Por Bruna Della Torre, no blog da Boitempo
“Bolsonaro é o presidente mais rosa da história do Brasil”. Essa é uma das muitas propagandas direcionadas às mulheres que estão circulando nas redes bolsonaristas. A frase é de Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e candidata ao Senado pelo partido Republicanos, que, além desse disparate, sugeriu recentemente em seus perfis nas redes sociais que a esquerda e o Partido do Trabalhadores espalham cartilhas estimulando a masturbação infantil e o uso de crack e distribuem livros que pregam o incesto entre pai e filha. Com muito atraso e após milhões de visualizações, esses vídeos saíram do ar. Nos últimas dias, foi sugerido também em suas redes que Lula apoia a violência de gênero. É ela a principal responsável pelo espraiamento da concepção conservadora de família que caracteriza o bolsonarismo e pela transformação da religião em arma política, cujo precedente na história do país compara-se apenas, talvez, ao período da colonização.
2018 está de volta, sem nenhum charme vintage.
Não vale a pena gastar espaço aqui com o trabalho de Sísifo de desmentir as fake news a respeito das políticas ligadas às mulheres sob o governo Bolsonaro. As redes sociais e seu modelo de plataforma contornam o efeito que a verdade foi capaz de exercer um dia sobre a política e não há fact-checking que dê conta do recado nessas condições. Ao invés disso, gostaria de refletir sobre algumas mudanças que essa propaganda direcionada às mulheres sofreu no último ano e tentar lançar algumas hipóteses provisórias sobre seu funcionamento.
Damares Alves e Michelle Bolsonaro enfrentaram o presidente. Ao menos é dessa maneira que a notícia tem corrido. A primeira irá concorrer ao Senado, com o apoio da primeira-dama, contra a ex-ministra Flávia Arruda, a candidata escolhida por Bolsonaro para concorrer pelo PL. Em 2018, além de Damares Alves, nenhuma mulher teve grande destaque na campanha de Bolsonaro, nem mesmo Michelle Bolsonaro, que agora está em campanha junto com o marido e é considerada figura central para sua reeleição, especialmente no que se refere à sua importância para o eleitorado evangélico e feminino, como tem noticiado a grande mídia. Esse novo giro da propaganda bolsonarista certamente é uma reação ao crescimento dos feminismos que ameaçam a popularidade de Bolsonaro entre as mulheres, especialmente, entre as mulheres jovens. Nesse contexto, a estratégia de sua propaganda foi mudando. Os exemplos abundam.
Circulam nas redes bolsonaristas fotos da primeira-dama no palanque, de verde, com a bandeira do Brasil pendurada nos ombros e com a legenda: “as feministas não sabem, mas essa mulher expressa o que é empoderamento”. Essa palavra não fazia parte do bolsonarismo até aqui. Um dos principais métodos da agitação de extrema-direita sempre foi esse: o spinning, a torção e distorção de significado do sentido corrente de palavras associadas a contextos específicos. “Empoderamento”, uma palavra que tem uma longa e complexa história no feminismo, agora, está agora na boca da extrema-direita.
Para tentar contornar a fala de Bolsonaro de que sua filha, Laura, foi o resultado de uma “fraquejada”, uma foto da criança (não está claro se autorizada pelo presidente) estampa uma das convocações golpistas ao 7 de setembro que circulam em grupos bolsonaristas no Instagram. De uniforme militar e batendo continência, sua filha figura com a legenda: “Laurinha Bolsonaro”: “7 de setembro, não deixe de comparecer”.
Mas não se trata de um aceno ao feminismo por parte da campanha de Bolsonaro – ainda que essa propaganda seja dirigida às mulheres. A situação é mais complexa. Como vimos no debate essa semana, Bolsonaro continuará a ser truculento com as mulheres – a fidelidade de parte de seu eleitorado depende disso. Seu filho, Eduardo Bolsonaro, segue o exemplo do pai e tem aparecido em diversas postagens em suas redes sociais com uma camiseta na qual consta a seguinte frase transfóbica: “A man is not a Woman” [Um homem não é uma mulher]. Também não se trata de uma propaganda que caminha na direção de um feminismo liberal, como aquele que encontramos em Tabata Amaral e Simone Tebet.
