Por InfoAmazonia, para Plena Mata.
O novo governo brasileiro, liderado por Lula, terá pela frente vários desafios na pauta ambiental. Entre eles, criar condições para a redução de 50% dos lançamentos de gases do efeito estufa até 2030 e garantir a neutralização das emissões até metade do século, conforme prometido pelo Brasil no Acordo de Paris, em 2015.
Para o cientista climático Carlos Nobre, o país não apenas tem capacidade de zerar as emissões líquidas até 2050 como pode ser o primeiro entre os maiores emissores a fazê-lo. Isso porque, na visão do pesquisador, haveria condições de se alcançar a meta já em 2040, caso as políticas ambientais a serem implementadas a partir do ano que vem sejam bem-sucedidas.
Ele detalha o segredo para esse resultado em entrevista exclusiva para o InfoAmazonia e o PlenaMata. Na conversa, Nobre, um dos principais pesquisadores sobre a Amazônia e único brasileiro eleito em 2022 membro da Royal Society – Instituição britânica destinada à promoção e valorização do conhecimento científico global – faz uma avaliação dos resultados da COP27, da qual participou, e alerta para um fato grave que tem acometido a maior floresta tropical do mundo: a perda da função regenerativa da vegetação por conta do avanço de desmatamento – o chamado ponto de não-retorno.
O pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA), no entanto, está empenhado em fazer a sua parte para conter o processo. Na 27ª Conferência Climática da ONU (COP27), realizada em novembro em Sharm el-Sheikh, no Egito, ele apresentou um projeto ousado de reflorestamento em larga escala nas regiões mais degradadas da Amazônia brasileira, com possibilidade de a ação se estender para países vizinhos. Confira na entrevista a seguir:
PlenaMata – Como o Brasil pode cumprir suas metas de redução de emissões de gases do efeito estufa?
Carlos Nobre – Primeiramente, zerando de forma rápida os desmatamentos, em especial na Amazônia e no Cerrado. As florestas do planeta removem 1/3 do CO2 que nós emitimos todos os anos, então, quando diminuímos essas áreas, temos a redução dessa capacidade.
Além disso, as derrubadas e os incêndios florestais – ocorre quando o fogo descontrolado degrada severamente a vegetação e pode ter sido provocado de forma intencional, por negligência ou ainda por raios e outras causas naturais – também lançam na atmosfera gases do aquecimento global. Um estudo do Observatório do Clima, de 2021, mostrou que o desmatamento é responsável por 49% das emissões no país e que 80% desses lançamentos ocorrem na Amazônia, sendo o restante, principalmente, no Cerrado. Se zerarmos a devastação nesses biomas, nós praticamente cumprimos a primeira fase do Acordo de Paris de reduzir em 50% as emissões. Felizmente, o presidente Lula fala em zerar o desmatamento. Se isso acontecer, certamente o Brasil atingirá a meta antes de 2030.
E o que precisa ser feito para neutralizar os lançamentos líquidos até 2050?
Além de zerar o desmatamento, precisamos restaurar grandes áreas devastadas de floresta, porque a vegetação secundária – a flora que ocupa de forma natural ou estimulada o espaço físico-ecológico que foi desmatado, convertido ou degradado – cresce rapidamente e também retira muito gás carbônico da atmosfera, diminui a temperatura e aumenta as chuvas.
É importante, ainda, que se implemente uma agricultura regenerativa, sustentável e produtiva, que é outra promessa de Lula, e que se faça uma reindustrialização nacional baseada na floresta em pé.
Outro ponto é que cerca de 18% das emissões brasileiras vêm da queima de combustíveis fósseis e nós temos um enorme potencial de diminuir essas emissões através da substituição por fontes renováveis de energia. Portanto, o país tem, sim, condições de ser um dos primeiros do mundo, talvez o primeiro entre grandes emissores, a zerar seus lançamentos antes de 2050. Talvez, em 2040 o Brasil já possa ir nessa trajetória.
O senhor esteve na COP27, da qual o presidente eleito também participou, mesmo sem ainda estar empossado. Muitos entenderam esse gesto como um retorno do Brasil ao protagonismo ambiental a partir do ano que vem. Como o senhor avalia isso?
A presença do Lula foi, sim, significativa e simbólica. De fato, a grande maioria dos países prestou muito mais atenção no presidente eleito do que na participação oficial do atual governo brasileiro, como se Lula fosse o chefe de Estado.
Em seu discurso na COP, ele sinalizou que manteria suas promessas de campanha, com marcos importantes de proteção ambiental e de combate à emergência climática, além da criação de um Ministério dos Povos Originários. Então, houve uma enorme repercussão. Havendo sucesso na implementação dessas políticas, isso vai colocar o Brasil onde ele estava há 10 anos. Em 2012, éramos o país que mais reduzia as emissões em função da queda acentuada do desmatamento na Amazônia e no Cerrado.
Qual balanço você faz do principal resultado da COP27, que é a criação do fundo de perdas e danos climáticos para países mais vulneráveis?
A minha avaliação é, logicamente, positiva em relação a esse fundo, defendido há décadas e que visa corrigir uma injustiça social que afeta milhões de habitantes no planeta. Falo de pessoas vulneráveis, que têm uma pegada de carbono muito baixa, em países que emitem muito pouco, e são as que mais sofrem os extremos climáticos que já vêm ocorrendo e acelerando na última década. Então, é justo que os países ricos e também os que mais emitem criem um fundo que compense todas essas populações seriamente afetadas. Para se ter ideia, os países do G20 são responsáveis por mais de 70% das emissões.
