância que tem para a democracia a informação, a educação e a formação transformadora da sociedade brasileira, colocamos à disposição dos leitores a “Tese-guia de Análise de Conjuntura” da 24ª Plenária Nacional, que está sendo discutida nos diferentes estados, e terá debates e acréscimos apresentados pelas delegadas e delegados que resultarem escolhidos por cada regional. Boa leitura!
XXIV Plenária Nacional do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) Março de 2023
Tese-guia de Análise de Conjuntura Mudança de governo é grande vitória, mas disputa entre projetos opostos exige mobilização permanente – Por uma agenda digital para as comunicações brasileiras
Os mais diversos setores comprometidos com a democracia no Brasil e o no mundo respiraram aliviados com a grande mudança na cena política, que representou a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, no processo da eleição presidencial brasileira. Um projeto de governo democrático e popular substituiu um projeto autoritário, elitista, genocida e destruidor das riquezas e da soberania do país.
Lula conseguiu aglutinar partidos políticos até então adversários e os mais amplos e diversos segmentos da sociedade, para fazer frente a uma disputa que, desde que fora anunciada, sabia-se que seria desigual, porque o adversário a ser enfrentado era, sabidamente, um criminoso, mas que tinha a máquina do governo federal nas mãos.
E foi a eleição mais difícil que o país enfrentou, desde a redemocratização, ocorrida nos anos de 1980, depois do longo período de 21 anos de ditadura militar. Lula e aliados (os históricos e os novos) enfrentaram o uso indiscriminado e criminoso da máquina do Estado, comandada por um governo autoritário, à margem da lei e sem qualquer escrúpulo.
O então presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, manteve, no governo, a política de desinformação, com a utilização de plataformas de comunicação destinadas à disseminação de notícias falsas e fraudulentas, o que foi um elemento-chave para a sua vitória eleitoral em 2018.
Mas com a máquina estatal nas mãos, Bolsonaro pôde mais. Ele utilizou o orçamento da união e aparelhou o Estado para se beneficiar na disputa. Determinou a realização de investimentos públicos com objetivo eleitoral, comprou parlamentares – notadamente do chamado Centrão – com a distribuição de recursos por meio de emendas secretas ao orçamento e abusou dos eventos de campanha, financiados com o dinheiro público, numa evidente prática de abuso de poder político e econômico.
O resultado foi uma disputa acirrada, mesmo depois de quatro anos de um governo que tentou (e em parte teve sucesso) destruir o Estado nacional, com o desmantelamento da estrutura governamental e o fim de políticas públicas voltadas à proteção das riquezas do país e de sua população e o combate à fome e à pobreza extrema. Foram desestruturadas as políticas contra a desigualdade social, de proteção aos povos originários e de enfrentamento à devastação ambiental, de saúde pública (milhões de eleitores esqueceram-se dos quase 700 mil mortos pela Covid-19) além das políticas da macro e da micro economia, que visavam o desenvolvimento econômico do país.
Um novo momento
Conquistada a vitória, o novo governo tem pela frente três grandes desafios: recuperar a institucionalidade destruída, reconstruir a democracia e retirar novamente o País do mapa da fome. Para tanto, é necessário começar pelo combate efetivo aos grupos de extrema-direita articulados e fortalecidos durante o governo Bolsonaro. A tarefa é complexa.
Os atos de terrorismo cometidos por bolsonaristas no dia 8 de janeiro, quando invadiram e destruíram as sedes dos três poderes da República, em Brasília, mostram a tamanho dessa complexidade, especialmente porque a extrema-direita tem lastro nas Forças Armados, nas polícias estaduais, no parlamento federal e em governos, como o de Ibaneis Rocha, afastado pela justiça do cargo de governador do DF, por não ter agido para conter os golpistas.
As primeiras medidas do governo Lula, entretanto, reafirmam a compromisso do presidente legitima e democraticamente eleito com o Estado brasileiro. Antes mesmo da posse, o Grupo de Transição articulou mudanças na proposta orçamentária para este ano de 2023. Foram garantidos recursos para a retomada da política de ganho real anual para o salário mínimo, recursos para o Bolsa Família (programa de transferência direta de renda para a população mais vulnerável).
Nem tudo, entretanto, está garantido, apesar do Programa de Governo aprovado nas urnas e da reafirmação constante, por parte de Lula, da necessidade de ações urgentes para a reconstrução nacional. A formação do governo levou em conta a chamada governabilidade, fazendo com que cargos de primeiro escalão fossem entregues até mesmo a partidos de direita, como é o caso do União Brasil.
É este partido que comandará o Ministério das Comunicações (MiniCom). Este foi um erro político que poderá custar muito caro ao governo e à sociedade. Ainda que parte da agenda da comunicação tenha sido transferida para a Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), comandada pelo petista Paulo Pimenta, o papel do MiniCom não deveria ter sido relegado.
