Da Transamazônia à Usina de Belo Monte, a tragédia Arara que vem desde a Ditadura

A construção da Transamazônica no Pará atravessou território indígena Arara, com uma violência generalizada, com tentativas de exterminar os indígenas a partir do final dos anos 1960 e ao longo da década de 1970. Afetada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a Terra Indígena Cachoeira Seca bate hoje recordes de desmatamento.

Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

 

Por Fábio Zuker, para InfoAmazonia.

Os Arara são considerados um povo de recente contato. Sua história é paradigmática no que diz respeito às continuidades entre violências ocorridas durante a ditadura militar e os conflitos vivenciados hoje pelos diferentes grupos. Do traçado do trecho da transamazônica durante a década de 1970 – quando ora se acreditava que os grupos Arara estivessem extintos, ora se empreendeu uma verdadeira caça aos membros do grupo – à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte no início do século 21 que tornou a terra indígena Cachoeira Seca, do povo Arara, a mais devastada do país, o que prevalece é a continuidade de uma violenta política de Estado pela tomada de seus territórios.

“Eles [os Arara] foram sendo encurralados, até ficarem ali na Cachoeira Seca, na região do Iriri. E hoje continua este processo da invasão dos garimpeiros e dos madeireiros. Essa relação de invasão dos territórios desses povos não cessou, desde este período”, reflete Ana Laíde, educadora social do Movimento Xingu Vivo, e que trabalha com os impactos da construção da Hidrelétrica de Belo Monte sobre as populações indígenas e ribeirinhas.

Eles [os Arara] foram sendo encurralados, até ficarem ali na Cachoeira Seca, na região do Iriri. E hoje continua este processo da invasão dos garimpeiros e dos madeireiros. Essa relação de invasão dos territórios desses povos não cessou, desde este período

Ana Laíde, educadora social do Movimento Xingu Vivo

Ana Laíde conta que ao longo da década de 1970, durante a construção do trecho da Transamazônica que liga Altamira (às margens do rio Xingu, no Pará) à Itaituba (às margens do rio Tapajós, também no Pará), os Arara se escondiam, enquanto eram caçados e bombardeados pela frente de colonização.

Os Arara tradicionalmente ocupavam uma vasta área entre os rios Tocantins e Tapajós, principalmente no vale do rio Xingu e às margens do Iriri, mas hoje estão restritos à um fração de seu território, na Terra Indígena Arara, na Terra Indígena Cachoeira Seca e na Volta Grande do Xingu.

“Precisa de estrada e energia, para dar condições aos exploradores; para fazer a Transamazônica, escoar o gado e a madeira. Assim como a hidrelétrica, para gerar a energia não para a população, mas para esses grandes projetos”, como mineradoras, reflete Laíde. “O objetivo não mudou. Não era só um projeto militar, mas um projeto de Estado”, coloca a educadora.

Tentativas de exterminar os indígenas

Quem conta essa história com detalhes é Márnio Teixeira-Pinto, antropólogo, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e que trabalha com os Arara desde a década de 1980. “Eu sou testemunha da degradação de um povo, uma transformação absurda”, reflete Teixeira-Pinto, com indignação.

O antropólogo insere o violento contato da sociedade envolvente com os Arara durante a Ditadura Civil-Militar no contexto da Doutrina de Segurança Nacional. Pensamento que disseminou a “paranoia de que a Amazônia seria internacionalizada”, e que mudou a orientação do exército brasileiro “saindo da ideia de que ele deveria servir para uma defesa puramente externa, para a ideia de que teria algum inimigo interno”. Paralelo a este processo, Teixeira-Pinto salienta a migração de trabalhadores do campo, de diferentes partes do país, incentivados na  Ditadura pelo Plano de Integração Nacional (PIN) a ocupar a Amazônia, sob o lema “levar gente sem terra para uma terra sem gente”, afirma ele.

“A Transamazônica foi uma estrada criada com a ideia de plantar agrovilas em vários lugares, agrovilas hoje que são algumas cidades como Uruará, Medicilândia, enfim”, sintetiza o antropólogo.

