Governador engana ao dizer que garimpo não é causa principal de desnutrição de yanomamis

A crise de desnutrição e doenças do povo yanomami é relacionada ao avanço do garimpo ilegal, ao contrário do que foi dito pelo governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), em entrevista ao G1 na última segunda-feira (30)

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Por Amanda Ribeiro, Aos Fatos.

A crise de desnutrição e doenças do povo yanomami é relacionada ao avanço do garimpo ilegal, ao contrário do que foi dito pelo governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), em entrevista ao G1 na última segunda-feira (30). Segundo ele, “não quer dizer que é o garimpo que é o fator predominante” da atual crise, ignorando alertas e evidências sobre os impactos da atividade na região, situada entre Roraima e Amazonas.

Relatórios e pesquisas científicas atestam que a contaminação pelo mercúrio do garimpo, o contágio de doenças como malária e infecções respiratórias e os atos de violência dos criminosos, que levam à desestruturação das aldeias e ao desmonte de postos de saúde, têm relação direta com a emergência de saúde decretada no último dia 21.

O governo federal apontou a atividade de mineradores na região como uma das principais causas da crise sanitária. Em entrevista no dia 24, o secretário da Saúde Indígena Weibe Tapeba citou a importância de remover os cerca de 20 mil garimpeiros que invadiram o território Yanomami. “Eles têm matado os peixes, matado os rios, e as comunidades acabam ficando reféns desse cenário de guerra, horror e de morte. Infelizmente, os dados são alarmantes”.

Confira abaixo o que checamos.


Selo falso

“Em outras regiões que não tem garimpo os indígenas da terra Yanomami têm desnutrição. Então não quer dizer que é o garimpo que é o fator predominante” — Antonio Denarium (PP), governador de Roraima, em entrevista ao G1 (30.jan.2023)

Pesquisas científicas, relatórios produzidos por ONGs e declarações de especialistas desmentem a alegação do governador Antonio Denarium de que não há associação clara entre o garimpo ilegal e os casos de desnutrição que acometem a população yanomami. O envenenamento das águas pelo mercúrio, a contaminação dos indígenas por doenças para as quais não possuem resistência natural e a violência tiveram impacto direto nas comunidades em estado de emergência de saúde na região.

No relatório “Yanomami sob Ataque”, publicado em abril de 2022, a Hutukara Associação Yanomami detalha uma série de fatores que relacionam o garimpo e a desnutrição:

  • A destruição ambiental reduz a disponibilidade de terras para coleta e contamina as águas e os peixes;
  • As doenças trazidas pelos garimpeiros, como malária e infecções respiratórias, também impedem que os indígenas trabalhem e cuidem das crianças;
  • Há também o aliciamento dos homens, que passam a trabalhar para os garimpeiros em condições análogas à escravidão ou para receberem restos de comida e objetos.

Dados da organização MapBiomas compilados a partir do relatório dão dimensão do crescimento do extrativismo ilegal na região: entre 2016 e 2020, a área devastada pelo garimpo na Terra Yanomami cresceu 3350%. Os pesquisadores apontam como causas para a intensificação da atividade ilegal o aumento do preço do ouro no mercado internacional, as falhas regulatórias que permitem a venda de metal de origem ilegal e o desmonte das políticas de proteção do meio ambiente e dos povos indígenas.

Mercúrio. Usado para separar o ouro da lama, o mercúrio é um metal pesado que contamina os peixes e a água e, ao ser ingerido por seres humanos, causa problemas neurológicos e, em casos mais graves, até a morte. Estudo desenvolvido pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em parceria com o ISA (Instituto Socioambiental), o Instituto Evandro Chagas e a UFRR (Universidade Federal de Roraima) constatou em 2022 que a cada dez peixes coletados no rio Uraricoera, o mais próximo da Terra Yanomami, seis apresentavam níveis de mercúrio acima dos recomendados pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

Estudo de 2016 conduzido pela Fiocruz em parceria com o ISA mostrou que, já naquela época, 92% das amostras coletadas entre indígenas da comunidade yanomami de Aracaçá apresentavam contaminação por mercúrio. Os sintomas se desenvolvem em médio e longo prazo, e mulheres grávidas estão mais suscetíveis a terem crianças com problemas graves de formação.

Alterações geográficas e doenças. Além de contaminar a água e os peixes, o garimpo também causa impactos geográficos nos territórios que levam a problemas de abastecimento e facilitam a proliferação de doenças. Conforme explicou ao Aos Fatos o geógrafo Vinicius Galvão, pesquisador no Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, o garimpo exige a abertura de clareiras na mata, o que espanta as caças, e o desvio do curso de rios, que levam à formação de lagos que aumentam a proliferação dos mosquitos transmissores da malária.

Com a falta de água corrente limpa, os indígenas também desenvolvem verminoses. Os garimpeiros, por sua vez, trazem infecções respiratórias contra as quais os povos não têm resistência natural. Doentes, os indígenas não têm disposição para realizar as atividades de coleta ou produzir em seus roçados.

Segundo denúncias, a situação se agrava ainda mais com o roubo de medicamentos necessários para tratar as doenças. No dia 18 de janeiro, a Fiocruz relatou ao Ministério da Saúde que os remédios usados contra a malária estariam sendo desviados e vendidos por garimpeiros.

Violência. As ameaças e violências cometidas por garimpeiros contra os povos indígenas também contribuem para a desestruturação social das aldeias, além de dificultarem o acesso dos doentes ao sistema de saúde. As atividades ilegais obrigam os indígenas a se deslocarem de suas regiões ou passarem a trabalhar para os garimpeiros, que se apossam muitas vezes das estruturas de saúde e impedem que profissionais garantam assistência aos povos.

No relatório “Yanomami sob Ataque” é narrada a situação do território Homoxi, onde o garimpo se articula em torno de um aeródromo usado para dar suporte ao atendimento de saúde da região. O posto de saúde foi tomado pelos garimpeiros, o que impediu o trabalho dos técnicos de saúde. Como resultado, houve diminuição drástica no número de atendimentos e aumento nos casos de déficit nutricional. Em 2021, foi noticiado que uma criança morreu de desnutrição no local por falta de atendimento. Em dezembro do ano passado, o posto de saúde do território Homoxi foi queimado, em ato de retaliação atribuído aos garimpeiros.

A doutoranda em Antropologia na Universidade de Paris Cité Luciana Landgraf também cita casos em que os homens das aldeias são aliciados pelo garimpo e obrigados a trabalhar em condições análogas à escravidão. A difusão de armas e de álcool trazidos pelos criminosos também aumenta o número de conflitos e mortes. A desestruturação familiar acelera o processo de desnutrição causado por todos os outros fatores.

O que diz o governo. Em nota enviada ao Aos Fatos, o Ministério da Saúde reforçou que estudos científicos apontam, sim, para uma relação de causalidade entre o garimpo e a crise de saúde dos yanomamis: “A desnutrição é um fenômeno multicausal, entretanto, há uma relação direta com o garimpo na medida em que dificulta o acesso a alimentos ao contaminar água, solo e diminuir a ocorrência de animais de caça dentro da Terra Indígena Yanomami”.

Outro lado. Aos Fatos entrou em contato com a assessoria do governo de Roraima para que o governador Antonio Denarium pudesse comentar a checagem, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

Referências:

1. Governo federal (1 e 2)
2. ISA (1 e 2)
3. Amazônia Real
4. Fiocruz
5. G1 (1 e 2)
6. Folha de S.Paulo

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