O antifeminismo “empoderado” enfrenta diretamente a própria ideia de feminismo. O “engodo” produzido por esse movimento (sempre apresentado de forma unidimensional, sem a pluralidade que o caracteriza) tornou-se um dos assuntos favoritos do canal do Youtube “Brasil Paralelo”, uma das maiores plataformas de extrema-direita em funcionamento no Brasil hoje. Entre 2020 e 2021, segundo noticiou o site Intercept Brasil, a empresa foi o maior anunciante de posts sociais e políticos do Facebook. Dentre eles, constava o post que associava Simone de Beauvoir à pedofilia. A produtora também é campeã de anúncios políticos no Google. Em seu canal, circulam vídeos, lives e debates que denunciam “a face oculta do feminismo”, um movimento que quer perverter “a ordem natural das coisas” e “promover o assassinato de bebês”. Mulheres anunciadas como especialistas no assunto, sempre cercadas de livros, são convidadas a desmentir os mitos ligados ao movimento. Um dos alvos favoritos é o “sistema” educacional brasileiro que, tomado pela esquerda, foi responsável pelo afastamento das mulheres jovens de suas raízes religiosas e familiares. O bolsonarismo faz um uso da palavra “sistema” similar ao do nacional-socialismo. Da mesma maneira que esta palavra referia-se invariavelmente, como mostra Victor Klemperer, em A linguagem do Terceiro Reich, à República de Weimar, também sob o bolsonarismo, “sistema” é tudo aquilo criado sob o governo do Partido dos Trabalhadores. De qualquer forma, a tese é clara: quanto mais se avança na educação formal, mais as mulheres se tornam feministas. Seria melhor não estudar? Ou a ideia mesmo é exigir um expurgo feminista nas escolas e universidades? Talvez os dois. Esse expurgo, aliás, já está acontecendo, com a demissão de pessoas que tratam de temas relacionados ao gênero e à sexualidade em escolas e faculdades privadas. Diversas universidades públicas encontram-se sob intervenção do governo. A educação aparece como a principal via de ascensão do feminismo nessa propaganda, acentuando o anti-intelectualismo que é característico do bolsonarismo.
Mas embora não se apresente como um feminismo liberal, o bolsonarismo agora recruta mais mulheres para representá-lo e para responder a algumas questões ligadas ao gênero. Júlia Zanata, catarinense candidata a Deputada Federal pelo PL, tem sido responsável pela “defesa do armamento civil” entre mulheres. Zanata tem entrevistado delegados, instrutores de tiro e policiais em suas redes sociais. Eles confirmam sua tese: a melhor maneira de se proteger contra a violência de gênero é possuir uma arma. Dentre suas postagens, constam inúmeros exercícios de tiro ao lado de Eduardo Bolsonaro e fotos suas no sofá com um bebê no colo e um fuzil na mão. Como ela, influencers posam com fuzis cor-de-rosa e postam vídeos praticando tiro com roupas de princesa e outras fantasias de gosto duvidoso. A estética é macabra. Quando o anestesista Giovanni Quintella Bezerra foi preso em flagrante por estuprar mulheres no momento do parto, Zanata fez um vídeo no qual comentava como era fácil se chocar com o caso, mas se perguntava: “onde está esquerda quando defendemos a castração química para esse tipo de pessoa?” Fica sugerido que nós feministas “não vamos até o fundo dos problemas”. Elas, sim, mulheres conservadoras são as verdadeiras empoderadas: andam armadas e pedem penas máximas aos criminosos sexuais. O antifeminismo (como tudo nesse governo) foi parar na ponta do fuzil. O bolsonarismo é mesmo um mito – só que o do rei Midas miliciano, que transforma tudo aquilo em que põe a mão em chumbo.
