Por Jullie Pereira, para InfoAmazonia.
Gersem Baniwa é uma das lideranças responsáveis pela fundação das primeiras organizações indígenas da Amazônia Brasileira . Sua vida e militância é dedicada ao avanço da educação brasileira. Primeiro professor indígena concursado em uma Universidade Federal, o educador lembra como a conclusão da educação básica em uma escola salesiana foi fundamental para que iniciasse, junto com seus companheiros, na luta para demarcação de suas terras, entendesse seus direitos como cidadãos e sua autonomia. Foi dessa forma que Gersem compreendeu que a luta indígena está ligada à educação escolar, à manutenção de suas línguas e ao fortalecimento das suas organizações.
Nascido no município de São Gabriel da Cachoeira, na Aldeia Yaquirana, na região do Alto Rio Negro, do Amazonas, Gersem alçoou voos altos e longos como liderança indígena, mas principalmente como professor.
Após ser co-fundador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) (1989) e da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) (1987), chegou ao posto de coordenador geral de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC) e também atuou por dois mandatos no Conselho Nacional de Educação.
Em março deste ano Gersem deixou o Amazonas para se tornar o segundo professor indígena a lecionar na Universidade de Brasília, no Departamento de Antropologia, onde fez mestrado e doutorado em antropologia. Para ele, é a chance de criar uma nova metodologia de ensino, aliando sempre os saberes indígenas e não indígenas.
Nesta entrevista para o InfoAmazônia, Gersem discorre sobre sua vida como professor, a luta dos povos indígenas, os retrocessos dos últimos anos no campo da educação e traça perspectivas do que pode ser revisto, melhorado e daquilo que pode avançar em um próximo governo.
InfoAmazonia – Gersem, primeiro, dentro das diversas lutas indígenas, como foi que você decidiu trabalhar a pauta da educação e por quê?
Gersem Baniwa – Eu tive a sorte de ter nascido numa pequena aldeia que tinha próximo um centro missionário chamado Missão Salesiana Assunção do Içana. O rio Içana é em frente ao rio Negro, no Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira. Então por morar próximo desse centro missionário eu pude me alfabetizar e estudar as primeiras quatro séries. Esse contato com a escola de fato rendeu uma enorme paixão, um prazer em aprender a ler e escrever. Na medida que aprendi a ler e escrever, também tive uma vontade enorme de conhecer o mundo fora da minha aldeia, fora do meu corpo, o mundo do branco, mas sobretudo da literatura.
De que forma essa pauta está ligada às outras pautas indígenas, como a demarcação de terras?
Em primeiro lugar eu diria que o avanço das demarcações da Amazônia teve a ver com um período de forte protagonismo e incidência dos povos indígenas por meio de suas organizações, que foram criadas exatamente no final da década de 1980, sobretudo na década de 1990. Os indígenas foram consolidando essas organizações, estabelecendo alianças e parcerias, então foram se fortalecendo. Na medida que esse movimento indígena organizado, articulado, mobilizado foi se fortalecendo, ele foi pautando a luta pela terra e por meio da pauta foram criando as condições políticas para suas regularizações, demarcações, homologações
E a criação de organizações indígenas têm muito a ver com a formação escolar. Porque as primeiras lideranças [destas organizações] na verdade eram jovens lideranças indígenas, da qual eu fiz parte, que surgiram ali no finalzinho da década de 80. Uma geração de jovens escolarizados com educação básica completa. Isso na época era uma conquista importante, fenomenal. Essa formação escolar capacitou essa geração de indígenas a criar e fortalecer organizações, fortalecer o movimento indígena. Consequentemente, a luta pela demarcação também foi intensificada. Então exatamente a educação, a formação escolar dessa geração de indígena teve muito a ver com essas duas questões que estão interligadas. A criação e fortalecimento do movimento organizado e a conquista de demarcações de terras indígenas. Isso é muito interessante para perceber na história.
“A escola tradicional, aquela escola missionária, escola colonial, a escola não-indígena, ela trabalha unicamente com conhecimentos científicos dos brancos, dos não-indígenas. A gente costuma dizer que essa é a ciência eurocêntrica. Essa é a escola tradicional, a escola nacional, a escola universal. A escola indígena tem tudo isso, mas acrescenta-se também os conhecimentos da ciência, dos saberes, da cultura e das memórias indígenas”
Na prática, dentro de uma sala de aula, no currículo escolar, no que a educação indígena é diferente?
