Por Caroline Oliveira, Brasil de Fato.
Se no ano eleitoral de 2018, as mensagens falsas que mais circulavam nas redes sociais estavam de alguma forma relacionadas aos próprios candidatos, agora o padrão são desinformações que visam lançar dúvidas sobre o processo eleitoral em si, segundo especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato. As recentes e constantes bravatas do presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seus aliados sobre a suposta fragilidade das urnas eletrônicas são exemplos dessa mudança.
Não à toa, a pauta também é “dominante” nos grupos de extrema-direita nas profudezas do Telegram. “Nessas plataformas mais subterrâneas, como o Telegram, é dominância total da extrema-direita. E os [assuntos] mais compartilhados, as pautas e as narrativas que se sobressaem no conjunto dos grupos e canais que a gente analisa, tem a ver não necessariamente com alegação direta de fraude nas urnas, mas com a deslegitimação da institucionalidade que garante o resultado da eleição”, diz Letícia Cesarino, professora no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
No mais recente ato, o capitão reformado afirmou que o Partido Liberal, do qual faz parte, irá contratar uma empresa privada para fazer auditoria nas eleições. “A empresa vai pedir ao TSE algumas informações. O que pode acontecer? Essa empresa que faz auditoria no mundo todo, empresa de ponta, pode chegar à conclusão que, dada a documentação que se tem na mão, ela pode falar que não foi auditável. Olha a que ponto vamos chegar”, afirmou Bolsonaro.
“Isso sempre esteve colocado, mas nesse ano a pauta ganhou corpo”, afirma Letícia Cesarino. “No 7 de setembro, por exemplo, uma pauta que ganhou proeminência foi o passaporte sanitário, mas numa espécie de crossover com a pauta de fraude nas urnas. Eram boatos de que pessoas não vacinadas seriam impedidas de votar. Então mesmo que não seja a pauta [naquele momento], o tema está circulando pelo menos desde setembro.”
O movimento é parecido com o do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Antes mesmo de perder as eleições do ano passado para Joe Biden, o empresário apontou para uma suposta fraude eleitoral no pleito. “Em todo caso, nada importa porque as eleições na Califórnia estão totalmente manipuladas”, afirmou Trump, na época. Mesmo depois de derrotado, ele não reconheceu os resultados das urnas, estimulando sua base eleitoral a se rebelar, levando-os a invadir o Capitólio.
Revelando verdades
Segundo Cesarino, uma das características desses grupos da extrema-direita que habitam os subterrâneos das redes sociais é a pretensão de revelar verdades que a imprensa e os opositores querem esconder. “O modo como eles se vendem, como produtores de conteúdo tem a ver com estar revelando verdades que a mídia esconde. E é assim que eles ganham fidelidade desses seguidores”, afirma a pesquisadora.
Revelar a verdade também é o que o presidente Jair Bolsonaro diz fazer. Em julho do ano passado, por exemplo, ele prometeu apresentar provas de que teria ocorrido uma fraude no sistema eleitoral durante o pleito de 2018. Na época, disse que havia ganhado o pleito já no primeiro turno, contra o candidato do PT, Fernando Haddad. Logo depois, no entanto, a verdade revelada não passou de alegações antigas e falsas de que as urnas eletrônicas completaram o voto no número do PT à revelia da escolha dos eleitores.
“O modo como eles se vendem, como pseudojornalistas, tem a ver com estar revelando verdades que a mídia esconde. Esse é o branding deles. Não faz sentido eles saírem disso, porque é assim que atraem os consumidores e ganham fidelidade, com essa alegação de que ‘depois da internet a mídia nunca mais vai conseguir esconder nada’”, afirma Cesarino. Por isso, “é um nicho da direita, e vai continuar sendo, porque é ali que eles operam”.
A esquerda, por outro lado, “tem uma interface com a grande mídia, que essa direita, principalmente dos deputados para baixo, não têm. Eles não têm onde ter visibilidade que não na internet. Então por mais que a esquerda cresça, esse continua sendo um nicho deles”.