Em 2018, Bolsonaro elegeu-se no contexto do assassinato da vereadora Marielle Franco (cuja memória foi aviltada por vários de seus apoiadores) e de uma série de declarações altamente misóginas e criminosas que iam da homenagem ao torturador Carlos Brilhante Ustra – “o terror de Dilma Rousseff”, como disse à ocasião do golpe que derrubou a presidenta – à desqualificação de políticas como a licença-maternidade (um ônus para os empregadores, segundo o candidato). Apesar disso e do importante movimento “ele não”, 42% das mulheres votaram em Bolsonaro em 2018, em contraposição aos 41% das intenções de voto em Fernando Haddad, segundo pesquisa do Datafolha realizada em 25 de outubro do mesmo ano. Esse contexto impunha inúmeros desafios à compreensão sociológica. Sem dúvida, em 2018, a propaganda que elegeu Jair Bolsonaro encontrou ressonância no machismo, na misoginia, no supremacismo e na homofobia que, sim, estavam presentes em grande parte da população brasileira, inclusive dentre as mulheres. Como sempre alertou a teoria crítica da Escola de Frankfurt, não são apenas forças exteriores que ameaçam a democracia. Sua “corrosão por dentro” é muito mais perigosa e preocupante. Mas naquele momento, com o movimento “vira voto” em São Paulo, quando interpelávamos as mulheres a respeito do machismo de Bolsonaro, citando, por exemplo, suas falas sobre o “peso” da licença-maternidade para os empregadores, a resposta que obtínhamos, tanto em bairros ricos, como em alguns bairros periféricos, era mais ou menos sempre a mesma: “ele é brincalhão”, “ele não tem má intenção, é o jeito dele”. Não havia um antifeminismo militante conduzido por mulheres, embora a luta contra a “ideologia de gênero”, encampada por Damares Alves, tenha sido central na campanha. Com a queda de popularidade de Bolsonaro – que hoje já se recupera e obtém 29% das intenções de voto feminino, segundo o último Datafolha – há um movimento mais expressivo de mulheres que se engaja em prol do bolsonarismo e que se organiza num movimento antifeminista que trará consequências severas para a política no país, Bolsonaro ganhando ou perdendo as eleições.
Para alguém interessada em compreender criticamente o que ocorre no Brasil, é impossível não perguntar: como pode um setor tão direta e sistematicamente atacado por Bolsonaro como o das mulheres apoiar sua candidatura? Como podem mulheres engajar-se num movimento antifeminista? Isso certamente não é novidade. Nos Estados Unidos, Phyllis Schlafly criou um movimento que quase derrubou a Equal Rights Amendment (ERA) nas décadas de 1960-70 (há uma série interessante chamada Mrs. America, na qual sua trajetória é retomada). Atualmente, a delirante Marjorie Taylor Green cumpre o mesmo papel (aliás, a nossa extrema-direita tem copiado sistematicamente as estratégias do trumpismo também nesse sentido). Esse movimento impõe ainda mais desafios à compreensão crítica da realidade.
Essas mulheres recrutadas pelo bolsonarismo – para utilizar o vocabulário bélico que eles empregam em sua propaganda – são em sua grande maioria brancas, heterossexuais e de classe média. Sua propaganda no Tik Tok e no Instagram foi inundada por postagens de mulheres jovens que o apoiam. Ou seja, são mulheres que encontram ainda algumas “delícias e vantagens da submissão”, para utilizar uma expressão de Simone de Beauvoir. Elas se orgulham em dizer que “as mulheres de direita são mais bonitas”. Dançam ao lado de Bolsonaro ao som de Mc Reaça: “Dou pra CUT pão com mortadela/ E pras feministas, ração na tigela/ As mina de direita são as top mais bela/ Enquanto as de esquerda têm mais pelo que cadela”. Elas reativam o estereótipo da mulher feminista “feia, mal-amada, nojenta, peluda, fedida” – fazendo uso da típica desumanização dos seus inimigos à qual sempre recorreu a propaganda fascista. Mas dão adeus, ao mesmo tempo, à imagem da mulher “bela, recatada e do lar”. Elas se vestem como “mulheres de negócios”. Apresentam-se como mulheres independentes que não precisam do feminismo em suas vidas. Postam vídeos dirigindo picapes. Pegam em armas, panfletam em faróis, formam bancas na Avenida Paulista para convencer as mulheres das “falácias do feminismo”. São submissas “apenas a Deus e a seus respectivos maridos”, como disse Júlia Zanata em um de seus posts. Defendem a pátria, a liberdade, a família e a segurança.