Ah, é bastante diferente, mas a diferença não é pra menos, tá? É sempre para mais. Também é muito simples a gente entender. A escola tradicional, aquela escola missionária, escola colonial, a escola não-indígena, ela trabalha unicamente com conhecimentos científicos dos brancos, dos não-indígenas. A gente costuma dizer que essa é a ciência eurocêntrica. Essa é a escola tradicional, a escola nacional, a escola universal. A escola indígena tem tudo isso, mas acrescenta-se também os conhecimentos da ciência, dos saberes, da cultura e das memórias indígenas.
Então a educação escolar indígena é basicamente a escola tradicional dobrada, porque além de contemplar os conhecimentos científicos do ocidente europeu também tem que dar conta dos conhecimentos das culturas e das línguas indígenas. Por isso a educação escolar indígena é chamada de educação intercultural, de educação multilíngue, porque é específica e diferenciada nesse sentido. Porque tem que trabalhar então o mundo dos conhecimentos não-indígenas e incluindo outros conhecimentos, inclusive conhecimentos africanos e de outros povos.
Você foi coordenador da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação. Uma pasta que foi extinta em 2019, com o primeiro ministro da educação do governo Bolsonaro, Vélez Rodríguez. Qual era o trabalho dessa secretaria e que impacto você observa dessa extinção?
A Secad foi uma conquista enorme do início do governo Lula e não foi fácil. Foi uma luta intensa dos movimentos sociais. A Secad trabalhava com educação indígena, educação do campo e ainda educação quilombola e negra. Ela teve como objetivo pautar de forma mais aprofundada e qualificada exatamente essas modalidades. Podemos citar alguns resultados da Secad: Primeiro a construção de políticas de formação de professores indígenas, do campo e quilombolas. Aquilo que chamamos de licenciaturas indígenas e quilombolas, que antes não existia. Foi criada uma política nacional que sobrevive a duras penas hoje. Sobrevive embora já sem financiamento do Ministério da Educação, mas as universidades estão dando continuidade.
Outra grande conquista foi a consolidação e o avanço das políticas de ações afirmativas no ensino superior. A Secad teve um papel muito importante na mobilização e no convencimento do Congresso Nacional para a aprovação da Lei das Cotas em 2012. Eu acompanhei isso muito de perto. Foi um intenso debate e diálogo dentro do Congresso Nacional para que pudesse ser aprovada a lei. E isso tem um forte legado, com uma inclusão muito importante de indígenas na educação superior. Só de indígenas nos últimos 30 anos foram 100 mil indígenas que chegaram ao nível superior. Além disso tem outros programas como a construção de material didático, a regionalização de alimentação escolar, a criação de um programa de formação continuada de professores indígenas chamado “Saberes indígenas na escola”, que também foi um programa criado naquele período, muito importante. Então foi uma perda enorme a extinção da Secad.
O Ministério da Educação esteve envolvido em diversos escândalos nesses últimos anos, culminando na prisão do ex-ministro Milton Ribeiro. As pessoas sempre falam do impacto do governo Bolsonaro na educação como um todo, mas de que forma isso ocorreu para os povos indígenas?
Foi um impacto ainda maior. Basicamente a pauta indígena desapareceu ou ficou muito desvalorizada. As políticas praticamente desandaram todas, não tem nenhum interesse em valorizar as línguas, as tradições, as pedagogias da autonomia própria. Pelo contrário, voltam a impor escolas genéricas, aquelas escolas tradicionais, integracionistas, que não valorizam os saberes e as línguas indígenas.
Um dos grandes e maiores problemas é essa mudança de política de hoje em que praticamente acabou o diálogo. Em anos anteriores existia um diálogo com esse segmento, isso era constante e permanente e ajudou na construção e avaliação das políticas públicas, com participação e protagonismo indígena. Havia representação no Conselho Nacional de Educação, havia uma Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, ligada ao MEC. Isso tudo foi cancelado e é um problema. Como ter escolas funcionando sem que os próprios indígenas, os mais interessados, não sejam convidados a participar?
