Lula e a questão fundiária na Amazônia

Por Philip Martin Fearnside, para Amazônia Real. 

A imagem que abre este artigo mostra criação de gado em área grilada, em Rondônia, nos limites da Terra Indígena Karipuna (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

O início da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva já rendeu uma série de avanços para o meio ambiente na Amazônia. No entanto, ainda há preocupações na presidência de Lula, e a política fundiária é, provavelmente, a mais delicada delas. Seu apoio dos sem-terras organizados [1]e, especialmente, a necessidade de apoio dos “ruralistas” que dominam o Congresso Nacional [2] representam forças na direção de um maior afrouxamento de restrições nesta área-chave.

O Brasil ainda não fez uma transição básica que ocorreu no resto do mundo centenas, senão milhares, de anos atrás. Este é o governo afirmando o controle sobre os atores privados para impedi-los de simplesmente entrar em áreas de terras do governo e reivindicar a terra para si. Isso se aplica tanto aos agricultores familiares como aos grandes grileiros [3]. “Grileiros” são grandes operadores que reivindicam áreas de terras do governo e, muitas vezes por meios corruptos, obtêm o título legal da área; as áreas geralmente são loteadas e vendidas a fazendeiros, com ou sem documentação legal.

Nos últimos 500 anos, desde que os europeus chegaram ao Brasil, a ocupação e posterior legalização de reivindicações de terras tem sido o caminho pelo qual grande parte da terra passou do domínio público para o privado. Em outros países, incluindo os países com florestas tropicais, nem mesmo passaria pela cabeça de alguém que poderia invadir uma área do governo, desmatar parte da floresta e, posteriormente, obter o título legal da terra.

A prática de legalizar reivindicações ilegais de terra é eufemisticamente denominada “regularização” fundiária no Brasil, o que implica que os reclamantes têm um direito legal à terra e que sua falta de título é apenas um reflexo da ineficiência burocrática do governo – invocando a imagem dos tradicionais ribeirinhos que vivem no interior amazônico há gerações sem titulação legal de suas terras.

No entanto, a grande maioria da área que está sendo titulada refere-se à legalização de reivindicações ilegais de áreas recentemente invadidas (por exemplo, [4]). Uma série de “leis da grilagem” aumentou progressivamente a área que cada reclamante pode legalizar e adiantou o cronograma para o limite antes do qual a reivindicação deveria ser ocupada para ser elegível para legalização. Isso envia uma mensagem clara aos possíveis invasores de que eles podem invadir a terra agora e, posteriormente, receber a “anistia” por meio de uma futura mudança de política. As implicações disso para o desmatamento na fronteira amazônica são tremendas.

Durante o segundo mandato de Lula, foi aprovada a primeira “lei da grilagem” (Lei 11.952/2009), estabelecendo o programa “Terra Legal” e aumentando a área que poderia ser legalizada por reclamante na Amazônia de 100 ha para 400 ha. Mesmo 100 ha não seriam considerados uma propriedade “pequena” na maior parte do mundo, mas mesmo na Amazônia uma propriedade de 400 ha representa uma fazenda de gado de tamanho médio, e não uma área destinada a tirar um agricultor familiar da pobreza. Este e outros programas de legalização têm sido defendidos como reduzindo o desmatamento ao remover a motivação para desmatar a fim de justificar as reivindicações de titulação, mas estudos do desmatamento real nessas propriedades legalizadas mostraram que a titulação aumenta em vez de diminuir a taxa de desmatamento [5].

O efeito da segurança de posse que permite maiores investimentos no desmatamento aparentemente supera o efeito do desmatamento para reforçar as reivindicações de terra. A titulação também aumenta o valor de venda da terra e acelera o processo de “concentração” da terra, onde os pequenos propriedades são comprados por atores mais ricos que administram um grupo dessas propriedades como uma fazenda média ou grande. Isso está transformando rapidamente os assentamentos de sua função pretendida de fornecer meios de subsistência a pequenos agricultores para áreas com propriedades muito maiores [6, 7]. O resultado não é apenas o aumento do desmatamento na área do assentamento, mas também o desmatamento por aqueles que venderam suas terras e, em seguida, se mudaram para novas fronteiras em outros lugares da Amazônia.

Uma segunda “lei da grilagem” (Lei 13.465/2017) foi promulgada em 2017 no governo do presidente Michel Temer, e uma terceira (PL 2633/2020 e PLS 510/2020) está em processo de aprovação no Congresso Nacional [8, 9]. Apesar da retórica alegando que essas leis são para beneficiar pequenos agricultores, amplas disposições para pequenos agricultores já estão presentes na legislação existente, e as partes das leis que são novas são apenas para atores muito maiores, ou seja, grileiros e os fazendeiros que compraram terras ilegais deles [10]. Serão legalizadas áreas de até 2.500 ha por reclamante. É claro que vários membros de uma mesma família podem reivindicar, legalizando enormes áreas. O Presidente Lula indicou como seu ministro da agricultura o deputado ruralista que, até sua indicação em janeiro de 2023, era relator do projeto de lei para PL 2633/2020 — a terceira “lei da grilagem”.

O Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado pelo atual “Código Florestal”, oficialmente denominado a “Lei de Proteção da Vegetação Nativa” (Lei 12.651/2012), permite reivindicações autodeclaradas sem fiscalização no local. Isso facilita muito a grilagem na prática, apesar do CAR ter sido criado para fins ambientais e especificamente não confere a posse da terra [11-13].

A história da posse de terra na Amazônia brasileira até agora tem sido de contínuo recuo do governo, repetidamente legalizando reivindicações de terras ilegais e praticamente nunca tomando medidas efetivas para remover ocupantes ilegais, com exceção de algumas invasões de propriedade privada e uma pequena porcentagem das invasões em terras indígenas ou unidades de conservação – mas essencialmente nunca em terras públicas não destinadas (as “terras devolutas”). A metade do desmatamento recente está ligado à grilagem de terras públicas [14], e não há como parar o desmatamento nessas áreas sem enfrentar causa subjacente — ou seja, precisa abolir a prática de “regularização” e retirar os invasores. A postura futura de Lula nessa área é uma grande incógnita.

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