Uma agenda dispersa
O governo acerta em apostar no sistema público de comunicação, ao propagar que a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) será fortalecida depois de retirá-la da lista de estatais a serem privatizadas. Mas isso não basta. É preciso discutir-se com profundidade a radiodifusão e as novas plataformas de comunicação, possibilitadas pela internet, cuja maior expressão são as redes sociais, os serviços de mensageria e de streaming, e também de comércio eletrônico.
Diante dessa múltipla realidade, o governo errou ao promover a dispersão da agenda digital em mais de 10 Ministérios. Enquanto o Minicom ficou com a digitalização da televisão, o cartório de outorgas, as políticas setoriais de telecomunicações e a inclusão digital do ponto de vista da infraestrutura, incluindo os poupudos recursos de dois fundos setoriais (FUST e Funttel), a Secom ficou com a supervisão da EBC e a Secretaria de Políticas Digitais, focada na agenda dos direitos na rede e não incluindo a parte econômica da necessária regulação das plataformas. De forma complementar, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, e sua recém vinculada Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), atuam também sobre a questão de proteção da privacidade online e da defesa do consumidor on-line. De outro lado, os Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação, do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços e da Gestão e Inovação em Serviços Públicos estão disputando a pauta relacionada com a transformação digital de governo e para as empresas brasileiras. De forma paralela, mas não menos importante, os Ministério da Saúde, da Educação, da Cultura, da Defesa, do Meio Ambiente e Mudança Climática e Agricultura, Pecuária e Abastecimento, criaram estruturas dedicadas à questão da inovação digital, gerando zonas de sombra e pouca complementaridade com as competências das primeiras Pastas. Some-se a isso a atividade cada vez mais “digital” dos órgãos reguladores envolvidos com a agenda – as Agências Nacional de Telecomunicações (Anatel) e Nacional do Cinema (Ancine) – e a atuação no desenvolvimento de aplicações de tecnologia da informação e comunicação como as realizadas por Serpro, Dataprev e Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e têm-se um panorama quase ingovernável.
A análise dos decretos de estrutura regimental e competências dos órgãos da Esplanada dos Ministérios, em Brasília, deixa claro que se o movimento social quiser trabalhar por uma agenda digital integral terá que dispender recursos para dialogar com todas estas unidades, que em muitos casos são dispersas até dentro de um mesmo Ministério, e tentar criar um fio condutor para gerar unidade e coerência entre todas estas políticas e entes públicos. Do contrário, teremos mais do mesmo e, muitas vezes, mais dos mesmos.
Uma possibilidade para enfrentar toda esta fragmentação institucional e política, é atuar pelo estabelecimento de um locus único de coordenação e governança para a agenda digital. Assim como está sendo feito com as questões climáticas, que terão uma autoridade própria para a coordenação da agenda ambiental, dada sua importância estratégica para todas as nações, o tema da economia e dos direitos digitais também precisa de uma estrutura localizada na Presidência da República capaz de dar força política para uma coordenação centralizada e uma governança descentralizada ao longo desta dezena de unidades. Só com esta demonstração de relevância programática, que deverá ter a participação ativa dos movimentos sociais organizados, o FNDC acredita que poderá existir legitimidade para que a agenda digital seja estabelecida e implementada de forma coerente, sem fragmentação ou dispersão.
Desafios à frente
A dispersão detalhada acima demonstra de forma cabal como a área da comunicação é o maior exemplo de como, mais uma vez, um governo eleito com um projeto democrático e popular está em permanente disputa. Nos 13 anos de governo do PT, Lula e Dilma não enfrentaram os poderosos da radiodifusão brasileira. No seu terceiro mandato, o presidente Lula continuará com esse desafio, acrescido de outro ainda maior: o da regulação das plataformas digitais.
Está comprovado que as chamadas Big Techs atuam e interferem drasticamente na comunicação, na cultura, na política e na economia. Não é mais possível que sigam agindo a partir de suas próprias regras, sem se submeter ao ordenamento jurídico dos países onde se fazem presentes e, muitas vezes, se sobrepondo aos estados nacionais.
Nesta agenda imprescindível para as comunicações e para a democracia, o FNDC deve manter seu protagonismo, atuando nacional e regionalmente para promover o debate democrático sobre a regulação e regulamentação dos setores de radiodifusão e Internet, para desenvolver proposições que atendam ao interesse público e para capacitar a sociedade para a crítica e a ação na ampla e diversa área da comunicação. Para isso, uma das tarefas urgentes é a atualização do programa do FNDC e a formulação de propostas para este novo momento da democratização da comunicação.
Edição e Publicação: Tali Feld Gleiser
Raul Fitipaldi é jornalista e cofundador do Portal Desacato e da Cooperativa Comunicacional Sul.
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