Por Beatriz Drague Ramos, Ponte.
Há cinco meses, Heidi Karina Dutra Trindade, 39 anos, vê o tempo passar sem poder estar ao lado de seu marido Ivan Santos Trindade, 41 anos, que é ajudante em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em Embu das Artes, município da Região Metropolitana de São Paulo. O momento que deveria ser de comemoração do casal, que aguarda um filho, tem se transformado em um pesadelo. “A cada visita e a cada despedida um pedaço dentro de mim é quebrado novamente”, diz a esposa de Ivan que trabalha como auxiliar de departamento fiscal.
Ivan está preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Itapecerica da Serra, localizado na Região Metropolitana de São Paulo desde março. O ajudante da UBS é acusado de praticar dois roubos contra duas pessoas na saída de agências bancárias, um em janeiro e outro em fevereiro. “O sentimento de revolta e injustiça são muito grandes”, desabafa Heidi.
Segundo a família, amigos e a defesa, Ivan não teria como estar no local onde os crimes ocorreram. O primeiro caso aconteceu em 26 de janeiro, na saída de uma agência bancária em Interlagos, zona sul de São Paulo. Ivan estava, segundo a defesa, a cerca de 30 km do local, em Embu da Artes, em um culto na Igreja Internacional da Graça de Deus do Jardim Vazame.
A outra ocorrência foi em 7 de fevereiro, na mesma agência bancária, por volta das 12h20. Novamente, segundo a defesa, Ivan estava muito longe: em expediente na UBS São Marcos, também em Embu das Artes.
“Informação privilegiada”
Ambos os casos aconteceram na Avenida Atlântica, em Interlagos, numa agência do Banco Itaú. Segundo o depoimento da vítima registrado no boletim de ocorrência assinado pelo delegado Lawrence Luiz F. Ribeiro, da 102ª Delegacia de Polícia (DP) da Capela do Socorro, em 26 de janeiro, uma vítima foi surpreendida às 9h55 da manhã por um homem, que a ameaçou com uma arma quando a mesma tentava efetuar o pagamento de uma conta.
Segundo o relato da mulher, que carregava R$ 6.125, um rapaz negro e forte saiu da fila da agência, retornando pouco tempo depois, com um capacete preto e uma bolsa tira colo preta. Nesse momento, ele se aproximou e colocou a arma contra seu queixo, exigindo que ela passe a carteira. De acordo com a vítima, o suspeito ainda pegou a carteira de sua mão e tentou roubar seu celular. Ela tentou resistir, mas foi ameaçada novamente. O celular acabou caindo no jardim ao lado do banco e o suspeito correu em direção à sua moto Honda.
Em 7 de fevereiro, outro crime ocorreu na mesma agência por volta das 12h20. Segundo o boletim de ocorrência assinado pelo delegado José Roberto Gil, da 102ª DP da Capela do Socorro, um homem subtraiu R$ 700,00 e um celular em outro roubo. De acordo com o relato da vítima, um homem, o acusado o abordou e ordenou a entrega do dinheiro e do celular, já fora da agência. Na sequência, teria fugido com a moto Honda. O homem que sofreu o roubo diz que o suspeito tinha aproximadamente 1,80 metro de altura, sobrancelhas grossas e curvadas.
Em 10 de fevereiro, um homem chamado Gabriel (nome fictício) foi preso em flagrante próximo da agência. Policiais civis monitoravam a agência e perceberam ele e um suposto comparsa ao lado de duas motos: uma Honda/CG e uma Honda/Twister que, segundo os policiais, batiam com a descrição das usadas com os roubos. Gabriel estava armado com um revólver .38 e foi preso em flagrante. O outro homem, segundo os policiais, se evadiu antes de se aproximarem.
O nome de Ivan seria envolvido nos crimes no dia seguinte. Segundo os autos, durante investigações, a delegacia especializada da seccional, 6º CERCO [Corpo especial de repressão ao crime organizado] chegou ao nome de Ivan dia 11 de fevereiro, um dia após a prisão de Gabriel. Os policiais alegam que conseguiram uma “informação privilegiada”, mas não entram em detalhes sobre a origem desta informação ao longo dos autos.
O relatório da investigação assinada pelo delegado Julio Jesus Encarnação da 102ª DP da Capela do Socorro, traz fotos das redes sociais de Ivan. O documento assinado em 16 de fevereiro aponta que a vítima do primeiro roubo foi chamada então para analisar fotografias de Ivan para identificá-lo. No álbum de fotos, todos os homens estão de máscara de proteção contra a Covid-19. Ainda assim, ela o identificou. Na sequência o delegado solicitou a prisão temporária de Ivan, bem como um mandado de busca em sua residência. Ivan foi preso em 22 de fevereiro, inicialmente na 101ª DP em Interlagos, sendo transferido depois para o DP do Belenzinho e, por fim, ao CDP de Itapecerica da Serra.
