O Brasil não é uma “galinha dos ovos de ouro” apenas nas generosas transferências de recursos via mecanismos financeiros, cada vez mais complexos. Há todo um gigantesco aparato de envio de riquezas nacionais para os países imperialistas, que impede o país de decolar. São mecanismos típicos de economias subdesenvolvidas, mas que no Brasil costumam extrapolar todos os limites considerados “normais” internacionalmente.
Sobre isso, vale lembrar de uma ação, a Medida Provisória 795, mais conhecida como “MP da Shell”, encaminhada em novembro de 2017, em pleno governo Michel Temer. Essa MP criou um regime especial de importação de bens a serem usados na exploração, desenvolvimento e produção de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos, com benefícios fiscais para multinacionais petroleiras. Somente essa medida tenebrosa representará, em 20 anos a partir da aprovação, perda de receita para o Brasil na casa de R$ 1 trilhão. Somente em 2018, significou um prejuízo aos cofres públicos de R$ 16,4 bilhões. É impossível imaginar que Michel Temer encaminhou esse tipo de medida porque era um defensor ardoroso das ações ultra neoliberais previstas na “Ponte para o Futuro”.
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Um dos vetores das medidas encaminhadas após o golpe de 2016 tem sido o enfraquecimento do Estado, em termos econômicos e políticos, de todas as maneiras possíveis, na linha de uma política “ultra neoliberal” (seja lá o que isso signifique): privatizações de setores estratégicos, destruição dos mecanismos de crédito, sucateamento da educação e da saúde públicas, empobrecimento da população etc. O que estamos vendo, na realidade, é o enfraquecimento do Estado em suas funções públicas na área do crédito, da assistência social, da previdência etc. Em 2021 o banco central tornou-se independente, o que, nas condições do Brasil, significa uma brutal redução da capacidade de o Estado controlar a voracidade do capital financeiro que, no sistema jurídico anterior, ainda que muito precariamente, era realizada.
O ideário neoliberal prevê o máximo possível de liberdade para os capitais e o menos controle possível do Estado. A monumental fraude, recentemente denunciada nos balanços das rede varejista Americanas, mostra o que pode significar “liberdade total para os capitais” e o desmonte das estruturas de fiscalização do Estado. Aliás, sobre este caso observe-se que é quase impossível um golpe dessa magnitude ser ignorado pelos chamados acionistas de referência (que detêm parte significativa das ações, o que lhes possibilita intervir na gestão da companhia).
Sobre “liberdade e livre fluxo de capitais” vale lembrar um caso recente, que a essas alturas praticamente foi esquecido pela maioria, mas que tem muita relevância por caracterizar como o jogo funciona no nosso país. Em outubro de 2021, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês) divulgou documentos dentro da Pandora Papers, investigação sobre “refúgios fiscais”, realizada pelo citado Consórcio. Esta colaboração jornalística investigou milhares dessas offshores, abertas principalmente nas Ilhas Virgens Britânicas e cujos documentos foram entregues ao ICIJ por uma fonte anônima cerca de um ano antes daquela divulgação.
Os “refúgios fiscais” (chamados eufemisticamente de “paraísos fiscais”) são países que não tributam a renda ou que a tributam a uma alíquota inferior a 20%. Ou, ainda, nações cuja legislação proteja o sigilo da composição societária das empresas – mais de 60 países e territórios compõem essa lista. Os refúgios fiscais oferecem enormes vantagens a cidadãos de outros países que procuram cargas tributárias reduzidas ou nulas. Com a vantagem de proteger o anonimato do “investidor”.
Os super ricos colocam seu dinheiro em refúgios fiscais para: 1). esconder o dinheiro; 2. não pagar impostos; 3. para se proteger de medidas governamentais que impliquem em perda de patrimônio. Os refúgios fiscais são mais um dos inúmeros estratagemas utilizados pelos ricos para pagar menos impostos. Coisa que os pobres não conseguem fazer porque os tributos estão embutidos nos preços das mercadorias, ou pagam imposto na fonte, no caso da classe média.
