Maternidade no capitalismo: nasce uma mãe, nasce um manual

Como a sociedade capitalista mina a confiança das mulheres e transforma o maternar em um checklist traumático

Natália Sousa, para Revista AzMina.

Ilustração: Azmina

São sete horas da noite e ainda não deu tempo de tirar a camisola. O bebê não para de chorar e na cozinha o cenário é de crime. Tem beterraba em tudo: no tapete, no caldeirão, na parede e no manual que fala sobre as maravilhas da introdução alimentar com o método BLW. Os benefícios são muitos, diz o livro. A ideia é deixar a criança amassar, brincar, jogar e, com muita sorte, comer os alimentos coloridos, geometricamente cortados – sem pressa. Mas quem lava, descasca, corta? E quem limpa a bagunça que fica? A sensação do piso sujo grudando no chinelo desde o meio-dia é a acusação e a resposta: a boa mãe tem que dar conta. E essa angústia não é a única. Há várias outras, porque o manual não para de determinar o jeito certo de fazer cada coisa.

Na página seguinte, ele diz dos efeitos positivos da amamentação por livre demanda, da maternidade com apego e da criação com zero tela. Mas quem consegue dar o peito o dia inteiro, atender prontamente todos os pedidos de colo do bebê, entregar um último relatório de trabalho e ainda ter força para entreter a criança só com uma mistura de brinquedos montessorianos e massinha de modelar feita em casa, sem apelar por míseros 15 minutos para a “Galinha Pintadinha” no celular?

A vontade é adotar o grito como nova linguagem toda vez que sua parceria se mostra incapaz de acalmar o próprio filho. Mas o curso de disciplina positiva fala de controlar as explosões de raiva na frente das crianças, lembra? Acontece que não tem momento sem criança! Até na hora de dormir, elas estão com você. Sim, porque no manual da maternidade ideal ainda tem isso: a cama compartilhada.

Quando você menos espera, aquele momento que disseram que seria o mais feliz da sua vida – o que soa como mais uma pressão – vai se transformando em um checklist traumático. Você se sente cada vez mais solitária, culpada e desautorizada por uma série de especialistas, vídeos, livros mais vendidos e mães de Instagram, que sequer sabem o nome do seu bebê, jamais viveram a sua rotina, mas sempre têm uma solução milagrosa que vai funcionar na sua casa, que ninguém sequer conhece.

Tudo parece ser sobre você arranjar um jeito certo de fazer a coisa certa para que tudo dê certo, numa espécie de meritocracia da maternidade. Mas, e se a mãe precisa trabalhar? E se não tem uma parceria que colabore? E se não conta com rede de apoio? Nada disso está nos manuais. Mesmo que estivesse, não tem como criar um ser humano nesse jeito ideal só com boa vontade e um guia. Quero dizer, o Estado acha que tem. E sempre vai ter alguém para te lembrar que você pode contratar uma consultora, seja de amamentação, de parto, ou do que for. Existe pra tudo.

NEM SEMPRE A RESPONSA DA CRIAÇÃO FOI SÓ DOS PAIS

Apesar do monte de nome e regras atuais, essa história não começou agora. Esse formato de família heteronormativa que predomina hoje, com papai, mamãe e filhinho, nem sempre foi o padrão. No passado, era comum que a criação das crianças fosse feita de maneira coletiva, pela comunidade. É no século XIX, com o desenvolvimento do capitalismo e o crescimento da burguesia, que acontece uma divisão social entre o público e o privado.

Fica com o Estado o trabalho de administrar as produções, e com a família a responsabilidade de sobreviver. “É nesse momento que surgem as famílias nucleares e elas passam a dar conta de si e da sua prole”, explica a pediatra Tiacuã Fazendeiro. “Acontece o que chamamos de modelo do homem provedor e da mulher cuidadora”, complementa a pesquisadora em relações de gênero da Universidade de Campinas (Unicamp), Glaucia Marcondes.

Esse foi um marco importante para o que a gente conhece hoje como o ideal do maternar. Ela ajudou a difundir a ideia de que a família – na figura da mãe – seria o suficiente para cuidar e educar os filhos até a vida adulta. “Até hoje a gente vive nessa fantasia de que esse pai e essa mãe têm um poder quase direto sobre o desenvolvimento do filho”, explica Marília Moschkovich, pesquisadora de pós-doutorado em antropologia na Universidade de São Paulo (USP). Com esse suposto poder, o medo de falhar aumenta. Aí o manual entra para supostamente acabar com ele, te ensinando a fazer a coisa “certa”, que nunca é possível, por isso sempre tem um novo guia.

SAEM AS MULHERES, ENTRAM OS ESPECIALISTAS

Com a urbanização e a industrialização, a transmissão de saberes ancestrais – que antes eram passados de geração em geração, de uma mulher para outra – se perde. O conhecimento do médico passa a ser visto como superior aos conhecimentos dessas mulheres, geralmente mais velhas. O que antes era herdado, começa a ser vendido. Por preços altíssimos.  “As nossas avós não precisaram contratar uma consultora de amamentação porque elas viram outras mulheres amamentando”, exemplifica a psicanalista Fê Lopes.