Nada de ilegal foi encontrado com ele e nem em sua residência. No mesmo dia, o ajudante da UBS foi reconhecido pela primeira vítima presencialmente na 102ª DP. Quanto ao homem que sofreu o roubo em fevereiro, esse apontou Ivan por reconhecimento fotográfico.
O ajudante da UBS também foi reconhecido por uma funcionária do banco, que alega apenas que se deparava recorrentemente com um homem que entrava na agência repetidas vezes “com uma pochete preta a tiracolo e, em outras ocasiões, com uma mochila nas costas”. Ela ainda informou “não saber descrever ao certo” as características do acusado. Apesar das dúvidas, a funcionária reconheceu Ivan presencialmente.
Em 23 de fevereiro o delegado Julio Jesus Encarnação solicitou a prisão preventiva de Ivan. No dia seguinte, a promotora de justiça substituta Angélica Luiza Rossi da Costa denunciou Ivan pelo crime de roubo. Em 2 de março de 2022, a juíza Lilian Lage Humes, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) decretou a prisão preventiva de Ivan. Em 9 de março, o promotor Marcello de Salles Penteado, do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), denunciou Ivan pelo crime de roubo ocorrido em sete de fevereiro, mencionando o caso de Gabriel, acusando-o de ser o cúmplice, motorista da outra moto, que se evadiu.
Ivan e a família afirmam jamais ter encontrado Gabriel.
Família e defesa apontam incoerências
“Uma investigação sem pé nem cabeça”. Essa é a forma como a esposa de Ivan define o processo de apuração dos crimes feito pela Polícia Civil. Ela aponta provas de que Ivan não estava na agência bancária em nenhum dos roubos, mas sim a 30 km dali, em Embu das Artes.
“No dia em que o Ivan está sendo acusado [do primeiro roubo] ele estava no culto. Me recordo que o obreiro iniciou no horário e eu desci às 9h30 aproximadamente para ministrar a palavra”, diz a pastora e publicitária Graziela Christina Firmino dos Santos, 41 anos.
“O Ivan chegou por esse horário, desceu do carro, atravessou a rua, entrou e sentou numa cadeira mais ao fundo, perto da porta da igreja. Fiz a reunião e ele sempre participativo, como qualquer outro que ele frequentava, permaneceu até o final. Terminei o culto, me despedi de todos e então ele foi embora como todos os outros membros que ali estavam.”
Heidi ainda questiona a forma como foram feitos os reconhecimentos. Segundo os autos, o reconhecimento pessoal feito em 22 de fevereiro contava com a presença de mais dois suspeitos ao lado de Ivan, mas Heidi diz que Ivan estava sozinho, e não ao lado de outros suspeitos. Isso vai contra o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), que diz que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.
“Ele [Ivan] me falou que não tinha mais ninguém, só ele e os três policiais armados. A pessoa, coagida, com medo, fala que é. E pronto!” A esposa Heidi também diz que Ivan não sabe dirigir moto.
Quanto ao outro crime, o defensor de Ivan, José Soares da Costa Neto, afirma que a UBS de Embu das Artes já encaminhou a folha de ponto, comprovando a presença de Ivan no trabalho no dia sete de fevereiro. Para ele, a investigação foi apressada. “Tudo fruto de uma investigação mal feita, ‘a toque de caixa’ pela equipe do CERCO-102 DP. Acho que se trata de uma grande confusão. Provavelmente o verdadeiro autor se parece com ele.”
Heidi diz que os policiais entraram em sua casa e a reviraram em busca de alguma prova: “Saí do trabalho, vim direto aqui para casa, pois os policiais tinham vindo com ele pra casa, mas quando cheguei, só encontrei minha casa toda revirada e um documento que os policiais deixaram aqui referente a busca.”
Em maio, uma audiência de instrução foi realizada. Apesar disso, as vítimas não compareceram e Ivan permaneceu preso. Desde março, o advogado de Ivan vem solicitando na justiça a inclusão de mais provas no processo.