Teixeira-Pinto relata que houve um uso, por parte dos militares, de determinadas obras canônicas, de uma ciência social engajada. Tal foi o uso do livro do antropólogo Darcy Ribeiro, Os Índios e a Civilização (1970) que, em determinado momento, ao longo das páginas, declara que os Arara foram extintos nos anos 1940. Para todos os efeitos, para a Ditadura “acabou! os Arara não existem, acabaram as evidências de existência deles, e aquilo se foi. Aquilo desaparece”, coloca Teixeira-Pinto. Por isso, no momento de abertura da Transamazônica, “quando se começam a encontrar indícios de que há indígenas ali, a isso se segue um documento oficial da Funai liberando a área, afirmando que não há índios ali, assinado pelo presidente da Funai, contra a posição de vários indigenistas sérios, que sempre acharam que ali continuaria havendo índios”, afirma ele.

Uma vez a Funai decretando que não há mais indígenas na região, toda a área que hoje corresponde à TI Cachoeira Seca e à TI Arara, e as partes a Norte da Transamazônica, território tradicionalmente ocupado pelos Arara, é distribuída pelo Incra para colonos vindos de outras áreas do país. Parte considerável do território Arara, mais de 396 mil hectares, foram distribuídos pelo INCRA, em 1977, à Cotrijui – Cooperativa Agrícola e Industrial de Ijuí (RS).

Em paralelo à distribuição de suas terras para colonos, tem início a prospecção de minerais na região. “Veja, (com) estrada começa a passar, maquinas, gente dos dois lados   em que eles viviam.” ou seja, “a estrada cortou exatamente parte do território em que esses grupos andavam”, sintetiza Teixeira-Pinto. Enquanto isso, uma população Arara estava dispersa por um amplo território, e com malocas grandes centradas na figura de um homem velho suas filhas, seus genros e seus agregados: “ocupavam uma pequena área, fazendo rodízio. Andavam pra lá, pra cá, pra cá, com uma área de caça, com roça, enfim, circulavam em torno de um certo território”, explica o antropólogo.

Até que as máquinas das transamazônicas começaram a  destruir as roças de mandioca, e as plantações de banana dos Arara: “que evidente não eram nativas, eram cuidadas, né? Tinham claro sinais de serem antropogênicas”, afirma ele. Teixeira-Pinto também traz narrativos dos próprios posseiros disputando quem iria ficar com as roças dos indígenas. Até o momento em que os indígenas começam a reagir, o que torna a década de 1970 um período de violências extremas contra os Arara: “tem uma ordem do Médici: ‘peguem esses índios a qualquer custo’”, relata o antropólogo. “Fizeram armadilhas, para pegar os indígenas” .

Jornal Porantim/Arquivo Armazém Memória

Começa uma verdadeira e brutal caçada contra os Arara, promovida pela Ditadura: há relatos de pistoleiros locais que se especializaram em caçar e matar indígenas e inclusive cercas elétricas colocadas ao redor dos acampamentos onde dormiam os trabalhadores das obras e os colonos, para eletrocutar os indígenas que, curiosos, aproximavam-se dos acampamentos e morriam com o choque. Além de casos de aldeias inteiras dizimadas por doenças trazidas pelos brancos, como a conjuntivite.

No final dos anos 1970, os colonos e funcionários envolvidos nas obras da região  “começam a encontrar sinais no mato, sinais claros de que os índios não queriam que eles continuassem, os caminhos fechados por flecha, sangue de animais jogados no caminho sinalizando pra quem conhece esses sinais (dizendo) ‘não venham atrás’. Alguns desistiram, outros não. E aí esses outros (que não desistiram) são mortos pelos Arara”, afirma o antropólogo. O que cria um grande problema para a Funai e uma comoção internacional a respeito do que acontecia na região.