Ao passo que as mulheres mais velhas são destituídas de seus lugares de saber, os manuais e os especialistas passam a ocupá-los. E aí eles procriam, né? Porque antes, quem sabia era o médico. Agora é também psicólogo, pedagogo, educador parental; e ainda tem o livro, o curso, a influenciadora e o perfil de Instagram.

“Todo mundo sabe alguma coisa sobre a sua parentalidade, que você não sabe, e você precisa saber lendo como é que se faz”, ilustra a psicanalista Fê Lopes.

Os especialistas oferecem amparo para essas mulheres, mas não é suficiente para resolver o problema, e elas se sentem cada vez mais solitárias no maternar. “Eles dão uma ilusão de que você não está tomando algumas decisões sozinha. Mas você tá. O Instagram não tá com você”, desabafa Fê Lopes. Fora isso, toda essa produção é quase sempre direcionada a elas, como se coubesse só às mães o desempenho desse papel de cuidado.

As vendas de manuais oferecem certezas, desconsiderando que a maternidade não é um projeto fechado, mas uma relação viva e imprevisível com outro ser humano.  O esquema é bem montado para gerar insegurança e se alimentar disso. “Tem o retorno econômico para esse sistema, e a vantagem de manter essa estrutura no mesmo lugar”, coloca Marília Moschkovich.

PARTO HUMANIZADO? SÓ PRA QUEM PODE PAGAR

“Historicamente, o parto não é um evento médico. O parto é um evento feminino que tem como cenário, normalmente, a nossa casa”, explicou a médica do SUS Júlia Rocha nessa entrevista ao jornal O Poder Popular. Com o avanço da ciência, os nascimentos passam a acontecer em hospitais. Essa mudança traz um amparo tecnológico importante, mas coloca o médico como soberano. É ele, majoritariamente, quem decide como a mulher vai dar à luz.

No Brasil, essa decisão tende a ser pela cesárea.  De acordo com dados da FioCruz, 55% dos partos realizados no país são assim. É a segunda maior taxa do mundo. Se considerarmos a realidade no sistema privado de saúde, a proporção pula para 86%. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que a taxa ideal de cesarianas deveria estar entre 10% a 15% dos partos.

O documentário “O Renascimento do Parto” reúne depoimentos de mulheres que foram dissuadidas pelos médicos a desistirem do parto natural. As justificativas vão do tamanho do bebê até questões mais simples e rotineiras, ditas com linguajar médico para convencer sobre a cirurgia. “As cesarianas respondem a uma demanda de controle. Uma mulher parindo não cabe no plantão, não cabe na agenda. Não cabe no capitalismo”, explica a médica Júlia Rocha, no vídeo.

À medida que a insegurança e a insatisfação das mulheres com esse momento cresce, o parto é dividido entre o jeito certo e o errado de fazer. E quem deve garantir que o bebê nasça da forma correta não é o Estado,  é a mulher. O mercado entendeu essa questão e a capitalizou também. O parto natural  passa a ser chamado de humanizado, começa a ser vendido como uma experiência a ser conquistada – não mais um direito. E custa caro.

Para trazer o filho ao mundo na própria casa, com pessoas queridas ao redor, sem intervenções médicas agressivas e desnecessárias, o preço pode atingir R$ 10 mil. Os valores incluem doula, enfermeira obstétrica, piscina inflável e fotografia especializada. Em hospitais particulares, o parto natural e a cesárea feitos de forma humanizada podem chegar a R$ 15 mil – a depender da região do Brasil. Fica a pergunta: não deveria todo parto ser humanizado?

As poucas pessoas que conseguem ultrapassar a barreira da grana, ainda têm que pontuar em outras questões. “Para ser domiciliar, essa mulher precisa ter uma gestação sem nenhum tipo de complicação, como diabetes gestacional e hipertensão”, explica a fisioterapeuta e doula Alani Peroni.

Algumas equipes também recusam mulheres que já tenham feito cesáreas. Além disso, o parto só acontece caso haja um hospital que atenda pelo SUS ou pelo plano de saúde em um raio de 3 km. Algumas mulheres podem optar por uma equipe reserva que inclua um médico obstetra e um pediatra, que são remunerados se forem acionados.

No capitalismo, não ter dinheiro ou possibilidade para escolher o parto humanizado soa como uma espécie de fracasso maternal. “Na periferia, a gente nunca pode escolher [a via de parto]. As mulheres são levadas para hospitais públicos e, como eles querem economizar, elas ficam horas e horas sofrendo”, desabafa a pesquisadora Luana Oliveira, que faz mestrado sobre maternidade solo e também é mãe de Mar, 14 anos, Murilo, 11 anos e Manuela, 1 ano. “Para a gente é um pouco diferente esses manuais, porque a gente ainda tá debatendo para quem eles são possíveis e isso é muito perverso”.