A propaganda da extrema-direita, como aprendemos a duras penas nos últimos anos, é marcada por um forte apelo emocional. Não é fortuito que se fala tanto em irracionalidade (Adorno diria: irracionalidade racionalmente aplicada), em afetos, em uma política do ódio e do estômago. Embora esses elementos não expliquem sozinhos a ascensão do fascismo, eles são fundamentais para pensar o substrato emocional ao qual ele apela. No seu interessante estudo a respeito da agitação de extrema-direita nos Estados Unidos, Prophets of Deceit, Leo Löwenthal e Norbert Guterman, destacam alguns sentimentos e complexos emocionais que essa propaganda mobiliza. Em primeiro lugar, os agitadores de extrema-direita suscitam desconfiança na população, eles promovem a sensação de que há uma manipulação por trás de tudo (da mídia, das vacinas, dos governos petistas). Eles ascendem denunciando a política como uma grande fraude. Esse tipo de propaganda também estimula sentimentos de dependência; fenômeno complexo que combina uma denúncia das várias manipulações e um apelo ao pertencimento a uma organização forte, com um líder igualmente robusto que irá proteger seus seguidores do engano. Ademais, essa agitação cria uma enorme ansiedade, trata-se de um apelo ao medo da catástrofe que se seguirá se “nossos inimigos vencerem”. Mais que o medo que mobiliza a adesão a esses líderes, o medo de perder “um modo de vida”, a propaganda de extrema-direita cria e infla um sentimento de exclusão; de que todos estão gozando de algo – uma “mamata” – do qual eu sou o único excluído. Esse mecanismo é um dos principais geradores do ressentimento que alimenta esse tipo de política. Vejamos como isso tem aparecido na propaganda antifeminista no Brasil. Nela, o feminismo tem sido apresentado como o principal lócus da “falta de moral” dentre os opositores de Bolsonaro. As feministas atacam a família, assassinam bebês, possuem um desejo patológico de gozo (é recorrente nesses vídeos o argumento de que podemos fazer sexo com quem bem entendemos, mas que o feminismo tornou nossas vidas vazias, tristes e isentas de valores) e, mais do que isso, querem subverter a ordem estabelecida e fazer uma revolução (muitas vezes implica-se também que essa revolução envolve “educar” as pessoas para ser homo, trans ou bissexuais). Está em curso a formação de um movimento antifeminista no Brasil e de uma caça às bruxas que se apoia numa infraestrutura digital que faz essa propaganda penetrar fundo no corpo social.
Mas essa propaganda tem também um elemento “positivo”, não se trata apenas de desqualificar o feminismo. Ela parece apelar, de um lado, para a valorização da família que acompanhou historicamente, entre as mulheres, a responsabilidade pela reprodução social. Por isso, as antifeministas buscam criar medo nas pessoas ao afirmar que as feministas querem destruir a família e impor o aborto como norma social. A impressão que temos, com o seu discurso é que essa prática será compulsória. Em seu canal do Instagram, “mulheres_bolsonaro”, Gel Fadel, candidata a deputada estadual pelo PTB, diz: “hoje me deparo com uma realidade que me assusta […] jovens adolescentes, as nossas mulheres, que gostam muito de drogas, baladas, bebidas, diversão e amam o prazer. Mas essas mulheres não gostam e não querem se responsabilizar pelos seus atos. ‘Meus corpos minhas regras’. Seu corpo suas regras, mulher, mas isso não lhe dá o direito de tirar uma vida […] você acha que uma vida é um copinho plástico que você joga no lixo porque não tem mais utilidade?”. A prática do aborto, que é uma luta histórica por direitos reprodutivos, aqui é associada ao hedonismo, à promiscuidade, ao gozo extremo e à busca insaciável de prazer por parte das mulheres, ou seja, a um comportamento social condenável e uma sexualidade feminina patológica e irresponsável. A prática do aborto ameaça, assim, não só a família, mas toda a ordem social segundo essa propaganda antifeminista. Mobiliza-se o tempo todo, em propagandas desse tipo, essa ideia de que as “outras”, as feministas, têm acesso a um gozo do qual as mulheres “de bem” são privadas e que a gravidez é consequência “divina” da vivência da liberdade sexual e deve ser suportada como punição decorrente desse comportamento – e, mais que isso, merecida.