Não se sabia, até o momento, que os indígenas eram de fato Arara. Como se acreditava que eles estavam extintos, entendiam que os ataques seriam de incursões de grupos Kayapó. O que criava mais animosidade entre os Arara, já que estes são inimigos históricos dos Kayapó, e reagiam com violência às tentativas de aproximação que tentavam falar com eles em Kayapó. É só com o entendimento que se tratava de grupos Arara, por conta das evidências dos rastros, e da entrada do sertanista Sydney Possuelo, que a atração e o contato com os grupos Arara ocorre, entre 1981 e 1983, ao redor do território que hoje é a TI Arara, e em 1987 ao redor do território que hoje é a TI Cachoeira Seca.

Começam a encontrar sinais no mato, sinais claros de que os índios não queriam que eles continuassem, os caminhos fechados por flecha, sangue de animais jogados no caminho sinalizando pra quem conhece esses sinais (dizendo) ‘não venham atrás’

Márnio Teixeira-Pinto, antropólogo

A Funai, no pós-contato, empreende uma redução do território Arara, concentrando-os nestas que vão se tornar as duas terras indígenas Arara ao sul da Transamazônica, fazendo-os abandonar regiões importantes do território localizadas ao norte da rodovia.

Com tamanha violência, há um grande declínio populacional dos Arara. “Foi uma população dizimada por esse processo. Eu tenho narrativas de índios, que, nessa época da perseguição, eles chegaram a sequer fazer casa dormindo em cima de árvores, inclusive com nenéns, para não deixar rastros de casa. E frequentar as suas roças para colher sua comida. Eles deixavam rastros que indicavam que estavam por ali, mas não faziam mais casa pra evitar que fossem identificadas por sobrevoo. Uma coisa muito dramática”, relata Teixeira-Pinto.

Na leitura de Teixeira-Pinto, é a ação de Sydney Possuelo, que pacifica a situação de violência, ganhando a confiança dos Arara, mas a um custo elevado aos indígenas: eles “acabaram assim abrindo mão de sua soberania, vamos dizer assim outorgando sua soberania um gestor”. E, na visão do antropólogo, a Funai é incapaz de garantir tudo aquilo que a situação de recente contato de um povo indígena demanda (com necessidades específicas de saúde e educação em regiões de difícil acesso), o que facilita a entrada de missionários evangélicos com práticas clientelistas e assistencialistas com os Arara a fim de difundir sua religião: “o trabalho dos professores missionários que incentivam o uso do português entre os pequenos, vai fazer com que não use mais a língua. O futuro da língua é só na Bíblia”, reflete o antropólogo, já que a bíblia foi traduzida aos Arara.

Belo Monte

Para Teixeira-Pinto, se a construção da Transamazônica é a primeira volta no parafuso, e a chegada dos missionários evangélicos é a segunda, a construção de “Belo Monte é a paulada final, entendeu?”

“Porque aí vai fazer com que o tenham sempre mercadorias de fora e não podem ter. Então vai realmente transformá-los em pedintes a todo momento. Então você tem um povo que resistiu ao contato, que resistiu barbaramente transformados em pedintes” relata o antropólogo.

Tarcísio Feitosa é um renomado ambientalista e consultor de projetos socioambientais. Ele traça uma correlação entre o projeto integracionista da Ditadura Militar, de forçadamente contactar os indígenas e integrá-los à sociedade envolvente não-indígena, e a violenta  imposição de uma forma de desenvolvimento da Amazônia, envolvendo a concentração de terras nas mãos de grandes fazendeiros e a construção de rodovias e hidrelétricas. Para Feitosa, a cada rio que a Transamazônica cortava, uma hidrelétrica era planejada, tendo em vista, principalmente, futuros projetos de mineração. E resume: “os Arara eram um entrave para isso”.

Obras da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará.

A construção de Belo Monte estava prevista desde 1970, sob o nome de Kararaô – palavra em língua Kayapó, mas teve a sua construção inviabilizada pela pressão de indígenas e da sociedade civil organizada com o momento de redemocratização. A construção apenas foi retomada no início do século 21, pelos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff.

