Por Salete da Aparecida Martins.
Enquanto filha da classe trabalhadora, vinda das populações do campo reafirmo constantemente que estudar é um ato de resistência e quando ocupamos os espaços universitários estamos representando inúmeras pessoas que não conseguiram sequer concluir o ensino fundamental e/ou médio e nem se veem acessando a universidade. Portanto, com o sentimento de estar representando essas pessoas e também outras mulheres do campo, da cidade, mães, trabalhadoras, estudantes, pesquisadoras, educadoras, militantes, que compartilho essa experiência. Trata-se de um texto sobre a participação num evento internacional de educação, ocorrido na cidade de Lisboa/Portugal.
Entre os dias 12 a 15 de julho de 2022 aconteceu a 1ª International Conference on Education and Training, no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, foi um momento importante que contou com a participação de pesquisadores/as de vários países. Com o trabalho intitulado: A Tecnologia no Contexto da Educação Popular em Ciência, levamos a pauta dos movimentos sociais populares para o espaço da universidade, proporcionando reflexões para se pensar a educação em tempos de transição no contexto das escolas vinculadas a esses movimentos. O trabalho apresentado foi um recorte de uma pesquisa maior do mestrado em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGECT/UFSC) e foi elaborado por mim, Salete da Aparecida Martins, Laura Grasel Rodrigues e Marina Bazzo de Espíndola (minha orientadora), ambas integrantes do grupo de pesquisa: Rede de Pesquisa Currículo e Tecnologia (Repercute/UFSC). O estudo buscou estabelecer relação entre dois tópicos: educação popular e tecnologia, visando produzir um referencial inicial necessário para discussões futuras.
O evento que buscou Pensar a Educação em Tempos de Transição, a partir do entendimento que as sociedades livres, a comunicação e o debate informado são respostas necessárias para viver os tempos de transição e as suas incertezas, cabendo a responsabilidade à Universidade de participar na dinamização dessas formas de ação pública, juntou trabalhos e autores de diversas áreas educacionais para pensar os desafios da educação na contemporaneidade.
O trabalho em questão, que foi apresentado no evento, é de natureza teórica, contou com uma revisão bibliográfica na Base de Dados de Teses e Dissertações do Brasil e buscou identificar pesquisas realizadas sobre/com/para as tecnologias no contexto do ensino de ciências das escolas dos movimentos sociais populares nos últimos dez anos. A questão da investigação foi: Como as pesquisas sobre escolas vinculadas aos movimentos sociais populares discutem a integração da tecnologia no ensino de ciências no Brasil? Nessa busca, obteve-se como resultado 51 trabalhos. Utilizamos os critérios de exclusão ou inclusão a partir da leitura do título e dos resumos. Para a análise final restaram uma tese e cinco dissertações. É importante destacar que os principais autores que norteiam as análises e contribuíram nesse estudo foram: Paulo Freire (1987), Dermeval Saviani (2007), Ricardo Antunes (2018), Andrew Feenberg (2010) e Neil Selwyn (2011).
Para isso, foi necessário revisitar o conceito de educação popular em tempos de transição e o surgimento de um novo perfil de trabalhador da era digital. Articulamos os resultados com a perspectiva crítica da tecnologia a fim de construir um caminho possível para a formação emancipatória dos trabalhadores. Essa articulação vai ao encontro do pensamento de Freire (2013), em relação a emancipação dos sujeitos, que pode ocorrer quando as universidades põem-se a serviço das classes populares, firmando na prática uma compreensão crítica de como se deve relacionar a ciência universitária com a consciência das classes populares, estabelecendo relação entre saber popular, senso comum e conhecimento científico. O autor afirma ainda, que quando o progresso científico e tecnológico não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades da nossa existência, perdem sua significação e a todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. (FREIRE, 2011, p.127).
Diante do exposto é importante dizer que o avanço científico e tecnológico proporciona mudanças em bases estruturantes da sociedade, influenciado espaços sociais, políticos, econômicos, culturais e educativos. As relações sociais são vivenciadas, mediadas e integradas nesse contexto e qualquer alternativa que não responda aos interesses impostos pelo mercado capitalista tende a não sobressair. Portanto, há urgência de tecer diálogos entre ciência, tecnologia, educação e mundo do trabalho numa perspectiva crítica.