Vale lembrar que a crítica feminista à família tem a ver com o reconhecimento de que a família é “cuidado”, mas é também trabalho não pago e uma das principais instâncias de opressão das mulheres. Como mostrou Silvia Federici, uma das principais bandeiras históricas do feminismo marxista consistiu justamente em fazer o capital e o Estado pagarem por essa reprodução, na forma de políticas de alimentação, transporte, moradia, salários para o trabalho doméstico. Essa crítica feminista vinha acompanhada da descoberta da família como “laboratório secreto” da reprodução capitalista. Nada mais perigoso para o bolsonarismo do que isso. Para Bolsonaro, “a família é a célula da sociedade, a família perfeita, ajustada é mais que lucrativa para o Estado” e anda lado a lado com a defesa do livre-mercado e da liberdade. O elemento econômico desse discurso é evidente. Há uma noção de família que se atualiza na convergência entre neoliberalismo e neoconservadorismo. Como mostrou Melinda Cooper em suas análises do trumpismo, a família deve tornar-se a principal fonte de segurança (por ser a principal instância de cuidado), inclusive econômica, porque o Estado está muito ocupado financiando o grande capital para se responsabilizar pela reprodução da própria sociedade que o sustenta. Essa é a razão pela qual ela é central para a política bolsonarista e para o conservadorismo religioso que o acompanha. Esta ideia de “família” compõe uma das formas que a ideologia contemporânea assume. E, sim, precisamos chamar as coisas pelos nomes que elas possuem: ideologia. Essa família “perfeita”, “ajustada” refere-se a uma noção de família branca heteronormativa que foi também um meio de opressão das mulheres negras no Brasil, que historicamente chefiaram sozinhas as suas famílias, desafiando na prática essa ideia que estão querendo nos enfiar garganta abaixo novamente. Além disso, conforme mostrou também Verónica Gago, em A potência feminista, o boom das igrejas evangélicas sob o neoliberalismo e de sua defesa da “família” também visa restituir a autoridade masculina erodida pela precarização que passa a desconectar essa autoridade dos homens de sua função de mantenedor do lar. De qualquer forma, são todos esses argumentos que esse tipo de propaganda busca enfiar debaixo do tapete, mobilizando o medo da perda das únicas instâncias de segurança que a maior parte das mulheres possui no Brasil: a família e as redes coletivas de cuidado. Mais importante que “defender a família”, como pede uma parte da esquerda, seria expor e denunciar os interesses econômicos que subjazem ao discurso que se quer “moralista” da propaganda bolsonarista.
A defesa da família, no entanto, não é o único elemento que assume de certa forma a falência (proposital) do papel social do Estado que acompanha o neoliberalismo. Nas “entrevistas” concedidas por Zanata e publicada nas redes sociais, ela não cansa de ressaltar como as medidas protetivas de mulheres que sofrem agressão e a própria polícia militar não são suficientes para combater a violência contra as mulheres. É curioso como um movimento reacionário que se sustenta também por meio do apoio massivo da polícia militar declare tão abertamente a incompetência de sua própria base. A ideia é que, como as famílias devem se responsabilizar pela sua sobrevivência (como disse inúmeras vezes Bolsonaro durante a pandemia), as mulheres devem se responsabilizar elas próprias por sua segurança sob esse Estado que se ocupa de encarcerar a população em massa e financiar igrejas e o agronegócio, mas não desperdiça recursos com políticas que combatam a violência contra a mulher. Diz-se que “não é sobre armas, mas sobre liberdade”. A “desconfiança” e a insatisfação das mulheres com os serviços públicos são mobilizadas na direção desse empoderamento pela via da guerra social. Trata-se, no entanto, de uma responsabilização individual pela segurança pública e pela seguridade social, ou seja, tarefas que deveriam ser do Estado. Seria fundamental que esses aspectos fossem ressaltados nas propagandas do PT, embora o partido esteja evitando tratar daquilo que insiste em classificar como pauta dos “costumes”.
O papel que a noção de “liberdade” cumpre nessa propaganda também é fundamental para a compreensão de seu funcionamento ideológico. Desgastar a palavra “liberdade” é um dos grandes feitos políticos do fascismo. Esse desgaste não é pura propaganda, mas se assenta, sob o capitalismo, nas tensões objetivas entre liberdade e igualdade. Como afirmou Adorno em sua palestra sobre os “Aspectos do novo radicalismo de direita”, “o fascismo é uma ferida da democracia” – ou seja, ele cresce ali onde ela não realiza as suas promessas. Como estão fazendo com a “liberdade de expressão”, que consiste na realidade na liberdade de cometer uma série de crimes, as antifeministas utilizam a noção de liberdade para mobilizar o ressentimento disseminado que acompanhou o crescimento do feminismo nos últimos anos, bem como para criminalizar e perseguir a luta feminista.
