Centenas de famílias em territórios da Amazônia correm o risco de ter que deixar os locais em que vivem e os modos de vida que praticam por causa de grandes empreendimentos na região. O alerta é da Rede Eclesial Panamazônica (Repam – Brasil), iniciativa da igreja católica que há décadas atua na região para evangelização, defesa dos povos e do meio ambiente.
Em Açailândia, no Maranhão, mais de trezentas pessoas da comunidade de Piquiá podem ser forçadas a se deslocar em consequência de um empreendimento que teve início em 1982. Considerado a maior reserva de extração de minério de ferro do mundo, o projeto Grande Carajás causa impactos históricos. Ele ocupa também áreas no Pará e em Tocantins.
A implementação foi feita pela ditadura militar e ficou a cargo da Vale, na época uma empresa estatal. Com a privatização, na década de 1990, a empresa continuou responsável pelo empreendimento. Hoje, o estado do Maranhão tem mais de cem comunidades impactadas pelo fluxo de extração, escoamento e exportação do minério, segundo a Repam.
Além da extração de minério, cresce na região a presença do agronegócio. O transporte de monoculturas para exportação é facilitado pela estrutura do projeto. Com o aumento das grandes plantações de produtos para exportação, as roças de subsistência perdem espaço e são contaminadas por agrotóxicos. Esse processo sufoca o meio de vida das famílias, que deixam de produzir para si e perdem a fonte de renda.
Segundo Valdênia Paulino, advogada e integrante da equipe de fortalecimento comunitário da organização Justiça nos Trilhos, muitas dessas pessoas têm a saúde afetada pela poluição dos rios e do ar e pelos impactos mentais da transformação de modos de vida ancestrais.
“No município de Açailândia temos a ‘Aço Verde do Brasil’, que apesar de ter um nome de verde é uma siderúrgica que respeita muito pouco o ambiente. Ela incorporou inclusive a siderúrgica Gusa Nordeste S/A que é da região de Piquiá no município de Açailândia, e justamente por conta do impacto da poluição oriunda dessa siderúrgica é que trezentas e doze famílias terão que ser deslocadas”, conta. “Depois que as siderúrgicas foram instaladas na região, as famílias passaram a ser acometidas por sérias doenças respiratórias, de pele e muitas tiveram que sair da sua casa antecipadamente. A região de Pequiá de baixo vivia da pesca, do rio que cerca a comunidade e das roças.”
Terminal privado, impactos comunitários
A pouco mais de 500 quilômetros dali, em Abaetetuba, no Pará, outra comunidade luta para preservar seus modos de vida. Os povos da região vêm sendo fortemente impactados pelo chamado Arco do Norte, corredor logístico de transporte hidroviário criado pelo governo brasileiro.
Segundo Hueliton Azevedo, da Associação do Assentamento Agroextrativista Partilhar e doutorando em agrossistemas, “ao longo desse corredor logístico está o maior contingente de populações tradicionais da região amazônica”, entre indígenas, quilombolas e extrativistas.
Em Abaetetuba o projeto de construção de um porto, como parte dessa estrutura, interfere na tradicional atividade da pesca na Ilha do Capim, onde está a comunidade agroextrativista em que Huelinton vive.
O empreendimento é da Cargill, multinacional de alimentos, que processa grãos e outras commodities. O terminal privado vai servir para escoamento de soja e milho produzidos no Pará em Rondônia e Mato Grosso.
Huelinton afirma que a comunidade não foi consultada sobre o empreendimento, que traz impactos para a renda e para toda a cadeia alimentar da comunidade. Ele ressalta ainda que a lei não permite empreendimentos privados desse tipo em assentamentos agroextrativistas.
“Parte muito significativa da renda vem de territórios comunais pesqueiros. Com o corredor logístico hidroviário, tanto navios quanto embarcações passam exatamente por cima desses territórios. Se o terminal for implantado, vai destruir esses territórios pesqueiros e as comunidades vão ter que ser deslocadas. Para dar um dado mais preciso, só na ilha do Capim existem mais de 200 pesqueiros de uso comum dos pescadores, que geram renda para 188 famílias e geram mais da metade da renda dessas famílias.”
O Padre Dário Bossi, assessor da Repan-Brasil e da Rede Igreja e Mineração, afirma que é possível mudar a lógica de desenvolvimento para a Amazônia por dinâmicas de convivência harmônica com os povos locais e o meio ambiente.
“Muitos – utilizando o parâmetro do ‘desenvolvimento’ nas categorias do consumismo – acham que essas culturas são atrasadas. Na verdade, elas desenvolveram a tecnologia mais sofisticada do equilíbrio e da convivência”, defende. “É possível sim uma economia do Bem Viver na Amazônia, em escala local, como apresentam as recentes publicações sobre a bioeconomia bioecológica, soluções locais apoiadas em diversidade, reuso de matéria e energia, manejo ecológico de espécies e das interações interespécies, redução de insumos e fontes de energia externas ao sistema.”
A reportagem do Brasil de Fato tentou contato com as empresas responsáveis pelos empreendimentos que hoje afetam essas comunidades. Os telefones disponíveis na página da Aço Verde do Brasil não atenderam. Foram feitas também diversas tentativas de envio de mensagem pelo atendimento disponibilizado no site da empresa, mas o sistema apresentou falhas em todas as ocasiões.
Em nota, a Cargill informou que o projeto portuário em Abaetetuba está em fase de avaliação de viabilidade e cumpre as normas aplicáveis e as etapas do processo de licenciamento ambiental. Segundo a empresa, o licenciamento está em fase inicial e aguarda análise do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental e agendamento de Audiência Pública pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado do Pará.
“A companhia preza pela transparência e diálogo com as comunidades e, para tanto, possui profissionais residindo no município e promovendo o diálogo com as entidades e comunidades locais, além de uma série de canais para contato com os comunitários, entre os quais e-mail e WhatsApp”, informou a multinacional.
Edição: Nicolau Soares