No final de maio a Fundação Getúlio Vargas (FGV) publicou uma pesquisa sobre insegurança alimentar no Brasil utilizando uma base de dados do Gallup World Poll, que apresenta um panorama recente do problema. Os dados foram coletados entre agosto e novembro de 2021. Conforme a pesquisa destaca, o tema da insegurança alimentar no Brasil tem relevância especial porque o país é um grande produtor de alimentos, ou seja, o problema é direta e essencialmente político.
A base utilizada pela FGV possibilitou a comparação entre 160 países, em bases anuais desde 2006, oportunizando medir diferenças de prazo mais longo, de insegurança alimentar entre o Brasil e o mundo, assim como de seus determinantes próximos (renda, escolaridade, gênero e idade). Segundo a pesquisa, a parcela de brasileiros que não teve dinheiro para alimentar a si ou a sua família, em algum momento nos últimos 12 meses, elevou-se de 30% em 2019 para 36% em 2021, um recorde da série da pesquisa, iniciada em 2006. A insegurança alimentar, como é sabido, aumentou em boa parte do mundo durante o período mais duro da pandemia (2020 e 2021). Porém, segundo a pesquisa da FGV, ela se elevou 4,48 pontos percentuais mais no Brasil, do que no resto do mundo.
Conforme o estudo mencionado, entre os 20% mais pobres da população brasileira, o percentual dos que vivem em insegurança alimentar saiu de 53% em 2019 para 75% em 2021. Na comparação com média global de 122 países, em 2021, os 20% mais pobres do Brasil tem 27 pontos percentuais a mais de insegurança alimentar, enquanto os 20% mais ricos apresentam 14 pontos percentuais a menos. Esse dado revela, por si só, a grande desigualdade brasileira, que apenas se agravou no período de pandemia. O ranking dos 10 países com mais insegurança alimentar em 2021 é encabeçado por países africanos (tais como o Zimbawe, com 80%), cujos níveis de insegurança alimentar são semelhantes aos 20% de brasileiros mais pobres.
A pesquisa detectou também a piora da pobreza no período recente, elemento que anda junto com a elevação da insegurança alimentar, obviamente. Em 2019, 11% da população brasileira, cerca de 23 milhões de pessoas, se encontravam abaixo da linha de pobreza, pelo critério adotado, de R$ 290 mês por pessoa. Em outubro do ano passado o percentual já era de 13% da população, cerca de 27,6 milhões de pessoas. Ou seja, um crescimento de mais 4,6 milhões (quase 65% da população do Paraguai), de brasileiros vivendo com menos de R$ 290 mensais.
Em qualquer país do mundo a fome crônica deve ser motivo de vergonha, porque em regra ela ocorre por razões políticas e não climáticas ou demográficas. Josué de Castro (médico, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor), autor dos clássicos “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”, dizia, que a guerra e a fome são construções humanas. Josué de Castro tem um conceito de subdesenvolvimento que revela nitidamente essa ideia do atraso como uma questão política: “O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta“. (apresentação do livro “Josué de Castro e o Brasil”, de 2008). É sem dúvida, um conceito atualíssimo.
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No seu livro “Geografia da fome” o autor confirma sua tese de que a questão da fome é um problema da má distribuição da riqueza e não da escassez de comida. Para Josué de Castro os processos de colonização e dependência econômica estão diretamente ligados à geração de pobreza e miséria extrema no mundo. Ou seja, o Brasil claramente é um país subdesenvolvido porque é uma neocolônia, que tem que transferir permanentemente riqueza para o centro, através de inúmeros mecanismos, mais ou menos coercitivos. Quando forças nacionais, levantam a cabeça e tentam lutar pela soberania, o Imperialismo se organiza e interrompe o processo, como fizeram no Brasil em 2016, e nos demais golpes recentes em toda a América Latina.
Se a fome pode ser constrangedora para a reputação de qualquer país, no Brasil esse desconforto tem que ser levado à décima potência porque o país está entre os três maiores produtores de alimentos do mundo (juntamente com China a EUA). Ou seja, como registra Josué de Castro em toda a sua obra: a fome, assim como o seu fim, são decisões políticas. Numa sociedade capitalista, para ter acesso aos alimentos é preciso ter renda. Por isso, no combate à fome é fundamental a geração de empregos (de preferência, formais) e a existência de um salário-mínimo que garanta o atendimento às necessidades básicas, dentre um conjunto de outras ações articuladas.
A saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU, em 2014, é resultante de uma operação estratégica, que envolveu: políticas de emprego e renda, crédito à agricultura familiar (Pronaf), expansão da merenda escolar, política de estoques de alimentos, política de controle da inflação, política industrial, e assim por diante. Além de competência técnica e determinação, tais políticas devem ser desenvolvidas de forma articulada, pelo Estado. O setor privado não tem interesse e nem condições de assumir tal coordenação. As empresas privadas, no combate à fome, no máximo farão modestas doações, e em seguida, utilizarão o fato como instrumento de propaganda para os seus negócios.
A saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU, em 2014, revela que o problema pode ser resolvido de forma relativamente rápida, se houver condições políticas para tanto, ou seja, se os detentores do poder, tiverem interesse. Mesmo sendo a fome no Brasil um problema secular, como devidamente explicitado por Josué de Castro e outros pensadores, em cerca de 10 anos, a partir de 2003, o problema foi significativamente reduzido. Com vontade política, conhecimento técnico e a máquina federal. O fato, muito recente, revela que a manutenção de grandes contingentes de brasileiros passando fome, ou em insegurança alimentar, decorre de escolha política da burguesia.
A fome, num país subdesenvolvido e neocolonial como o Brasil, tem sua função política e econômica. Por exemplo, o Bolsa Família, uma das medidas fundamentais para o Brasil sair do Mapa da Fome, custava 0,5% do PIB, uma bagatela, considerando o seu alcance político e social, que tirava milhões de brasileiros da fome crônica. Mas mesmo sendo uma fração do orçamento, esse tipo de gasto social, subtrai recursos de de outras áreas que, para as forças que estão no poder hoje (fruto do golpe de 2016), são muito mais prioritárias.
Por exemplo, no ano passado as despesas totais com juros chegaram a R$ 448,3 bilhões e a previsão é que o Brasil gaste entre R$ 600 a 700 bilhões neste ano, com essa rubrica. Nenhum país do mundo gasta tanto dinheiro com juros do sistema da dívida. O orçamento do Ministério da Saúde para o Sistema Único de Saúde (SUS), para este ano, é de R$ 160,4 bilhões, ou seja 36% dos gastos com os juros da dívida no ano passado. Se tomarmos apenas o que o Brasil pagou de juros da dívida pública entre 2015 e 2021, chega a R$ 2,8 trilhões, equivalente a 32% do PIB brasileiro. Manter esse sistema da dívida, visando extorquir riqueza dos brasileiros em geral, para encher os bolsos dos especuladores, esta sim é uma prioridade da burguesia brasileira que está no poder. Combater a fome está longe de ser uma prioridade.
Os grandes bancos, como instituições financeiras ou fundos de investimento, detém 47,5% da dívida pública. Ou seja, quase metade de todo o estoque da dívida está nas mãos de bancos privados e instituições financeiras, que são os grandes beneficiários do sistema da dívida pública. Essas instituições financeiras, que detém praticamente o monopólio da dívida pública, também têm os maiores patrimônios líquidos do país. São os donos dessas empresas que realmente mandam no Brasil. Foram eles que articularam e comandam, em boa parte, o golpe de 2016 e todas as suas consequências. É esta gente também que controla os fios que movimentam Paulo Guedes e Bolsonaro e tem muita influência no processo de privatização no país.
Desviar 5% ou 6% do PIB para trilionários, de uma dívida que, no fundo, já foi paga várias vezes, ao invés de melhorar o poder aquisito do salário-mínimo, é sempre uma escolha de economia política e não uma definição técnica, que tivesse sido escrito em algum “livro sagrado”. Por isso, esses processos não podem ter transparência. É como as privatizações: para justificar a entrega de ativos públicos fundamentais para a população, ao capital, os governantes responsáveis têm que mentir descaradamente. No caso do Brasil, o problema é agravado porque a grande mídia é oligopolizada e defende as privatizações, dando visibilidade para apenas uma posição em relação ao assunto.
O problema da fome e da pobreza, como de resto todas as grandes questões nacionais (reforma agrária, distribuição de renda, indústria, dívida pública etc.), é essencialmente político. Se o País tivesse uma política econômica soberana, decorrente de um projeto nacional de desenvolvimento, o combate à pobreza estaria no centro das políticas públicas, porque diz respeito ao interesse de 99% da população. O problema central para o país se desenvolver com distribuição de renda é romper com as amarras neocoloniais.
As políticas neoliberais não servem para combater a fome ou fazer a economia funcionar, mas este não é o seu objetivo. Por isso todas as manobras políticas, os golpes de Estado, o apoio à extrema direita (como no Brasil em 2018 na fraude eleitoral que elegeu Bolsonaro) visam aprofundar as políticas neoliberais. A fome crescente, especialmente num contexto de grande crise mundial do capitalismo, é uma decorrência quase que natural das políticas de entrega das riquezas nacionais e das privatizações de empresas estratégicas, como está sendo feito com a Eletrobrás, de forma quase silenciosa.
A economia brasileira hoje, mais até do que em outros períodos da história, está ao serviço das grandes multinacionais e do sistema financeiro internacional. A fome e a pobreza de parcela significativa da população são apenas sintomas desse fato econômico e político fundamental. Tudo indica que a crise que temos assistido ao nível mundial seja apenas o começo de um processo que tende a ser cada vez mais dramático. Há uma propensão da crise se desenvolver em forma de espiral, ou seja, realizar estragos cada vez mais profundos e abrangentes. A crise é estrutural e está relacionada com os fundamentos do sistema capitalista ao nível internacional. É claro que um governo ilegítimo, inepto e entreguista, fruto de um golpe de Estado, torna as coisas ainda mais difíceis.