Eu acho que um dos maiores retrocessos e prejuízos nos últimos anos é exatamente o fim desse diálogo, o fim desse espaço de participação, controle social e protagonismo indígena.
Apesar das polêmicas envolvendo a educação brasileira, o que você tem visto de positivo dentro das organizações ou dentro da esfera pública nos últimos anos?
Em função dessa retração da responsabilidade do Governo Federal, os indígenas tiveram que arregaçar as mangas e assumir com muito mais autonomia as suas responsabilidades e os papéis para manter e fortalecer as lutas. Isso para que lá na ponta pelo menos não desaparecesse de vez as conquistas. O protagonismo local teve que ser muito mais acionado e valorizado.
Essas lideranças começam a pensar e construir políticas com muito mais autonomia, porque a experiência está mostrando que não dá pra confiar muito nos governos de igual modo. As mudanças de governo causam mudanças de cenários e mudam possibilidades, mudam as perspectivas. Só quem pode fazer a diferença nesse aspecto para se manter continuidade dos programas de políticas boas são os indígenas. Então acho que isso está fazendo a diferença porque senão o cenário seria ainda muito pior.
Uma das problemáticas que envolvem a educação indígena é a dificuldade de permanência desses indígenas dentro das universidades, após a aprovação no vestibular. Alguns dados mostram que houve um avanço nesse sentido, mas nada que tenha sanado essa questão. Como você analisa esse ponto?
É um processo de fato em curso. Nós tivemos algumas significativas conquistas principalmente nos anos que antecedem o atual governo. Neste governo de fato infelizmente a gente não encontra nenhum avanço. Pelo contrário, retrocessos. Isso que digo não é nada ideológico ou partidário, é fato.
Pelo menos parte dessas conquistas se mantém. Vou dar um exemplo: no caso de alunos das universidades públicas federais, a bolsa permanência, que é uma política que foi criada lá no governo anterior, ainda se mantém. Capenga, mas se mantém. Houve uma redução significativa de número de bolsas que são concedidas.
Uma coisa que é importante e é positivo é que as universidades não pararam de fomentar e permitir ingresso, porque mesmo diante dessa retração as universidades continuaram assumindo, com reserva de vagas e vestibulares específicos. É bom reconhecer esse esforço das Universidades Federais, porque, mesmo com o Ministério da Educação praticamente virando as costas, as universidades continuam dentro dos orçamentos que elas têm mantendo bolsas e vagas para os alunos.
É bom destacar que há no sistema em torno de 60 mil indígenas hoje matriculados e estudando, mas é bom saber que desses 60 mil, menos de 20 mil estão em uma universidade pública. Ou seja, quase 40 mil estão nas unidades privadas. Quase todos os alunos de universidade pública tem algum tipo de auxílio, não necessariamente uma bolsa financeira, mas às vezes ganha o direito à refeição gratuita, às vezes moradia, bolsa para deslocamento e assim por diante. Agora os alunos das universidades privadas não. Basicamente não tem nenhum auxílio, a não ser um número muito pequeno que consegue acessar o PROUNI.
O que essa última década mostrou foi que essa chegada na universidade é um processo irreversível, o número caiu nos últimos anos, mas a tendência é permanecer. Depois do ingresso, o foco deve ser a permanência intelectual. Como é que esses indígenas estão contribuindo com a ciência? Com os conhecimentos, com os currículos, com as metodologias?
Você nasceu aqui no Amazonas, em São Gabriel da Cachoeira e já foi secretário de educação local também. Ano passado eu conversei com indígenas que estão fazendo mestrado no RJ, em SP, e eles falaram muito sobre a falta de incentivo de políticas públicas para a educação indígena aqui no estado. Você próprio, inclusive, saiu daqui também. Isso é ruim? Que os pesquisadores estejam indo para outros estados?
O Amazonas é um dos estados mais conservadores com relação a essa política de acesso e permanência. Não tem nada estruturado, minimamente organizado para promoção de indígenas. Isso é em todos os aspectos desde a graduação e pós-graduação. Só pra você ter uma ideia, não tem política de cotas organizada. Todas as outras universidades de um jeito ou de outro fizeram suas políticas para cumprir a lei das cotas e o Amazonas não tem. Existem programas específicos que adotam, mas para contemplar todos os cursos e programas não existe. Isso de fato é muito triste.
