Crônica de domingo, 17 de julho de 2022: Medo, de Paloma Amado, filha do Jorge Amado

Por Paloma Amado.

Estou com medo. As manobras para o golpe estão sendo feitas escancaradamente no nosso nariz, sem o menor pudor. O presidente do Congresso, sentado na pilha de pedidos de impeachements que residem inquietos em seu escritório, determina voto remoto para aprovação da Pec que atende, não às necessidades reais do povo que passa fome, mas a uma eleição que o monstro quer ganhar a todo o custo.

Monstro sim, que tenta inverter a culpa no brutal assassinato de um pai que festeja seu aniversário com alegria. Monstro que não é capaz de se condoer com o drama das mulheres estupradas na hora do parto, por outro monstro que se faz de médico.

O monstro que se faz de Presidente da República ri da nossa cara dizendo não incitar à violência, quando o País estarrecido vê seu filho, com a filhinha no colo, “apagar as velinhas” de um bolo de aniversário em forma de revólver, dando continuidade à educação para a morte, única que conhece.

Estou com medo. Fico pensando para onde fugir, no dia que a Democracia for definitivamente extinta, com muito sangue e publicação no Diário Oficial.

Nasci no exílio, minha morte terá o mesmo fim?

Por ser neta de anarquistas, a Itália negou cidadania a minha mãe, em cujas veias corria cem por cento de sangue italiano, e a mim por tabela. Minhas origens portuguesas me levam aos Amado sefarditas que fugiram da inquisição e vieram de carona com Nassau para a nova pátria. O escravo que casou com a menina Amado, gosto de pensar que tenha vindo do Benim, mas não sei na verdade de qual tribo foi arrancado naquele então, para o mais cruel dos destinos, a escravidão.

Me resta minha Tchecoslováquia natal, atual República Tcheca, que me garante cidadania européia. País que tem sofrido com a guerra sua vizinha e onde se fala língua difícil, mais difícil que o português. Para ter passaporte tcheco, preciso falar tcheco e também morar no país por cinco anos… Será que ainda me restam cinco anos? Até lá terei a idade de Tati Moreno, meu amigo escultor — e que escultor maravilhoso! —, que morreu esta semana. A ele todas as minhas homenagens.

Tudo que sei da língua tcheca, aprendi com meu irmão Juca, o único da família que realmente dominou esta língua um dia. Aliás, ele pintou e bordou em tcheco na sua tenra infância. Conto aqui duas historinhas que me foram contadas inúmeras vezes por minha mãe, acontecidas antes de eu nascer.

Um dia tomaram um ônibus para irem de Dobrîs, onde moravam, a Praga. Juca vinha sentadinho ao lado de mamãe, o ônibus cheio, todos quietos. Como silêncio não era com ele, começou a falar bem alto, para que todos escutassem:

“ Eu sou um menininho brasileiro que vive no Castelo de Dobrîs. Meus pais são exilados e não podemos voltar para o Brasil. Meus pais têm bicicletas, eu não tenho. Na bicicleta do meu pai e na da minha mãe tem cadeirinha para mim. Quando é uma subida, eu vou com a minha mãe, para descer ladeira eu vou com meu pai…”

O ônibus em peso caiu na gargalhada, inclusive mamãe… O tcheco falado dele era bom, ele contava sua história e distraia o público nos 20 km de viagem.

Era menorzinho, quando cometeu traquinagem fatal, ainda no Castelo de Dobrîs. Ao entrar no seu escritório para trabalhar, papai encontrou Juca derramando todo o conteúdo do tinteiro sobre o tapete.

— João Jorge Amado!

Ao ouvir seu nome completo, dito assim até com sobrenome, Juca soltou o tinteiro e saiu correndo, papai atrás dele. A picula foi pelo castelo inteiro, salas, cozinha, corredores sem fim. Já exausto, voltou ao local do crime, ajoelhou-se frente ao retrato de Lenine, pendurado na parede, postou as mãozinhas como se fosse rezar e implorou por ajuda:

— Nenine…

Invocava o líder com o nome que entendia. Deu resultado. Papai, botando os bofes pela boca, morreu de rir. Se houvesse a intenção de uma palmada na bunda, essa morreu aí.

Nunca apanhamos, nem surra nem uma simples palmada, em tempos que a prática era comum. Chamar pelo nome completo fazia tremer, depois vinha uma conversa séria, que sempre terminava em abraço carinhoso.

Em nossa casa, vivemos sempre em paz e pela paz. Meu nome é um de seus símbolos, e o desejo de vivê-la plenamente, eu o introjetei por completo. Quando nasci, ganhei presente precioso de meu padrinho Nicolas Guillén, poeta cubano, que me fez um poema. Os versos iniciais dizem assim:

Paloma, la Reina Maga,

de un Reino de Paz es dueña:

a vivir em paz enseña

la Brasileña de Praga.*

Tudo o que desejo hoje é ver o Brasil de volta ao seu caminho democrático e pacífico. Peço encarecidamente o voto na chapa Lula & Alckemin no primeiro turno. Não é que seja uma garantia de não ter golpe, por eleger-se o presidente ao mesmo tempo que deputados e senadores, mas é uma esperança.

Não importa se você gosta do Lula ou do Alckimim, basta gostar do Brasil e de seu povo, por ele ter respeito. Eu, pessoalmente, agradeço de coração.

Bom domingo a todos.

*Estou publicando a foto do original do poema, se quiserem ler os demais versos, é só dar uma olhada e sentir o peso de minha responsabilidade.

 

A opinião do/a/s autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

1 COMENTÁRIO

  1. Amei!
    La Brasileña de Praga! Que bom encontrar vc de novo, Paloma!
    Suas crônica são deliciosas ! Escreva mais !!
    Sua fã anônima que a aprecia muito ,
    Catia

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