Por Fernanda Rosário e Elias Santana Malê, para Alma Preta Jornalismo.
Passados os primeiros dez anos da Lei de Cotas, completados no dia 29 de agosto, ainda não há uma data definida para o processo de revisão da política de ação afirmativa, conforme é pontuado no texto da lei. No dia em que a lei atingiu uma década de promulgada, um estudo da Defensoria Pública da União (DPU) e da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) sobre as cotas raciais no ensino federal foi publicado e ressalta como a falta de monitoramento e avaliação da política é um ponto crítico de sua implementação.
De acordo com a pesquisa, que analisa a implementação da política de cotas raciais nas universidades federais, o Brasil conta hoje com 69 instituições de ensino federais, sendo que 10 universidades foram criadas a partir de 2013, ano em que a política passou a vigorar.
Segundo o relatório, as 69 universidades existentes foram questionadas pela DPU sobre o andamento da política afirmativa entre os anos de 2013 e 2019. Cinco instituições não apresentaram nenhuma resposta e 34 universidades responderam de maneira parcial. Apesar do alto número de respondentes (93%), menos da metade (46%) das que apresentaram respostas, o fizeram integralmente.
A pesquisa é o resultado de uma cooperação técnico-científica firmada em 2021 entre a DPU, por meio do Grupo de Trabalho de Políticas Etnorraciais da instituição, e a ABPN com a finalidade de desenvolverem atividades em conjunto para a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos da população negra e o enfrentamento do racismo.
De acordo com a defensora federal Rita Oliveira, coordenadora do Grupo de Trabalho Políticas Etnorraciais da DPU (GTPE-DPU), o estudo revela que os órgãos responsáveis precisam tomar a responsabilidade de criar mecanismos de monitoramento. Esses órgãos são o Ministério da Educação e a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
Segundo a coordenadora do GTPE-DPU, o levantamento mostra que as universidades de um modo geral têm muita dificuldade de alimentar dados adequadamente sobre a execução da política de cotas, seja por falta de uniformidade no tratamento desses dados ou ausência de diretrizes no tratamento das informações.
Essa situação passa pela ausência de uma política com uma fiscalização e um monitoramento adequado, em que não existe também uma preocupação precisa na garantia de que o percentual de ingressantes se aproxime ou se equipare ao percentual da população negra na unidade federativa da instituição, conforme pontua a Lei.
“É preciso se criar indicadores para avaliação da política e indicadores baseados nas metas de inclusão que a Lei almeja contemplar. É preciso normatizar alguns critérios de execução da lei como, por exemplo, o critério de controle social da heteroidentificação para que as universidades tenham um formato de processo que traga mais segurança jurídica. Com isso, a gente aprimora estratégias de investigação e prevenção de fraudes”, explica a defensora federal.
Segundo o relatório, em resposta à DPU, das 64 universidades respondentes , 47 informaram adotar procedimentos de heteroidentificação, enquanto 15 não adotam e 2 não responderam a esse dado específico.
As cinco universidades que não chegaram a responder a nenhuma das indagações da DPU foram: a Universidade Federal do Pará (UFPA), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), a Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPAR), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade Federal de Catalão (UFCAT).
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Racismo institucional
De acordo com Cleber Santos Vieira, presidente da ABPN, a ausência de respostas eficazes institucionais pode ser atribuída ao racismo institucional que não dá a devida atenção ao problema da desigualdade racial que existe no ensino superior e às leis que visam combatê-la.
“As instituições não criaram instrumentos, ferramentas e mecanismos de monitoramento e avaliação, porque o racismo institucional tem essa função de reproduzir as desigualdades raciais que estruturam a educação brasileira, principalmente o nível superior e de pós-graduação”, explica o presidente da ABPN.
De acordo com a defensora federal Rita Oliveira, a pesquisa surgiu justamente da preocupação da DPU ao identificar a ausência de movimentações dos órgãos responsáveis para o monitoramento da política considerando o contexto de avaliação das cotas.
“Houve também um receio de que informações distorcidas e incompletas viessem para o debate e não fortalecessem a política. Então por isso a gente resolveu coletar por conta própria essas informações”, explica.
Universalização das cotas e mais pontos de atenção para o futuro
O estudo da DPU e da ABPN também destaca que, entre os anos de 2004 e 2012, das 59 universidades existentes no período, 23 já adotavam algum tipo de política de ação afirmativa destinada a pessoas negras. O restante das universidades (61%) só passaram a adotar a política em 2013 por indução da Lei 12.711/2012 (Lei de Cotas).
“A Lei de Cotas cumpriu o papel de universalizar as cotas raciais nas universidades federais. Ocorre que, mesmo diante da existência de políticas afirmativas anteriores à Lei de Cotas, o foco na população negra era relativamente tímido”, revela o estudo.
Segundo a defensora Rita Oliveira, é preciso também pensar numa implementação isonômica e regular das políticas de cotas na pós-graduação.
“É preciso que a gente observe isso, porque se não há cotas na pós-graduação, você também não tem mais acesso de cotistas aos cargos de docentes. E se você não tem mais docentes negros e negras, há um processo de racismo epistêmico continuado”, explica a defensora federal.
O relatório pontua que das 64 universidades respondentes sobre pós-graduação, 41 informaram adotar a política de reserva de vagas para pessoas negras na pós-graduação, enquanto 17 não adotavam e outras 6 não informaram especificamente este dado.
O presidente da ABPN Cleber Santos Vieira destaca que, entre as outras grandes contribuições da pesquisa, estão os dados fornecidos pelas instituições federais de quantas vagas potencialmente destinadas para pessoas negras não foram preenchidas, o que indica que algo pode estar prejudicando esse preenchimento no meio do caminho.
Além disso, Cleber Vieira também ressalta que as discussões sobre as cotas raciais devem levar em consideração a consolidação de metas e de melhores políticas de permanência da população negra na universidade.
Os dados do relatório revelam que aproximadamente 30% dos estudantes de graduação das universidades federais que se utilizaram das cotas raciais evadiram. O dado considera a porcentagem dentro de um total de 300.625 estudantes negros que ingressaram nas vagas reservadas de 2013 a 2019 em 50 universidades que responderam sobre o assunto.
“Mecanismos de aprimoramento são importantes e o atingimento de metas é algo essencial. Esse processo de metas para formação de pessoas negras ingressas por cotas raciais é intrínseca à ideia de permanência estudantil. E dentre as políticas de assistências, eu destacaria também a necessidade de se colocar como meta o acolhimento psicossocial das pessoas negras que ingressam pelo sistema de cotas nas universidades”, explica Cleber Vieira.
A defensora federal Rita Oliveira comenta que a pesquisa trouxe informações oficiais mais completas sobre a implementação das cotas raciais nas universidades federais, mas não substitui a tarefa que ainda continua endereçada aos órgãos responsáveis por fazer esse monitoramento.
“A ideia é que a pesquisa contribua para que a gente discuta o aprimoramento da Lei e melhorias de alguns mecanismos normativos que precisam estar contemplados numa alteração legislativa na perspectiva de fortalecer a legislação e não dar brecha a nenhum tipo de retrocesso da política afirmativa”, finaliza.