Direitos humanos, numa sociedade injusta e desigual como a do Brasil é um tema “subversivo”. Os setores conservadores nem falam disso, porque atender direitos humanos é atender às reivindicações dos trabalhadores e as necessidades da maioria da população. No Brasil, assim como nos países subdesenvolvidos em geral, que sustentam o padrão de consumo do centro capitalista, de uma forma geral, os direitos humanos básicos (alimentação, moradia, emprego) são um verdadeiro luxo.
Uma pesquisa recente da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), revela esse fato com muita ênfase: 40% dos domicílios brasileiros convivem com algum tipo de insegurança alimentar, o que é equivalente a cerca de 125,2 milhões de pessoas, mais da metade da população do país nessa condição. Cerca de 15% da população, equivalente a 33 milhões de pessoas, estão passando fome. Como pode, num país no qual mais da metade da população vive sem ter certeza se fará ou não as refeições normais ao longo do mês, irá preservar os direitos humanos? Não existe direito mais essencial do que o direito à alimentação regular. No caso do Brasil, a insegurança alimentar nada tem a ver com questões demográficas ou climáticas: o Brasil é o terceiro produtor de alimentos e o maior produtor de proteína animal do mundo. A fome é uma “opção” de quem manda no país, não é um problema técnico.
No primeiro trimestre do ano, o lucro líquido do Banco do Brasil, Bradesco, Itaú Unibanco e Santander – os quatro maiores bancos do Brasil com capital aberto na Bolsa de Valores – foi o maior da história (lucro líquido de R$ 24,3 bilhões entre janeiro e março). O que explica haver o equivalente a 73% da população da Argentina passando fome? É uma decisão de quem detém o poder: “para nós os lucros, para vocês a fome”.
Direitos humanos são os direitos da esmagadora maioria dos humanos, que vivem do trabalho. Todos na sociedade humana vivemos do trabalho: ou do próprio, ou do trabalho dos outros. E quem vive do próprio trabalho é a esmagadora maioria. Quem vive do trabalho alheio é um grupo seleto de privilegiados (banqueiros, grandes capitalistas, especuladores, etc. Portanto, direitos humanos, em boa parte são os Direitos do Trabalho. Se os direitos dos trabalhadores, que são os mais pobres numa sociedade, são respeitados, é de se esperar que os direitos das demais classes (média e ricos), também o serão.
Numa sociedade como a brasileira, obviamente não há respeito pelos direitos humanos básicos, a lei vigente é a de “quem pode mais, chora menos”. Se a lei é essa, os que podem menos (pobres, desempregados, negros, idosos, etc.) “choram” o tempo todo. Para saber se uma sociedade pratica os direitos humanos deve-se verificar como vivem os setores mais frágeis dessa sociedade. Por exemplo: como vivem as meninas negras e pobres. Se uma menina negra e pobre vive razoavelmente bem, numa determinada sociedade, a tendência é que todos os demais estratos, pelo menos vivam razoavelmente. Sabemos que não é isso que acontece no Brasil, os mais pobres e frágeis comem o pão que o diabo amassou.
Neste momento, com a crise capitalista internacional, os direitos humanos são cada vez mais, e mais frequentemente, violados. Tanto é verdade que mais de meio milhão de pessoas no mundo vivem em condições de fome. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua- IBGE) 2021: Rendimento de todas as fontes”, no ano passado a renda média mensal domiciliar per capita no Brasil foi de R$ 1.353. As pessoas dispõem desse valor para comer, vestir, se deslocar, tomar remédio. É o menor valor real em dez anos, considerando a série histórica da pesquisa, iniciada em 2012.
Segundo o DIEESE, uma Cesta Básica em Florianópolis, para um adulto, custou R$ 753,73 em julho. É mais da metade da renda mensal per capita, do Brasil. O salário mínimo necessário, calculado pelo DIEESE está em R$ 6.388,55. É um salário para uma família de quatro pessoas sobreviver ao longo de um mês. Se o Brasil conseguisse com que cada família recebesse pelo menos o salário-mínimo calculado pelo DIEESE, poderíamos dizer que o Brasil teria começado se preocupar com direitos humanos. Esse valor é mais de cinco vezes o salário-mínimo oficial do país. A produção de riqueza comportaria esse tipo de medida? Sem dúvidas, mas este é um assunto para um outro artigo.
A classe trabalhadora brasileira vive um dos seus piores ciclos de empobrecimento da história. Este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, a América latina toda está vivenciando esse processo. O próprio EUA, cabeça do imperialismo, país que drena riqueza do mundo todo, tem 37,2 milhões de cidadãos na pobreza (dados de 2020), uma taxa oficial de pobreza de 11,4%. Se não fosse o seguro-desemprego mais 4,7 milhões de pessoas estariam na pobreza. O país mais poderoso da terra, que tem orçamento militar para este ano de US$ 782 bilhões de dólares (ano que vem será de US$ 813 bilhões) coloca milhões de famílias da classe trabalhadora numa condição de não conseguir mais fazer compras em supermercados. São obrigados a comprar comida em “lojas de 1 dólar”.
