Por Paulo Nogueira Batista Jr.
O leitor ou a leitora permite que eu interrompa, por um momento, as celebrações pela maravilhosa vitória no segundo turno? A intensa comemoração é mais do merecida. Depois de tantos anos de sofrimento e barbaridades, voltamos finalmente a respirar.
Sem esquecer, entretanto, que a luta continua. Bolsonaro, derrotado por pequena margem, tende a continuar aprontando. Seus apoiadores mais radicais, muitos deles inclinados à ilegalidade e à violência, estão ressentidos e inconformados. Lula terá de enfrentar, provavelmente, o que alguns na mídia estão chamando de “terceiro turno”, isto é, um embate perigoso contra o golpismo da extrema-direita bolsonarista. Os cuidados com a segurança do presidente eleito, diga-se de passagem, devem ser redobrados.
De todo modo, arrisco prever que a vitória de Lula nesse terceiro turno será mais fácil do que foi a vitória no segundo. Bolsonaro tem pouco apoio interno e externo para uma aventura, como se viu pelo que aconteceu depois da apuração dos votos. O resultado da eleição está sendo amplamente reconhecido, tanto no Brasil como no exterior.
Lamento dizer, porém, que teremos também um “quarto turno”. Não quero sobrecarregar o leitor ou a leitora com preocupações sinistras, mas nunca é prudente ignorar a realidade, por mais razões que tenhamos, neste momento, para cultivar o otimismo e as melhores expectativas para o futuro do nosso querido País.
O que seria esse “quarto turno”? Trata-se do processo pelo qual o poder econômico-financeiro tenta enquadrar o presidente eleito, atuando para que o futuro governo contemple seus interesses e privilégios. Isso inclui extrair compromissos sobre o que será e o que não será feito. E ainda, talvez mais importante, inclui a pretensão de escalar o time do futuro presidente, indicando quem deve e quem não deve ser nomeado para as principais funções, sobretudo na área econômica.
O artigo talvez esteja ficando um pouco abstrato e vago. Vou tentar ser mais específico. O poder econômico-financeiro tem um objetivo primordial – não tendo conseguido emplacar a terceira via nas eleições, o seu esforço agora é para garantir que Lula fuja o mínimo possível do script tradicional. Usando palavras mais fortes: procura-se colonizar o novo governo. Esta pressão já está em curso há algum tempo, tendo começado antes do primeiro turno. Lula e seus auxiliares, tarimbados que são, parecem estar resistindo. Sabem muito bem que seria uma lástima vencer no primeiro, segundo e terceiro turnos para perder no quarto.
Não estou falando de um fenômeno novo. Em 2002, a pressão dos interesses econômico-financeiros resultou na nomeação por Lula de Palocci para a Fazenda e Meirelles para o Banco Central. Em 2014, essa pressão desembocou na nomeação por Dilma de Levy para a Fazenda.
A história nunca se repete totalmente, mas o padrão desejado por esses interesses é, na essência, o mesmo. Com uma diferença importante – o ponto de partida do establishment financeiro é melhor desta vez, pois a lei de autonomia do Banco Central, aprovada durante o governo Bolsonaro, estabelece que o comando da autoridade monetária permanecerá nas mãos de um executivo do mercado, Roberto Campos Neto, pelos primeiros dois anos do futuro governo. Lula herda, portanto, o presidente do Banco Central escolhido por Bolsonaro.
No entanto, o establishment quer mais, sempre mais. Busca o controle do Ministério da Fazenda, com a indicação de um nome deles, ou palatável a eles, para o comando deste que é o ministério mais importante. Dou de barato que o superministério da Economia, uma péssima ideia retomada por Bolsonaro, será dividido de novo em Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio. A Fazenda permanecerá, entretanto, o ministério mais poderoso.
Como Lula reagirá a essa pressão? Ele declarou durante a campanha, repetidamente, que volta para fazer mais e melhor. Ora, o desempenho pífio da economia e da sociedade brasileiras em termos de dinamismo e justiça, exige uma mudança mais estrutural na condução da política econômica e em outras áreas. Como fazer essa mudança com a Fazenda e o Banco Central imobilizados, sob controle de setores que defendem o status quo?
Obviamente, sob pena de configurar estelionato eleitoral, o novo governo não poderá ser radicalmente diferente da Arca de Noé que venceu as eleições. Lula se apresentou como candidato de uma frente superampla, com expressiva participação da direita tradicional, e esta realidade política será considerada, por suposto, na formação do governo.
Isso não significa, entretanto, capitular diante das pressões do chamado mercado. Não acredito estar sendo idealista demais nem sonhando sonhos irrealizáveis. Parece-me perfeitamente possível tourear essas pressões do poder econômico e conduzir o País a um futuro melhor, de desenvolvimento com autonomia nacional e distribuição de renda. Isso requer coragem e clareza de propósitos que Lula certamente tem.
Para terminar, vamos a algumas praticidades. Primeiro ponto: seria crucial manter o controle da Fazenda. Isso poderia se dar, talvez, pela nomeação de um político da confiança do presidente. Pode ser alguém que não assuste o mercado, mas esse alguém deveria estar comprometido com uma agenda inovadora. Não um novo Palocci, pelo amor de Deus!
Por que um político, e não um economista? É que o cargo exige, mais do que nunca, capacidade de interagir e negociar com o Congresso. Um político com experiência parlamentar poderia ajudar muito, sobretudo agora que os poderes do Congresso se agigantaram por causa da dependência vital de Bolsonaro em relação ao Centrão. Economistas podem ocupar assessorias e secretarias e, quem sabe?, o comando do ministério do Planejamento. O ministro de Indústria e Comércio poderia talvez ficar com alguém da área empresarial. E o Itamaraty terá grande peso na definição e execução da política econômica externa do novo governo.
Os bancos públicos federais têm também importância estratégica. É o caso, por exemplo, do comando do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, instituições que terão papel decisivo na provisão de crédito para setores prioritários e para impulsionar a retomada da economia e a geração de empregos. Com a política fiscal submetida a constrangimentos variados, em parte por causa da pesada herança deixada por Bolsonaro, a política de crédito adquire ainda mais relevância.
Por outro lado, no Banco Central, onde a presidência e a maioria dos diretores serão, em 2023 e 2024, aqueles escolhidos por Bolsonaro, a margem de manobra é muito menor. A lei prevê, porém, que dois diretores serão nomeados no início de 2023 pelo novo governo. Os dois serão integrantes do Copom, onde se define a política monetária, e terão responsabilidades específicas, no campo doméstico e na área internacional. Por exemplo, o Banco Central, junto com a Fazenda e o Itamaraty, conduz a participação brasileira em fóruns como o G-20 e os BRICS. Recorde-se que, por um acaso feliz, o Brasil exercerá a presidência de turno desses dois fóruns em 2024!
Bem, chega de palpites. Ninguém me perguntou nada. Mas reitero, a título de conclusão e síntese: apesar das limitações e riscos, temos motivos para esperar que possa haver vitória no terceiro e quarto turnos também!
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O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.
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