Entre as condicionantes para construção de Belo Monte, foi acordado com Funai e a Norte Energia a conclusão da demarcação da Terra Indígena Cachoeira Seca e entre outras desintrusões para conclusão de demarcações na região (como a Terra Indígena Apyterewa, do povo Parakanã, que se encontra judicializada com solicitação do Ministério Público Federal no Pará de aplicação de multa à Funai). Entretanto, apesar da homologação da Cachoeira Seca em 2016, pela pressão do movimento indígena, não foi feita a desintrusão dos invasores.

Após uma Ação Civil Pública movida pelo MPF-PA junto a diversas organizações indígenas da região pelo cumprimento das condicionantes, a Justiça Federal determinou a desintrusão dos invasores de Cachoeira Seca no final de 2020. Funai, Norte Energia e União recorreram, e a ação encontra-se hoje judicializada. Em julho de 2022, o MPF-PA denunciou ainda a Equatorial Energia por instalar rede de distribuição de energia para os invasores da Cachoeira Seca.

Obras da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Ibama apreende carregamento de Ipê extraído ilegalmente da Terra Indígena Cachoeira Seca, Pará

Feitosa explica que a construção de Belo Monte tem impacto direto em onze municípios da região do Xingu e principalmente nas terras indígenas e unidades de conservação. Ele cita um estudo do qual é co-autor, pelo Imazon, em 2011, que trata do desmatamento vinculado a Belo Monte e já apontava para essas regiões onde se imaginava que o desmatamento iria crescer. “Quando você coloca Belo Monte no cenário, o desmatamento explode”. Entre os motivos, Feitosa explica a dinâmica de pessoas que foram para Altamira, para construir a hidrelétrica. “Belo Monte triplicou a quantidade de pessoas em Altamira. Essas pessoas depois da obra elas vão procurar terras”, explica ele, apontando para o aumento da pressão do desmatamento e da grilagem nos territórios indígenas  e nas unidades de conservação.

Cachoeira Seca, que ocupa há anos o topo da lista de terras indígenas mais desmatadas do Brasil, passou de 5,85km2 de desmatamento em 2014 para impressionantes 72,49km2 em 2020, caindo para 23,40km2 de desmatamento em 2021 – segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe.

“Belo Monte criou um poder paralelo, criando as suas próprias leis, desobedecendo às leis”, diz Ana Laide, do Movimento Xingu Vivo. “Era uma condicionante, eles protegerem e fazerem a demarcação do território Arara (de Cachoeira Seca). Isso eles pactuaram, mas o que veio do processo de Belo Monte foi o balcão de negociações. O processo foi cruel.” diz Ana Laíde, referindo-se às tentativas da Norte Energia em cooptar lideranças indígenas, com distribuição de gasolina e rancho. “Para quebrar a luta desses povos por suas terras demarcadas”, explica Laíde.

Por meio de nota, a Norte Energia afirma que “devido a questões associadas a conflitos fundiários na região, 03 (três) Unidades – Cachoeira Seca (Base Operacional Transiriri e Posto de Vigilância Rio das Pedras) e Ituna/Itatá ainda não foram instaladas e sua execução depende de apoio de segurança pública”. Procurada, a Funai não respondeu ao questionamento da reportagem quanto à desintrusão da T.I. Cachoeira Seca.

“Há um consórcio criminoso que opera nessa região principalmente para tirar o direito ao território”, reflete Feitosa acerca da incapacidade do Estado assegurar o regime legal instaurado com a democracia.

A prova disso é, para o ambientalista, o que acontece com a Terra Indígena Cachoeira Seca. “Essa terra indígena foi homologada. Como é que ela foi homologada com todos esses ocupantes aí, destruindo todo dia, todo dia. Se você conversa com uma liderança indígena lá, ele te fala que todo dia quando ele vai andar vinte quilómetros agora, da aldeia pra cima, já tem invasor chegando lá”.

“Essa região ainda vive as consequências da ditadura militar”, resume ele.

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