NÃO HÁ MANUAL QUE DÊ CONTA DA AUSÊNCIA DO ESTADO

Mulheres não podem ser responsabilizadas por suprir a ausência do Estado. A família, independentemente do seu formato,  não vai dar conta sozinha da criação de uma criança. A própria estrutura nuclear de pai, mãe e filhos já é insuficiente –  mesmo quando o trabalho é dividido igualmente, explica Marília Moschkovich. “Qualquer pessoa que já cuidou de uma criança sabe que dois adultos não é o bastante”, pontua a pesquisadora da USP.

Tem que ter creche de qualidade, passe livre, lavanderias públicas, estruturas sem custos que permitam a quem cuida de crianças realizar tarefas. “E não adianta fazer isso só também, tem que reduzir a carga horária de trabalho e aumentar o salário mínimo”, reflete Marília. Não há mãe boa o suficiente que dê conta da ausência do Estado.

As redes de apoio – tão citadas nos manuais – devem ser formadas por aparatos públicos, não só por familiares e amigos dispostos. “Não pode ser pontual, porque as crianças existem todos os dias”, destaca Luana de Oliveira.

Há mudanças que só podem ser feitas estruturalmente. “Porque o manual vai falar, por exemplo, em qualidade de sono, mas como é possível oferecer isso onde tem tiro de madrugada? Onde tem goteira quando chove?”, questiona a pediatra Tiacuã. “São recomendações que populacionalmente fazem todo sentido, mas que não cabem para maioria das famílias”, completa.

FEMINISMO PRECISA INCLUIR OUTRAS MATERNIDADES

Para mudar a estrutura, é preciso que a sociedade se mobilize. E a luta das mulheres é fundamental. A pesquisadora Luana Oliveira, mulher negra e periférica, defende que é importante inserir a maternidade – especialmente a maternidade solo – na agenda feminista, e criar condições para que todas possam reivindicar.

“Quando a gente olha para o processo histórico do nosso território, as mulheres, especialmente as mães, estão na linha de frente das lutas por qualquer infraestrutura”, lembra Luana. Por isso, quando se faz algum evento, uma reunião, uma roda de conversa, precisa ter uma creche para acolher as crianças, porque normalmente, essas mães não têm onde deixar.

Ampliar o debate para pautas que atravessam as maternidades pretas, periféricas e outras interseccionalidades, é uma forma de somar esforços contra um sistema capitalista, que transforma em mercadoria o que deveriam ser direitos garantidos. “Eu vejo a maternidade sendo pautada muito ainda nessa coisa de amamentação livre demanda, parto humanizado, coisas que mulheres periféricas – na maioria negra – ainda não acessam”, aponta Luana.

Considerar outros cenários, é uma forma de atacar vários braços do mesmo problema. “A experiência de maternidade de uma mulher branca, altamente escolarizada, ocupada e de renda elevada, vai ser diferente da maternidade de uma mulher preta com as mesmas características, e ainda mais desigual das pretas com características sociais menos favoráveis”, complementa a pesquisadora da Unicamp Glaucia Marcondes.

A MATERNIDADE É UM PERCURSO, NÃO UMA LINHA DE CHEGADA

O conhecimento científico foi fundamental para a evolução da nossa espécie, desfazendo mitos, erradicando doenças e diminuindo o número de mortes infantis. Ele continua evoluindo e deve ser respeitado. A questão é: “como que eu faço a leitura disso [dos manuais] sem levar para esse lugar da culpa?”, questiona a pediatra Tiacuã. Numa sociedade desigual, nem sempre o que é o melhor vai ser o possível. E isso tem quase sempre a ver com falta de oportunidade e amparo estatal, e não com fracasso pessoal.

Ninguém chega no lugar da mãe ideal, porque esse lugar não foi feito para ser alcançado, é assim que o ciclo do capitalismo continua girando, te fazendo consumir e comprar.

A psicanalista Fê Lopes deixa um conselho para colar na porta da geladeira: não existe parentalidade sem risco. “Sem apostar, sem dar um mergulho e não saber exatamente onde você tá mergulhando”, ela pacifica.

Ao mesmo tempo – excluindo situações extremas – “não existem coisas que eu não possa voltar atrás. Se eu só oferecia nuggets, que é o que dava, e agora eu posso oferecer outro tipo de comida. É isso, né?”, sugere Fê Lopes. Faz parte querer que dê tudo certo na vida daquela criança, e fazem parte também os vários momentos em que não se sabe exatamente o caminho. “O que tranquiliza, é que você não é a pessoa que tem que ter todas as respostas, você tá junto na experiência. Essa é a parte mais difícil, mas é a parte mais legal!”

 

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