Nos programas veiculados pelo Brasil Paralelo sobre o “lado obscuro do feminismo”, é notável a recorrência de perguntas e insinuações como as que seguem: “Será verdade que as mulheres devem tanto ao feminismo?” “A conquista do sufrágio foi mesmo resultado da luta feminista?”, “Será mesmo que as mulheres devem ser feministas?” “Porque o feminismo é tão importante atualmente?” Mobiliza-se intensamente a desconfiança das pessoas. O bolsonarismo (como outras formas de fascismo fizeram na história) se construiu produzindo um sentimento de que as pessoas foram enganadas por corrutos e ladrões. E ninguém quer fazer papel de tolo ou tola. Por isso, é necessário dizer: e se as feministas estiverem mentindo para vocês? Esse tipo de questionamento funciona como uma espécie de amparo num cenário caótico que é produzido em grande parte por esse próprio movimento reacionário. A implantação das dúvidas também “empodera”: agora que me pergunto se isso é verdade, não podem mais me enganar. De novo, o spinning: é o feminismo que é um logro e visa impor uma “ditatura de gênero” no país. “Feministas” são pessoas que sofreram uma “lavagem cerebral” e o movimento feminista é um movimento de “imbecilização coletiva”. Num desses vídeos, uma dessas agitadoras afirma: “eu fui atraída pelo feminismo, mas algo me dizia que aquilo não estava totalmente certo e eu fui pesquisar para ver o que era, mas eu entendo que as pessoas que se tornam feministas não têm o mesmo ‘espírito investigativo’ que eu”. Nesses programas, há uma promoção cada vez maior desse “olavismo antifeminista” que apela o tempo todo para o medo que as pessoas têm – num mundo tão cheio de informações – de se sentir idiotas. É igualmente constante a responsabilização do feminismo pela infelicidade atual das mulheres. Além disso, tudo é personalizado: “e se EU gostar de me depilar?”, “não posso mais por causa das feministas?”. “E se eu sou contra o aborto? Vou ter que conviver com isso por causa das feministas?” As pautas realmente importantes dos movimentos feministas são misturadas, nessa propaganda, com questões muito menos relevantes para que a pessoa que assiste esse tipo de conteúdo fique completamente desorientada em relação ao que está em pauta. Citam-se livros “raros”, “fora de circulação” e “quase não disponíveis”, que na verdade estudaram muito melhor o papel dos homens e das mulheres em nossa sociedade e ao mesmo tempo desclassifica-se qualquer tipo de simpatia pelo “movimento feminista” como ingenuidade. A propaganda bolsonarista rebaixa propositadamente a inteligência de seu público, para posteriormente “empoderá-lo” com um conhecimento que só eles possuem e que é de difícil acesso. Depois de tantas voltas, a liberdade acaba reduzindo-se ao poder de aquiescer à dominação sem julgamento dos outros.
A teoria crítica sempre sustentou uma tese muito interessante: é preciso quase tanto esforço para se adaptar ao sistema capitalista quanto para negá-lo. Quando foi chamado a discutir o capitalismo tardio, Adorno esboçou a seguinte ideia: retomando a tese de Marx de que o trabalhador foi obrigado a se integrar à produção capitalista como apêndice das máquinas, ele diz que essa integração, sob o capitalismo tardio, passou a se dar também com as emoções mais íntimas. Isso vale também para a dominação masculina e significa, num primeiro momento, que todo o esforço de “des-adaptação” aos velhos modelos, vai gerar forte reação de quem gastou tanta energia para se adaptar a eles. Como mostrou Manon Garcia em On ne naît pas soumise, on le devient, em algum nível, e onde não reina a dominação pura da força bruta, há também, no âmbito do gênero uma espécie de “colonização interna”.
A “primavera feminista” dos últimos anos desestabilizou uma série de acordos que sustentavam o pacto social neoliberal e conservador no qual vivemos. E isso gerou um ressentimento que não advém apenas da população masculina.
