O bolsonarismo significou uma catástrofe para o conjunto do povo brasileiro. A situação de precariedade para as maiorias trabalhadoras, que sempre esteve vigente ao longo de nossa história, viu-se tremendamente agravada nesses quatro anos da devastadora gestão bolsonarista.
Os estudos históricos nos ensinam que o nazismo é o patamar mais baixo de degradação que a humanidade atingiu ao longo do tempo. E, para que não permaneça nenhuma dúvida a respeito, o bolsonarismo é a forma que o nazismo adquiriu ao se expandir em nosso país na atualidade. Em consequência, para enfrentar um monstro de tanta malignidade, seria preciso forjar um amplo leque de alianças que ultrapassasse em muito os limites da esquerda, ou seja, o campo popular. Portanto, a frente ampla que deu sustentação a Lula abrange setores sociais que vão das massas mais empobrecidas a expoentes do grande capital financeiro.
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Não obstante ter passado os últimos doze anos sob uma furiosa campanha de difamação e perseguição propalada por quase todos os órgãos da mídia corporativa, o ex-presidente Lula demonstrou ser o único brasileiro em condições de aglutinar os apoios necessários para derrotar eleitoralmente a gigantesca máquina político-mafiosa montada pelo bolsonarismo em torno de um ex-militar que, nos trinta anos anteriores, se havia dedicado a atividades características dos politiqueiros corruptos do baixo clero parlamentar, assim como a um profícuo envolvimento com grupos de milicianos do Rio de Janeiro.
Foi assim que, após ter sido vítima de uma acusação mentirosa de corrupção e de um vergonhoso julgamento que o condenou sem nenhuma prova, Lula ficou preso por cerca de 580 dias em uma cela da Polícia Federal em Curitiba. Esta foi a maneira encontrada para inviabilizar seu retorno ao governo nas eleições de 2018, uma vez que todas as sondagens de opinião o colocavam em primeiro lugar na preferência dos eleitores. Como não apareceu ninguém de confiança do grande capital que pudesse garantir os votos que impediriam que o nome substitutivo do campo popular (Fernando Haddad) fosse o vencedor, os senhores do capital fizeram sua opção pelo bolsonarismo. Embora o ex-capitão não exalasse odores muito convidativos, para afastar definitivamente a ameaça representada pelo PT, valia a pena tapar o nariz e promover a campanha do líder bolsonarista. E assim fizeram.
Após terem sentido na pele algumas das desgraças que o bolsonarismo é capaz de gerar até mesmo para as classes dominantes, muitos daqueles que haviam se empenhado no combate a Lula e seu partido chegaram à conclusão de que tinham embarcado numa canoa furada e agora precisavam de um remador experiente para salvá-los de um desastre ainda maior. Depois de várias tentativas fracassadas na busca por uma alternativa de seu grupo de confiança, foram obrigados a se resignar. Só havia uma pessoa em condições de cumprir a tarefa requerida: Lula.
Tendo comprovado que era de fato o nome certo para esmagar o despudorado aparato que o bolsonarismo tinha armado para garantir sua continuidade no comando do Estado, chegamos ao ponto seguinte da questão: Em qual rumo Lula deve orientar o curso de seu governo, levando em consideração que seus apoiadores provêm de classes sociais diferentes e, em muitos casos, até antagônicas?
Numa frente de tal amplitude, cada qual se esforça por garantir o máximo possível em favor de seu próprio grupo. A luta de classes não é eliminada nesta frente ampla. Ela tão somente ganha novos contornos. Assim, Lula, o PT, o PCdoB, o PSOL e as demais agrupações de esquerda participantes da aliança representam, ou devem representar, as aspirações do campo popular. Por sua vez, aqueles vinculados às forças do capital vão, evidentemente, atuar em sintonia com as pautas de interesse das classes em cujos nomes eles falam.
Cabe a Lula e ao resto da esquerda envidar todos seus esforços para que as principais reivindicações dos trabalhadores, das camadas médias e do restante das massas populares sejam atendidas. É preciso que eles estejam preparados e conscientes de que seu compromisso maior é sempre com as camadas sociais às quais eles estão associados. Em vista disto, em muitas ocasiões, terão de se confrontar inclusive com gente integrante de nosso bloco de apoio.
Mesmo que seja recomendável cultivar o bom relacionamento entre todos os que conformam a base de sustentação do novo governo de Lula, é importante ter em mente que as massas que nos sufragaram para derrotar o bolsonarismo esperam que seus representantes se empenhem para que suas necessidades não sejam relegadas a um segundo plano. Por isso, às vezes, poderá ser necessário travar batalhas para eliminar resistências que provenham do interior de nossa própria frente.
O bloco identificado com a esquerda neste governo comandado por Lula não pode nunca se esquecer que está ali em nome dos trabalhadores das cidades e do campo e das camadas médias. Estes são os grupos sociais que não vivem da exploração do restante da população. Não nos toca tomar a iniciativa na defesa de nenhuma medida que favoreça a espoliação das maiorias populares. O fato de integrarmos um governo de alianças que inclui setores das classes dominantes não pode nos transformar em defensores do capitalismo e nem em agentes neutros na luta de classes.
Temos ideologia e interesses específicos. Neste momento em que a devastação causada pelo bolsonarismo torna a reconstrução do país uma tarefa das mais difíceis, nosso dever é garantir a todos pelo menos a satisfação das necessidades básicas para a continuidade da vida em condições dignas. Não aceitamos a persistência da fome e da falta de moradia para ninguém, nem mesmo para os banqueiros e grandes proprietários rurais. Jamais permitiremos que eles, ou seus filhos, tenham de passar por essas privações. Só não podemos concordar com que seus lucros extravagantes tenham prioridade sobre as carências básicas de nosso povo.
Temos clareza de que na atual correlação de forças existente não podemos esperar que todas nossas aspirações sejam atendidas. Mas, é nossa obrigação zelar para que o máximo possível seja alcançado. Se os objetivos não puderem ser atingidos, que não seja por nossa falta de empenho.
Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.