Por Socorro Gomes*
Naqueles dias de agosto no Japão, mais de 200 mil pessoas foram mortas e outras incontáveis morreram como consequência da decisão dos Estados Unidos de despejar as suas bombas atômicas sobre o povo japonês. Os valentes sobreviventes, hibakusha¸ relatam cenas de desespero e horror a que nenhum povo deveria ser submetido, resistindo ainda hoje às consequências das radiações e dos traumas causados pelos bombardeios.
Passadas mais de sete décadas, os EUA ainda não foram responsabilizados por tamanha atrocidade. Pior, os perpetradores arrogam-se o direito de continuar desenvolvendo novos armamentos, mais modernos e “eficientes” no negócio da morte e do terror, repreendendo aqueles que busquem garantias de segurança contra o poderio bélico imperialista, desenvolvendo as suas próprias defesas.
Os EUA realizaram e realizam testes nucleares e de outras armas de destruição em massa inclusive em territórios que ocupa, como Porto Rico, que foi palco de testes por mais de seis décadas e cujo povo, em luta por independência, continua e continuará sofrendo as consequências por muitos anos. Estima-se que mais de 900 quilos de bombas com urânio empobrecido e napalm, entre outras armas químicas e metais pesados, foram lançadas contra a ilha em exercícios militares, inclusive próximo a locais habitados por civis.
O duplo padrão dos Estados Unidos é acintoso. Mais um exemplo é o fato de a potência imperialista sustentar com quase USD 4 bilhões anuais o setor da guerra do Estado de Israel, opressor do povo palestino e ofensor contra praticamente toda a sua vizinhança, que detém cerca de 90 ogivas nucleares não inspecionadas, enquanto os dois aliados mantêm uma ofensiva política e econômica constante, além de ameaças beligerantes, contra o Irã, que acusam de estar desenvolvendo armas nucleares. Enquanto Israel nunca se comprometeu a evitar desenvolver armas nucleares nem permite visitas de inspeção, o Irã assinou acordos com os EUA e a União Europeia (EU) que os Estados Unidos violaram.
De acordo com o instituto sueco SIPRI, há hoje cerca de 13 mil ogivas nucleares no mundo, 3.732 delas prontas para lançamento, ou seja, já instaladas em mísseis ou localizadas em bases operacionais. Do total, mais de 5 mil pertencem aos Estados Unidos —cerca de 1.700, operativas, e mais de 6 mil pertencem à Rússia —cerca de 1.500, operativas. Estes são seguidos pelo Reino Unido e a França, com 225 e 290 ogivas no total, respectivamente. A China, em quinto, tem 350 ogivas no total, seguida da Índia, com 156, Paquistão, com 165, Israel, com 90, e a República Popular Democrática da Coreia, com cerca de 50.
Além disso, os EUA e a UE, com seus 27 estados-membros, compõem ainda com a Turquia a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), através da qual esparramaram dezenas de ogivas nucleares pela Europa, em seu programa de partilha nuclear. Há ogivas prontas para o uso na Bélgica, na Itália, na Holanda e na Turquia, entre outros países. A OTAN, braço armado do imperialismo, admite que as armas nucleares são peça chave da sua política militar, como “uma aliança nuclear” em constante expansão desde que se fundou, em 1949. Ou seja, apenas quatro anos depois dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki e enquanto o mundo ainda buscava se curar da devastação da Segunda Guerra Mundial, lançando as fundações para uma Organização das Nações Unidas, os fundadores da OTAN optaram por se unir em uma aliança beligerante contra a União Soviética e que não só sobreviveu como se ampliou e embruteceu a partir dos anos 1990, depois da queda da URSS.
Hoje, a sua expansão provocadora e inconsequente nos coloca diante de mais uma guerra que urge deter, imediatamente. É por isso necessário enfatizar a urgência de negociações pelo fim do conflito com a Rússia na Ucrânia, em prol da paz na região e também para atenuar o risco de ampliação e escalada da confrontação, que põe a humanidade em gravíssimo risco de uma hecatombe nuclear.
Há poucos dias, na abertura da Conferência para a Revisão do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNPN), o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU) António Guterres alertou novamente para o que as forças anti-imperialistas e amantes da paz têm alertado reiteradamente: um mero erro de cálculo pode causar a aniquilação nuclear à escala mundial. O TNPN, hoje assinado por 191 países, já completou cinco décadas e, além de ser por natureza insuficiente, já que se trata de um acordo pelo controle, não pelo fim, dessas armas, está fundamentalmente defasado. Precisa ser não só atualizado, como defendeu Guterres, como aprofundado: os compromissos pela abolição completa dos armamentos nucleares não podem ser postergados!
É preciso manter e reforçar a denúncia da devastação, o sofrimento, a morte e o horror que essas armas impõem aos povos suas vítimas e a toda a humanidade ameaçada pelo seu uso. Que as armas nucleares tenham se tornado instrumento de política externa, de ameaça de destruição e matança indiscriminada por um punhado de potências que a detêm, persiste como fato anacrônico da história da humanidade, que almeja avançar a passos largos rumo a um futuro de paz e respeito pela vida e pela igualdade entre todas as nações, para longe de uma dinâmica mundial baseada no terror garantido pela assimetria de poder.
O Conselho Mundial da Paz (CMP) fundou-se justamente na luta anti-imperialista contra a guerra em geral e contra as armas nucleares em particular. Um dos seus documentos fundadores é precisamente o Apelo de Estocolmo, de 1950, que demanda a abolição completa desses instrumentos de terror e morte. Este é o anseio de toda a humanidade, como ficou evidente com as assinaturas rapidamente angariadas de centenas de milhões de pessoas a este documento de defesa da paz e da vida.
Portanto, enquanto a luta pela abolição das armas nucleares faz-se todos os dias, aproveitamos estas datas para prestar a nossa homenagem às suas primeiras vítimas, o povo japonês e os habitantes de Hiroshima e Nagasaki. É também em sua homenagem que travamos esta luta, para que haja responsabilização pela tragédia que os Estados Unidos impuseram a milhares de pessoas, com consequências duradouras, e para que estes instrumentos jamais sejam usados novamente, sequer como ferramentas de aterrorização por uma iminente aniquilação total!
A Humanidade não pode continuar refém desta estratégia de ameaça de destruição da vida no Planeta. Fim às armas nucleares, já!
*Socorro Gomes é a presidenta do Conselho Mundial da Paz (CMP)