Quando você acha que isso sairá do papel?
Talvez demore mais umas duas ou três COPs para termos todas as regras de como as populações mais afetadas pelas mudanças climáticas serão beneficiadas. Tem muitas populações vulneráveis que não estão nos países mais pobres.
No Brasil, por exemplo, há pelo menos cinco milhões de habitantes que vivem em áreas de altíssimo risco de desastres naturais. São pessoas muito pobres, que contribuíram quase nada com as emissões, mas também sofrem com os extremos climáticos. Então, eu acredito que o desenho desse fundo ainda levará algum tempo, mas pelo menos os países aprovaram sua criação. Esse é um marco positivo da COP27. Vamos torcer para que isso aconteça rapidamente.
E quanto à aliança estratégica entre Brasil, Indonésia e República Democrática do Congo (RDC) para coordenarem ações de combate à devastação das florestas tropicais, você acha que Lula vai seguir com isso da forma que foi articulado pelo atual governo ou essa agenda deve sofrer algum tipo de mudança a partir do ano que vem?
É preciso esclarecer que quem primeiro anunciou essa parceria foi Lula, durante a campanha, e só depois é que o atual governo buscou formalmente esses países, que, assim como o Brasil, são os representantes das maiores florestas tropicais do mundo.
É muito importante que isso continue, porém, simbolizando um programa de todos os países tropicais, com suas imensas florestas, buscando soluções. Não devem ser apenas [as florestas do] Brasil, RDC e Indonésia, mas, sim, cada um desses três países representando todas as florestas tropicais, com o Brasil contribuindo para que todos os países amazônicos possam se unir nesse esforço e o mesmo acontecendo no sudeste asiático e na África equatorial.
Você defende a teoria de que a Amazônia está passando por um processo de ‘savanização’. Poderia explicar o que significa isso?
É importante esclarecer que essa “savanização”, termo criado por mim há 30 anos, quando publicamos os primeiros artigos mostrando a mudança de vegetação na Amazônia, é do ponto de vista climático. Quando desmatamos ou quando o aquecimento global fica muito intenso, a gente muda o clima da Amazônia para um clima de savana tropical, como o do Cerrado, porque fica mais quente. A estação seca, que normalmente é de três a quatro meses, passa a ser mais que seis meses. Com isso, a floresta pode se tornar um ecossistema de dossel aberto e não mais com árvores cobrindo todo o chão. Árvores de dossel aberto, por exemplo, cobrem só 25% da área da floresta, o resto é gramínea e arbusto. É um ecossistema muito degradado, apenas com espécies que conseguem resistir a maiores temperaturas e longas secas, sendo, portanto, espécies de savana tropical.
Em relação ao bioma, haveria semelhanças entre a Amazônia ‘savanizada’ e o Cerrado?
Esse bioma degradado que a floresta amazônica pode se tornar seria muito diferente do bioma Cerrado. O Cerrado tem a maior biodiversidade do planeta. Ele evoluiu em 40 ou 50 milhões de anos, se adaptou ao fogo, que sempre existiu naquele lugar, por conta das descargas elétricas. Ele também armazenou uma quantidade imensa de carbono no solo e tem raízes muito profundas nas árvores. Já a floresta amazônica como conhecemos, ela não consegue sobreviver nessas condições porque suas árvores não evoluíram com as temperaturas da savana tropical e com 6 meses ou 7 meses de estação seca.
O quão perto estamos desse cenário?
Nós estamos na véspera disso. No sul da Amazônia, a estação seca já está quatro ou cinco semanas mais longa nos últimos 40 anos por conta do aquecimento global, que também acelera as secas frequentes – antes, nós tínhamos uma seca forte a cada 15 ou 20 anos na Amazônia, agora nós temos duas por década. Esse é um dos maiores impactos das mudanças climáticas do mundo. Temos também a combinação dessas secas frequentes com a falta de floresta.
A pastagem, por exemplo, não evapora e nem transpira muita água na estação seca, já a floresta transpira mais água na estação seca do que na chuvosa, o que umidifica a atmosfera e aumenta as chuvas. Todo aquele sul da Amazônia, principalmente o sul do Pará e o norte do Mato Grosso, já está na beira desse precipício, que chamamos de ponto de não retorno. Para termos chance de impedi-lo, precisamos zerar o desmatamento imediatamente, parar o uso do fogo e restaurar a floresta. Esse último ponto é importante porque uma vegetação secundária também é muito eficiente em reciclar água e diminuir a temperatura.
O senhor apresentou um projeto de reflorestamento em larga escala na COP27. Poderia nos dar detalhes?
O projeto foi apenas lançado. A ideia é restaurar não menos que 50 milhões de hectares, principalmente no sul da Amazônia. O projeto é chamado Arcos da Restauração e visa combater os arcos do desmatamento, promovendo a regeneração assistida da floresta, na garantia de que aquela área restaurada não vai ser afetada pelo desmatamento ou pelo fogo.
A regeneração natural assistida é possível em áreas que estão próximas a florestas, mas também em áreas muito desmatadas, distantes de florestas, onde a restauração natural é mais lenta e difícil. Então, esse é um projeto para salvar a Amazônia, porque toda essa região mais ao sul está muito próxima do ponto de não retorno e é muito importante fazer surgir rapidamente uma floresta secundária ali. Essa vegetação cresce rapidamente, também retira muito gás carbônico da atmosfera e protegeria todo esse sul da Amazônia, ou seja, é um combate à emergência climática.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.