Por Jessica Santos, para Ponte Jornalismo.
Em 23 de fevereiro de 2022, minha avó Polu faria 103 anos. Ou 107, porque ela não sabia se tinha nascido em 1915 ou 1919. No registro, a data a comemorar era o 24 de fevereiro, mas depois que eu nasci em um 23 de abril ela adotou o 23 também. Não há um único dia que eu não lembre dela, desde que morreu em casa, por insuficiência respiratória, enquanto tentávamos recuperar o fôlego com exercícios de respiração aprendidos com a fisioterapeuta. Eu tinha dezenove anos de idade e aprendi que morrer pode ser sereno e bonito, mesmo por falta de ar. “A única certeza da vida é a morte”, ela repetia. “Pode ser branco, preto; rico, pobre, todo mundo usa o banheiro e um dia vai para debaixo da terra sem levar nada.” O importante é o que a gente deixa.
Tenho acompanhado grupos de WhatsApp com pessoas — quase todas brancas — que se propõem a salvar o Brasil. Em alguns, já fazem planos para assumir um novo governo que desejamos, mas que ainda precisa de muito para ser conquistado. Em outros, se esforçam para provar que são mais antirracistas e aliados do movimento negro que qualquer um. Gente que se dá importância de verdade. Uma coisa curiosa que eu gostaria de compartilhar com a avó Polu. Imagino a gargalhada, segui da por um “faz-se besta”. Se tem uma coisa que ela abominava era a petulância. E como poderia ter ensinado caso tivesse sido vista. Como as Polus invisíveis que lavam os banheiros de certos amigos antirracistas.
A população negra brasileira não tem direito a uma morte tranquila como a da minha avó Polu. Homens negros que buscam a segurança de um condomínio fechado podem ser baleados na porta de casa, afinal, parecem bandidos. E se na rua são retirados do carro para uma abordagem policial violenta que termina com sua execução na frente da esposa e dos filhos, a imprensa trata de levantar antecedentes criminais. Buscam justificativa para a execução? Em um país que não tem pena de morte nem depois de julgamento? O assassinato de jovens negros que acontecia a cada 23 minutos em 2010 tem sido mais frequente e se ampliado para homens mais velhos, para crianças, para mulheres, para jovens grávidas. E genocídio negro não tem antirracista que enfrente.
Sei que não é momento de brigar com aliado nem de deixar o cansaço se sobrepor à esperança, afinal, 2022. Mas o Brasil dos “coroné” que minha avó conheceu no sertão da Bahia ainda se sobrepõe ao Brasil feminista antirracista e liberto do colonialismo que tentamos fortalecer. As respostas para nossos problemas não estão em um conjunto de economistas brancos sentados ao redor de uma mesa, mesmo que sejam de esquerda. Estão nas Polus que produzem vida no campo e nas periferias das grandes cidades, mesmo que o mercado só ofereça migalhas e o Estado só ofereça morte para elas e seus filhos. Minha avó plantou as sementes do Brasil que a gente sonha. Como adubar para que floresça?