Ou seja, no país que tem o maior número de bilionários do globo (735) e que ocupa 8 das 10 primeiras posições entre os mais ricos do mundo, uma parcela significativa da população é forçada a comer lixo industrializado, para não morrer de fome (morre por doenças decorrentes da ingestão desse simulacro de comida). Nos EUA tem um agravante: a pobreza é vista como um fracasso individual, ou seja, o sujeito é pobre porque não trabalha duro o suficiente, ou porque não tem talento o suficiente. Como se diz por lá, é pobre porque é um “perdedor”. Como contrapartida deste tipo de visão, as políticas sociais para retirar as pessoas da pobreza são bastante débeis. Problema agravado pelas graves desigualdades raciais.
Direitos humanos e crescimento econômico estão colados. Se não há produção (e distribuição) de riqueza não existe direitos humanos básicos. O retrocesso nos direitos humanos no Brasil nos últimos anos, decorre também da brutal crise econômica, política e social do país. A polarização política existente no Brasil, atribuída a um “ódio” que, para alguns, teria surgido do aquém e do além, está ligada à crise econômica internacional. Os ricos, para se manterem enquanto tal, cujo núcleo inteligente sabe da gravidade da crise capitalista, precisam “arrancar o couro” de quem vive do trabalho e mora na periferia capitalista.
Esse fenômeno, tem também acirrado a luta entre países subdesenvolvidos e o centro imperialista. As fontes de matérias primas e riquezas minerais em geral no mundo estão sob forte ameaça. No Brasil de hoje, a própria soberania da Amazônia é um tema capital. Soberania da Amazônia significa soberania do Brasil, pois não estamos falando de um “pedacinho de floresta”, mas de 59% do território brasileiro.
Claro que não basta produzir riqueza, a distribuição é fundamental. Mas não há distribuição do produto, sem luta dos trabalhadores. Nós vimos isso no período em que houve uma certa distribuição nos países ricos, que adotaram o chamado Estado de Bem-estar Social. Foi uma minoria de países que adotou essa política, mas a opção decorreu, principalmente, da luta internacional dos trabalhadores, num contexto de Guerra Fria. As conquistas advindas desse processo não foram benesses das burguesias desses países e sim da mobilização dos trabalhadores e do contexto de disputa política entre os países dos dois blocos.
Entre 2016 e 2021, a economia brasileira cresceu meros 0,23% ao ano. O que significa que o PIB per capita decresceu. É o pior período de evolução do PIB da história do Brasil, que se tem registro. Num contexto desses, a luta pela apropriação da riqueza, se acirrou. Um dado que significa a antítese dos direitos humanos: o orçamento para 2022 do Ministério da Saúde é de R$ 160 bilhões. Por outro lado, as despesas totais com juros chegaram a R$ 448,3 bilhões no ano passado, e a previsão é que o Brasil gaste entre R$ 600 a 700 bilhões neste ano. Essa informação é uma síntese da visão que tem o governo federal sobre direitos humanos.
A prioridade do orçamento não são as dezenas de milhões de pessoas, muitas das quais que não conseguem nem se alimentar direito, que precisam de saúde gratuita. A prioridade são algumas dezenas de banqueiros e especuladores que articulam a política nos bastidores e levam a parte do leão dos gastos públicos. E sem nenhuma base técnica (a dívida já foi paga muitas vezes). Se trata apenas de um sistema de espoliação da população, puro e simples (ou melhor, puro e complexo).
Existe toda uma relação entre economia e direitos humanos. Por exemplo a Política de preços dos derivados do petróleo: a PPI (política de paridade de importações) é um mecanismo de assalto a população brasileira. A população perde um direito humano básico que é o do acesso à energia. Se existe formalmente democracia no país (mesmo assim, muito restrita), mas uma mãe (ou um pai) de família se acidenta, porque está sendo forçada a cozinhar com álcool porque não consegue comprar um botijão de gás, não existe respeito aos direitos humanos.
Se pensarmos nas coisas mais simples, como o acesso à água, veremos que o Brasil é próximo de zero em direitos humanos. O país tem o maior volume de água doce do mundo, mas uma parte substancial da população não tem acesso regular à água potável, e suas inúmeras utilizações. Uma parte significativa da população não consegue acesso à água barata, o que é um traço dramático do subdesenvolvimento brasileiro e da dependência política e econômica do país. Existe também uma relação direta entre soberania e direitos humanos. E o Brasil é um país neocolonial, praticamente sem nenhuma soberania.
José Álvaro Cardoso é economista e supervisor técnico do DIEESE em Santa Catarina.