Vários feminismos denunciam o trabalho de reprodução social, o trabalho de cuidado não-pago, pelo qual as mulheres são responsabilizadas como se isso fosse um destino natural, enquanto ele serve em grande parte à reprodução – não das pessoas e de suas famílias – mas da classe trabalhadora cujo trabalho é o único elemento que mantém o Capital funcionando. Além disso, diversas correntes do feminismo desassociam sexo, gênero e sexualidade, bem como buscam desvincular o direito de desejar e de ser desejada da necessidade de possuir um corpo, uma cor, uma aparência física específica. A ideia de que o direito de desejar e ser desejada não envolve nascer com uma determinada cor, numa determinada classe, passar fome por opção e passar horas se exercitando para atender a um padrão de beleza estabelecido pelo olhar masculino suscita um ressentimento tão grande de uma parcela das mulheres quanto aquele que suscitava o bolsa família: “ué, o pobre vai receber sem trabalhar para isso?”. Na propaganda antifeminista, isso aparece no elogio constante dos “rituais de beleza”, especialmente a depilação, que as “feministas odeiam”. Os feminismos negros recusaram a sexualização dos corpos negros herdada da escravidão e reclamaram uma posição de igualdade nas universidades, na política, no trabalho. O raciocínio é o mesmo: “Vai entrar por cotas, enquanto as outras mulheres têm que estudar? Onde está a meritocracia nisso?” O feminismo perguntou: por que as mulheres devem ser monogâmicas, se os homens, na prática, nunca o foram? Por que devemos engolir os assédios mais absurdos em todos os espaços sociais nos quais circulamos? Por que não podemos falar em direitos reprodutivos e decidir sobre o destino de nossos corpos?
Quem teve que aceitar à revelia uma vida não-monogâmica exclusiva de seus parceiros, quem se responsabilizou sem reclamar (ou mesmo reclamando) pelo pesado trabalho de reprodução social, quem sofreu calada assédios sexuais e morais no trabalho, na família, do companheiro, quem, a duras penas aceitou esse pacto social, ressente-se do grande “não” que os movimentos feministas têm falado para a sociedade patriarcal brasileira contemporânea. A regulação do trabalho doméstico no Brasil gerou uma revolta imensa na classe média, especialmente, nas mulheres que eram as responsáveis imediatas pelo comando desse trabalho. “Onde já se viu essa gente querer ganhar X reais por um dia de trabalho? Ter férias?”. Se é fato que as classes médias baixas e médias também sofrem pressões econômicas no Brasil, também é fato que o trabalho doméstico irregulado, não fiscalizado e “a preço de banana”, era uma compensação não só material à reprodução dessas classes, mas também mecanismo de compensação psicológica desse setor dadas as humilhações cotidianas às quais as trabalhadoras domésticas são submetidas no Brasil, como mostrou tão bem o filme de Anna Muylaert, Que horas ela volta?.
Os feminismos expõem a produção social da submissão feminina. Por um lado, essa submissão é de fato objetivamente produzida, como mostra Simone de Beauvoir. Por outro lado, ao problematizar esses processos sociais, esses feminismos também os tornam visíveis, explícitos e abrem caminhos para a transformação social. Quem se esforçou para se adaptar, ainda que de forma inconsciente (e especialmente nas camadas mais privilegiadas, onde resta alguma margem de manobra às mulheres), sente como uma afronta o modo como alguns feminismos mobilizam essas energias na direção oposta – tornando esse processo de adaptação não apenas supérfluo, mas índice de dominação. Essa propaganda tem explorado muito esse ressentimento de “quem ficou para trás”, de quem sente que os seus valores, o seu modo de vida se tornou obsoleto. É por isso que o antifeminismo explora muito bem também o choque entre gerações. Não é à toa que muitas jovens e jovens têm sofrido intensamente com os conflitos familiares produzidos pelo bolsonarismo e pelo modo como esse movimento autorizou de uma vez por todas os discursos e práticas machistas, racistas, homofóbicas que já estavam presentes em nossa sociedade. Para quem defende a família, eles foram os maiores destruidores dessa instituição no Brasil. A cisão que o país está vivendo é experimentada subjetivamente por aqueles que vivem nele por meio de conflitos e rompimentos dentro das famílias, dos grupos de amizade, de trabalho etc. A violência da “liberdade de expressão” que pregam está fazendo adoecer grande parte do país. Além do comportamento gangsterizado e de bando que transforma a política num bang-bang do velho oeste, também se cria uma guerra de nervos.