Observa-se que os dados são alarmantes em relação à realidade de acesso a internet no Brasil, de acordo com a TIC Domicílios (2019), um a cada quatro brasileiros não acessa a internet, totalizando 47 milhões de não usuários. As classes A e B são compostas por quase 100% de usuários de internet, as classes C, D e E possuem respectivamente 78% e 56% de usuários. Esses números ressaltam a importância do debate relacionado à educação com as mídias, para as mídias e sobre as mídias junto aos movimentos sociais populares.
Talvez nesse momento estejamos nos perguntando por que falar de tecnologia, educação popular e classe trabalhadora, podendo inclusive, parecer que isso não tenha uma relação direta, no entanto, elas encontram-se entrelaçadas e fazem parte da nossa realidade. É preciso enfatizar que a educação popular nasce da crítica e resistência ao modo de produção da vida dos segmentos sociais mais vulneráveis sob o modo de produção capitalista, formula uma concepção contra-hegemônica à educação oficial (tradicional) tendo como prioridade uma educação do povo, pelo povo e para o povo, a fim de superar uma educação bancária e voltada às elites.
Com o avanço científico e tecnológico, a inserção das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) em nível mundial, cria-se um novo perfil de trabalhador (o novo proletariado da era digital), aspecto que vem ampliando a precarização do trabalho, focalizando os indivíduos em detrimento da organização coletiva e enfraquecendo a luta de classes. Assim, os trabalhadores acabam se sujeitando a exploração, desumanização e precarização por não vislumbrar alternativas para sua subsistência. O capital global caminha junto ao advento das tecnologias e cultura digital (Big Data, Educação Vigiada, Indústria 4.0, Internet das Coisas, etc.) causando um cenário de destruição. Uma vez que as tecnologias passam a ser esse “novo-normal” na educação mundo afora e surge um novo proletariado, urge a necessidade, como diz Selwyn (2008), da discussão da cultura digital e da inserção de tecnologias, “com significado, com propósito, com objetividade e rigor”.
O trabalho apresentado neste evento encontra-se embasado na perspectiva crítica da tecnologia em Feenberg (2010) e Selwyn (2011). Em Freire (1987), busca tecer uma leitura crítica da realidade na perspectiva de uma educação popular libertadora e emancipadora. A perspectiva crítica da tecnologia busca entendê-la como instrumentos e processos construídos a partir de valores e ideologias, sendo necessário refletir sobre o seu papel e abrir espaço para a participação popular nas definições sobre seus usos e os caminhos de seu desenvolvimento.
Os principais resultados constatados nesta revisão bibliográfica foi de que nos ambientes universitários brasileiros há uma lacuna na produção teórica em relação à educação sobre/para/com tecnologias no contexto do ensino de ciências das escolas dos movimentos sociais. Nos trabalhos analisados, as tecnologias aparecem somente como recurso pedagógico, apresentando um cenário de integração apenas instrumental da tecnologia, ressaltando a necessária formação de professores para seu uso e a problemática do acesso às tecnologias nas escolas. Há pouca ou nenhuma reflexão sobre a importância da discussão sobre as tecnologias e sua apropriação crítica pelos sujeitos no contexto da educação popular.
Entendemos que a educação não é neutra, tampouco a ciência e tecnologia, elas carregam em si valores e ideologias, como qualquer outra criação humana. Nesse sentido, a perspectiva crítica de tecnologia desenvolvida por Andrew Feenberg (terceira geração de pensadores da Escola de Frankfurt), que foi orientando de Herbert Marcuse (pertencente à Escola de Frankfurt), nos convida a uma reflexão sobre os valores da tecnologia trazendo-os para o debate democrático. É importante destacar que os valores e interesses das classes dominantes estão inscritos em todas as tecnologias, desde a produção até o consumo, mesmo que não sejam visíveis, portanto, somente uma política democrática da tecnologia poderá enfrentar a perspectiva de que a atual sociedade tecnológica está condenada à administração autoritária, ao trabalho irracional e ao consumo igualmente irracional.
Os movimentos sociais populares estão historicamente relacionados aos movimentos de luta contra a política hegemônica e eles estão inseridos no cerne da classe trabalhadora, tem contato direto com a base. Fica evidente a necessidade de uma discussão democrática e popular sobre esse assunto nos espaços onde os trabalhadores e trabalhadoras possam se apropriar do debate através de uma educação emancipatória. Por isso, assim como a universidade, a educação popular, as escolas vinculadas aos movimentos sociais populares também precisam discutir a tecnologia numa perspectiva crítica, onde os sujeitos possam ampliar sua leitura de mundo e perceber as nuances contida nessas tecnologias e o que isso implica na realidade da classe trabalhadora.