Eu mesmo acabei aceitando ir para Brasília passar um tempo porque eu me sentia muito desvalorizado no Amazonas. Ninguém dava valor a quem tem uma experiência, sabe? Eu estava muito mais ajudando outras universidades do país do que a universidade em que eu estava.
Porque as outras são muito mais abertas, muito mais interessadas, muito mais motivadas para atender essa demanda indígena, porque enriquece a universidade.
Você é o segundo professor indígena da UNB e tem um longo caminho dentro da educação. Já tem dez anos que você concluiu o doutorado, por exemplo. De que forma essa tua trajetória até aqui reflete o cenário geral da educação indígena brasileira?
Eu tive o privilégio de ser o pioneiro em muitas coisas. Mas não foi tanto pelo mérito, eu estive com certeza no momento certo, no tempo certo, na história certa. Eu fui um dos primeiros indígenas da formação superior a alcançar o doutorado, por exemplo. Fui o primeiro indígena concursado do Brasil em uma Universidade Federal. Eu fui o primeiro antropólogo doutor a se formar no Brasil. E assim por diante. E isso sempre me permitiu abrir caminhos. E nesse sentido sempre pensei nessa forma de contribuição. Hoje nós já somos 10 docentes indígenas concursados em universidades federais. Eu acho que é mais uma porta aberta, é um novo caminho, um novo horizonte que se apresenta.
Esse pioneirismo impõe na gente uma enorme responsabilidade porque somos cobrados e acompanhados e muitas vezes, pelas limitações pessoais, não conseguimos satisfazer todas as expectativas. Tanto da sociedade não-indígena quanto das nossas sociedades indígenas. Então é um esforço constante, permanente porque precisamos ser exemplo. Eu escuto quase toda semana em aulas ou palestras “professor você é a nossa referência”. Então são essas sementes, ainda em números pequenos, mas eu acho que abrem o horizonte e aumentam a esperança de muita gente.
O que um novo ministro da educação neste próximo governo precisa ter como prioridade quando o assunto for educação indígena no Brasil?
A primeira tarefa é reconstruir o que foi destruído nesses últimos cinco anos. A começar pelo diálogo que então tem que reconstruir, tem que recolocar os indígenas nestes espaços da participação e do controle social. A participação indígena no processo de educação, a retomada da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, preferencialmente mudar de comissão para um Conselho Nacional de Educação Escolar Indígena, criado por lei, porque uma comissão criada por decreto, ainda que presidencial, fica muito vulnerável quando há mudança de governo.
Segundo é reconstruir as políticas que estão sendo obstruídas. Como por exemplo o programa de formação de políticas indígenas. O financiamento com editais permanentes para apoiar as universidades nessa formação. Sem professores indígenas formados não dá para repensar a qualidade da educação indígena. A produção de material didático foi abandonada, mas material didático específico, bilíngue, com saberes específicos, essa reconstrução é absolutamente necessária para o próximo governo e urgente.
A outra questão é dar passos que ainda não foram dados em nenhum momento da história. Nós ainda temos vergonha da nossa política de educação escolar indígena. Eu vou dizer porque é vergonha. Nos envergonha como um país, uma nação. Nós temos no Brasil mais de 3 mil escolas indígenas, mais de mil, ou seja, mais de um terço simplesmente não tem prédio. Ou seja, um terço dos alunos do Brasil não tem lugar para estudar, não tem carteira, não tem teto, não tem lousa, não tem nada. Eles estudam no barranco, na casa da farinha, no salão comunitário, na igrejinha que está lá, na casa do cacique. Então a gente tem que ter uma política séria para construir escolas. Nós não estamos falando de escolas que custam um milhão e meio por construção, não. São escolas com uma, no máximo duas salas. Então não é um custo alto.
Outra coisa que tem que resolver é a questão da contratação de professores indígenas. Dois terços dos professores indígenas que atuam nas escolas indígenas, que dão aula não são concursados, são temporários sem direito a férias, décimo. O que é mais grave é que esses professores ficam absolutamente reféns dos gestores municipais. Se o professor votou no prefeito ele mantém o emprego agora se o professor pertenceu a outro partido não será. Além dessa barbaridade do professor sem salário na metade do ano. É desumano. O Brasil não pode ter essa política tão desqualificada.