Mas a distorção da ideia de liberdade não para por aí. No lançamento da campanha de Bolsonaro, Michelle Bolsonaro falou em “libertação”. Disse que Bolsonaro tem um projeto de “cura” para o país: é preciso libertá-lo de seus inimigos, associados ao demônio. Também aqui se mobiliza esse substrato emocional: a projeção do caos que a esquerda visa instalar, o doomsday scenario que nos espera se “o gigante não acordar”, se não fizemos alguma coisa para evitar isso. O chamado é para a ação. Conforme lembra a teoria crítica, a principal função da agitação fascista não é informar, mas servir de lubrificante para o terror. Um terror, do qual a religião se tornou um dos principais instrumentos e que, como dizia Freud, “mesmo que se denomine a religião do amor, tem de ser dura e sem amor para com aqueles que não pertencem a ela”. A defesa da liberdade religiosa liga à campanha de Bolsonaro ao reino do horror da luta divina contra o mal.
A propaganda antifeminista bolsonarista transforma a submissão, a objetificação, a responsabilização capitalista irrestrita pelo trabalho de reprodução, entre outros elementos, em liberdade e busca confinar novamente as mulheres aos seus antigos espaços e papéis (ainda que com uma arma cor-de-rosa no coldre). Com isso, esse tipo de propaganda reforça vários dos traços da nossa Escala-F verde e amarela: o convencionalismo e a adesão rígida aos valores convencionais de classe média; o anti-intelectualismo; a agressividade autoritária que acentua a tendência punitivista em relação àqueles que escapam aos valores convencionais; a projetividade (projeção de impulsos emocionais inconscientes) e preocupação exagerada com sexo. As propagandas de Damares Alves que citei no início do texto exemplificam muito bem uma série desses pontos. E sua eficácia está ligada justamente ao fato de que quando mais absurdas elas são, mais apelam às fantasias mais proibidas. A obsessão com a pedofilia e o incesto, além de suscitar a vontade de vingança contra aqueles que rompem as regras sociais e ferem inocentes, produzem, acompanhados pela descrição detalhada das “perversões que o Partido dos Trabalhadores” incentiva, um apelo inegável às fantasias sexuais inconfessáveis em torno das quais se organiza nossa sociedade, conforme mostrou a psicanálise. Esse tipo de propaganda, conforme mostrava Adorno, é uma espécie de “psicanálise reversa”. Seus efeitos vão muito para além da valorização positiva da família que pregam.
Algumas das mulheres que participam dessa propaganda antifeminista certamente têm algo a ganhar: candidaturas, cargos, seguidores. Mas esses ganhos não irão se estender àquelas que acreditarem em seu discurso. A propaganda fascista é um mecanismo de distorção da percepção da dominação de gênero e de classe. Ele se alimenta de uma insatisfação que está presente no corpo social, que tem bases materiais e orienta a direção que essa insatisfação vai tomar.
Mas é sempre bom lembrar que o fascismo é um contramovimento, porque luta contra todas as tendências de desintegração e de “descolonização interna” em curso: o feminismo, a luta contra a precarização, a luta abolicionista etc. Por isso, ele também é o sinal de que algo se move por baixo da superfície. A esquerda precisa reconhecer o feminismo, especialmente o feminismo marxista, antirracista, abolicionista, pró-LGBTQIA+, como uma das forças disruptivas que temos à nossa disposição na luta contra o fascismo. Não é pelos costumes. É pela verdadeira liberdade, inseparável da igualdade que eles querem suprimir. E essa liberdade depende, sim, da regulação das redes que circulam essa propaganda e da desmonetização das igrejas que se tornaram artilharia pesada nas mãos do bolsonarismo. Eles estão nos empurrando para a retaguarda: se defendemos a separação entre Igreja e Estado, somos intolerantes; se criticamos a família como instância de opressão, discriminamos os pobres e queremos destruir a sociedade; se pedimos a regulação da mídia, somos antidemocráticos. Não podemos recuar em nossas pautas e é preciso voltar esse discurso contra eles próprios. São eles os profetas do engano.
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