Por Raul Fitipaldi, para Desacato.info.
É corrente ouvir falar ou ler sobre soberania nacional, territorial, energética, hídrica, alimentar, popular e de outras soberanias. Raro mesmo é ouvir falar sobre Soberania Comunicacional. A grande jornalista Elaine Tavares, no sul do Brasil, durante anos foi alma solitária nesse assunto. Mais tarde, já na primeira década do presente século, o Portal Desacato, em Santa Catarina, uniu-se a isso e dá relevância permanente ao tema, junto com a Elaine.
Pode um país da importância hemisférica e do tamanho territorial do Brasil se sentir soberano quanto à comunicação se descarta a condição estratégica da soberania comunicacional e não se volta para ela com urgência? Resposta óbvia, não. A questão vai além de plataformas, multimídia, conteúdos, mercado, jornalismo, jornalistas e público, porém isso tudo forma parte determinante. Mas o grande problema reside na ‘guerra cultural’ que negada, de forma complacente e confortável, nos submete desde as colônias e cada ano com mais força. Essa guerra invasora asfixia as resistências que cultura e comunicação podem oferecer à intromissão de plataformas, formatos, conteúdos, de uso massivo, fabricados para garantir a dominação dos grandes centros mundiais.
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Também o problema permeia a educação, ou melhor, depende dela fundamentalmente. Brasil não tem bons hábitos de leitura historicamente. Agora, esses já precários hábitos de leitura, instalados na imensa maioria da população, o que inclui também as capacidades de entender o que se lê, para piorar a situação, são seduzidos pelo uso massivo das redes sociais (ou digitais, como as denomina o jornalista Altamiro Borges) e o problema aumenta de forma decisiva. As pessoas se sentem informadas e até educadas por um título ou uma frase que aparece nas plataformas, seja Twitter, Facebook, Koo ou outras, ou por uma foto e uma chamada no Instagram. Repete-se e distribui-se essa frase para milhões de leitores estressados nas suas rotinas e essa informação, verdadeira ou falsa, se torna em indiscutível, mesmo que atinja gravemente o comportamento e até a saúde do desinformado. O invade por dentro.
Se somarmos a isso a abordagem impulsionada há décadas pelos interesses estadunidenses de que a informação forme parte do show e do divertimento, a situação não pode ser mais desesperadora ao interior de um país continental onde, em resumo, se lê pouco, não se compreende facilmente o que se lê e se acredita piamente nos títulos que aparecem nas redes ou nos grupos de Whatsapp. A invasão comunicacional é 24 horas por dia, todos os dias. E funciona, como o gabinete do ódio bolsonarista e as mobilizações nazi-fascistas, acabam de nos mostrar. A admiração guerreira pelos Estados Unidos, país que não pode ser modelo para nenhuma democracia decente, no Brasil se encontra por todos lados.
Essa invasão que já se expandia pelo mundo através das agências de notícias de Ocidente (EUA, França, Inglaterra, Itália, Espanha, por exemplo), criadas boa parte delas no século 19 com finalidade política, econômica e de dominação, se materializou em corpo físico no século XX e neste século em nosso território. A Entertainment and Sports Programming Network, ou ESPN, como é conhecida, fundada em Connecticut; a CNN, da Warner Bros. Discovery com sede em Atlanta, fundada pelo mítico Ted Turner, que transformou a Guerra do Golfo num espetáculo de divertimento e escondeu a realidade delinquente e genocida da invasão norte-americana, o jornal espanhol El País, que fracassou no Brasil, fundado por um dos mais poderosos oligopólios espanhóis, Prisa, encontraram guarida no Brasil para cumprir sua função de controle comunicacional e cultural do maior país da região. E claro, para fazer grandes negócios, com governos e com tudo. Hoje, um punhado de agências e outro punhado de conglomerados avançam encima de todo o planeta e não é diferente para nosso país. A verdade única e a opinião publicada vai além de grupos como a Globo, é fabricada por toneladas diárias fora do território nacional. Essa verdades determinaram de forma imoral e violenta a página de ressurreição das direitas mais abomináveis na América Latina e no Caribe, no Brasil também: Lavajato, golpe contra Dilma Rousseff e prisão do agora presidente Lula para tirá-lo da eleição de 2018.
Se não for firmemente regulado o espectro radial e televisivo, a presença das big techs, as concessões eternas outorgadas aos patrões da grande mídia brasileira, boa parte dela construída com base na ditadura de 64 e com o apoio material dos Estados Unidos, vide Organizações Globo, se continuam os monopólios privados papeleiros, se não há uma educação de fato libertadora (não falo de nacionalista), vamos continuar brincando com a Democratização da Comunicação, com o jornalismo e com o Ministério das Comunicações, que precisa, como escrevi em artigo de ontem, afastar o ministro Juscelino Filho que representa o que há de pior para conduzir essa área estratégica para a soberania nacional e comunicacional. E vamos continuar interpretando de forma folclórica o conceito surrado de ‘liberdade de expressão’ que oculta convenientemente que não tudo se pode em matéria de comunicação.
Voltamos com o assunto da Democratização da Comunicação na quinta que vem.
Edição e publicação: Tali Feld Gleiser.
Raul Fitipaldi é jornalista e cofundador do Portal Desacato e da Cooperativa Comunicacional Sul.