Pelas informações divulgadas na ocasião descobriu-se que o presidente do Banco Central, Roberto de Oliveira Campos Neto, manteve 15 offshores por 15 meses depois de assumir o cargo no Banco. Ficou-se sabendo também que Paulo Guedes mantém nas Ilhas Virgens a quantia de US$ 9,55 milhões – mais de R$ 50 milhões (à época). Essas autoridades públicas, naquela ocasião, não só permaneceram em seus cargos, como deram uma ou outra desculpa esfarrapada, procurando minimizar o fato para dar a impressão de normalidade.
O fato indiscutível é que, mesmo debaixo de um capitalismo muito esculhambado como o brasileiro, essa é uma ação ilegal, com evidente conflito de interesses. Afinal, a desvalorização cambial em curso naquele momento, fruto das políticas antinacionais e antipopulares do Ministério da Fazenda e do Banco Central, tornou o ministro Paulo Guedes alguns milhares de dólares mais rico. Se isso não for um flagrante ilícito, o que mais conseguiria ser?
O escândalo Pandora Papers, denunciado sabe-se lá por quais interesses internacionais, reafirma a evidência de que o sistema capitalista, seja nos países centrais ou na periferia, é inerentemente corrupto, fato que é dissimulado o tempo todo. É uma ideia equivocada achar que apenas os “maus capitalistas”, escondem dinheiro em offshore. Alguns não fazem porque não podem, ou preferem outras formas de esconder e proteger suas fortunas, talvez mais seguras. Uma das características de refúgios fiscais, aliás, é não compartilhar informações com as autoridades de outros países.
Ter uma offshore não é crime no sistema capitalista, que defende a total liberdade do dono do capital. Se estima que 10% do PIB mundial se encontram investidos em empresas offshore mundo afora. As empresas offshore em regra servem para esconder o verdadeiro proprietário de ativos que podem ser financeiros ou não e podem ter origem “lícita” ou não, para os padrões do sistema capitalista. Se estima que a América Latina perca mais de US$ 40 bilhões em impostos a cada ano através do mecanismo de estruturas offshore. O Brasil é o país da região que mais perde impostos anualmente: cerca de US$ 15 bilhões.
Ironicamente, quando veio à tona que o ministro da Fazenda à época, mantinha R$ 51 milhões escondidos em um refúgio fiscal, o seu ministério se concentrava em aprovar a “reforma administrativa” no Congresso Nacional, cujo objetivo era destruir os serviços públicos e os salários dos “marajás” do funcionalismo, e a classe trabalhadora brasileira sofria o processo mais dramático de empobrecimento da sua história.
Do conjunto de medidas encaminhadas a partir do golpe de 2016 só temos a certeza de que medidas que vão contra os interesses da população. Consideremos, por exemplo, um tema que está no centro do processo golpista, o petróleo. O país dispõe de imensas reservas, bilhões de barris de petróleo, é o 10º produtor do mundo, o maior da América Latina, acima da Venezuela e do México. O petróleo é “ouro negro”, pois não tem substituto a curto prazo como matéria-prima e fonte de energia. Mas a parte do leão da renda petroleira fica com as multinacionais privadas, os bancos, que financiam o negócio e querem a maior margem de juros possível.
Se apropriam também da renda petroleira aas empresas estatais estrangeiras, que visam preservar a segurança energética de seus países. Preferem inclusive transportar o óleo bruto para refinar em seus países, agregando valor e gerando emprego qualificado na riquíssima cadeia do petróleo. E a renda petrolífera é apropriada também pelos especuladores da bolsa, seja aqui, seja em Nova Iorque. Com esse nível de transferência de recursos nacionais para interesses estrangeiros, é quase impossível o país se desenvolver e distribuir riqueza para o seu povo.