Entre as solicitações do advogado estão a descrição do acusado por parte da vítima e da funcionária da agência bancária, nos termos do art. 226 do Código de Processo Penal (CPP). Também pede a presença de outros indivíduos ao lado de Ivan para o reconhecimento pessoal, e que seja efetuado o reconhecimento com os indivíduos com e sem máscaras. Por fim, as imagens das câmeras da UBS no dia em que Ivan trabalhava. Ele também pede a localização do celular de Ivan nos dias dos crimes, que deve ser fornecido pela operadora Tim. Diálogos trocados via Whatsapp de Ivan com sua esposa, no dia 26, também foram juntados no processo.
Uma nova audiência de instrução que deve contar com a presença de todas as vítimas e testemunhas, inclusive de Gabriel está agendada para o dia 25 de julho.
O advogado André Alcântara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, analisou os casos a pedido da Ponte, para ele a investigação é precária. “Um delegado que faz uma investigação mal feita, precária, buscando culpar alguém, gera uma consequência à pessoa que é o gasto com o processo criminal, as tormentas na vida dela, inclusive a prisão.”
Ainda sobre as investigações, ele questiona: “De onde vem essa informação privilegiada?”. André lembra que Ivan tem o direito de saber como se deu essa investigação e como chegaram ao nome dele. “A pessoa tem um direito constitucional de saber quem está lhe acusando e os motivos disso. Ele tem direito constitucional de saber de onde vem essa informação privilegiada. Até pra saber a fonte contestar.”
Além dos defeitos na investigação policial, o advogado aponta falhas no trabalho no MP-SP. “Os promotores tinham que fazer o controle da atividade policial. Se tiver alguma irregularidade tem que investigar isso, tem que anular os procedimentos feitos, principalmente quando prejudica as pessoas. Foi o que não foi feito aqui. O promotor simplesmente bateu carimbão pelo que a delegacia fez e mandou para frente.”
Nesse sentido, segundo ele, caberia até ao acusado fazer uma representação contra os promotores do caso. “Ele pode representar contra o promotor que não se preocupou em ter esse mínimo de cuidado com a atuação policial.”
Vizinhos e família se manifestam
A prisão de Ivan provocou revolta nos moradores de Embu das Artes que na tarde deste domingo (17/07) resolveram se manifestar e clamar por sua liberdade. Cerca de 30 pessoas entre lideranças de movimentos sociais e vizinhos de Ivan se uniram na Praça da Paz, em Embu das Artes, e pediram por justiça para o morador do bairro Jardim dos Moraes. O ato foi organizado pela Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio e ocorreu pacificamente até as 16h.
Maria Edijane Alves, 40 anos, assistente social e articuladora da rede sul da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio ressalta que Ivan é conhecido nos movimentos culturais e principalmente de Saraus. “Trata-se de mais um caso forjado pelo Estado numa prisão ilegal. Tivemos acesso ao processo onde constatamos várias condições absurdas que não justificam a prisão do Ivan assim como não legitimam sua culpa.”
Muito querido no bairro, Ivan é conhecido como um homem trabalhador e líder em Embu das Artes, ele está envolvido com diversos trabalhos comunitários ajudando em alguns projetos, um deles promovido pela CUFA (Central Única das Favelas) entregando cestas básicas e fraldas, diz a esposa. “O Ivan é um homem do bem, um bom esposo, desde março de 2021 estava trabalhando na UBS, tem um ótimo relacionamento com os colegas de trabalho e com a população atendida na UBS.”
Como trabalhou muitos anos no ramo dos eventos como garçom, sempre que recebia uma proposta de evento e não podia ir ligava para um amigo que estivesse precisando e arrumava um trabalho, disse Heidi. “Sempre que podia ajudava alguém, sempre atento às necessidades dos conhecidos e amigos.”
Ivan cresceu no bairro Jardim dos Moraes no Embu e diante do ocorrido os próprios vizinhos se mobilizaram para ajudar a provar a inocência do ajudante. “Fizemos um abaixo assinado e todos assinaram sem pensar duas vezes. Todos diziam ‘não é possível, um cara de bem, tá trabalhando, casou, que injustiça’”.
Tendo em vista tudo o que vem acontecendo, Heidi alega que não acredita mais na justiça. “Gostaria muito de ver a justiça realmente sendo feita, para que outros casos como esse não aconteçam mais, para que outras famílias não precisem passar pelo que estamos passando, vivendo um pesadelo diário. Chega de tantas falhas, chega de tantos opressores no poder, chega de dor e sofrimento, chega de injustiça!.
Outro lado
Em nota o Tribunal de Justiça de SP afirmou que a Lei Orgânica da Magistratura Nacional veda a manifestação de magistrados “sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”.