Movimento orgânico e artificial
Além do caráter revelatório, os grupos da extrema-direita também trabalham com a insegurança das pessoas, o que as fazem se sentir ameaçadas. “A questão da ameaça é bem importante, porque isso mantém as pessoas ligadas, além da questão da revelação. A direita conseguiu a rede orgânica através desse apelo normal”, afirma Cesarino.
Flávia Lefèvre, advogada, integrante do Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede, concorda: “a primeira coisa que se faz é a identificação dos medos e inseguranças”, como o receio de perder o emprego, da violência e da supressão das liberdades.
“Empresas de marketing político utilizam dados de usuários das redes sociais para identificar e formar perfis de eleitores, fazendo a perfilização das pessoas. E aí definem mensagens e notícias falsas para difundir para esses perfis, de acordo com as questões de medo e insegurança identificadas”, explica Lefèvre.
Um bom exemplo foram as notícias falsas destinadas aos habitantes do Reino Unido, numa campanha a favor do Brexit, isto é, da saída da Grã-Bretanha da União Europeia ao longo de 2020. Uma das mentiras mais divulgadas na época era de que imigrantes roubariam os empregos dos ingleses. Outro exemplo: “na época da eleição de 2018, esses produtores e divulgadores de notícias falsas começaram a difundir a notícia de que se o [Fernando] Haddad ganhasse, ele ia soltar os presos. Aí as pessoas ficaram morrendo de medo”, lembrou Lefèvre.
Com a manipulação artificial desses sentimentos, os grupos conseguem atrair e manter as pessoas fiéis aos conteúdos publicados, gerando um movimento orgânico de divulgação da desinformação.
Telegram e Youtube
Letícia Cesarino explica que a produção e difusão de conteúdo da extrema-direita estão diretamente conectadas à relação estrutural entre o Telegram e o Youtube. Se até 2018, o WhatsApp era o principal repositório dos conteúdos da extrema-direita que eram produzidos no Youtube, com o Telegram, a circulação desses materiais atingiu quantidades recordes. Isso porque o Telegram permite, por exemplo, grupos de até 200 mil pessoas. No WhatsApp, o máximo são 256 pessoas. O encaminhamento de mensagens também é restrito na plataforma do Grupo Meta, o que não existem no aplicativo russo.
Com isso, a relação entre o Youtube o Telegram se tornou estrutural na difusão da desinformação por parte da extrema-direita. “Circula muito link de canal de vídeo do YouTube no Telegram. O YouTube presume que tem um controle sobre a plataforma que não tem, porque está conectado com todas as outras. O bolsonarismo se aproveita disso”, afirma Letícia Cesarino.
“A gente vê uma incidência do Youtube dentro do Telegram de cinco a seis vezes maior do que a segunda plataforma, que é o próprio Telegram”, afirma Cesarino. Em outras palavras, os conteúdos que mais circulam dentro do Telegram são links do Youtube. Em segundo lugar, estão os links criados no próprio Telegram, que permite, por exemplo, transmissões ao vivo e etc. “Tem uma relação aí que é estrutural mesmo entre os dois”, afirma.
Apesar de o Telegram ter ganhado espaço nessa esfera, o WhatsApp ainda é mais popular, e há um motivo para isso. Dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) mostram que cerca de 100 milhões planos de telefonia são pré-pagos. Isso significa que as pessoas têm uma quantidade limitada de dados, ou seja, conseguem acessar a internet de maneira limitada. Depois que a quantidade de dados acaba, o usuário tem acesso somente ao WhatsApp e ao Facebook.
“Nesses casos, o usuário recebe uma notícia e não tem como checar, porque não consegue acessar outros sites e fontes. Por isso que, em 2018, a estratégia utilizada para a campanha de desinformação foi aquela compra de chips pré-pagos, porque aí não precisa se identificar na hora da compra e dá para difundir notícia falsa pelo WhatsApp de forma ilimitada”, explica Lefèvre.
Segundo o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade Informação (Cetic.br), que é um órgão do Comitê Gestor da Internet no Brasil, 95% das classes D e E só acessam a internet via rede móvel e principalmente com planos pré-pagos. Na classe C, o percentual cai para 65%.
“Então, por baixo, existem 120 milhões de usuários que têm acesso limitado e que estão vulneráveis a essas campanhas desinformativas mais do que quem pode pagar por um plano ilimitado de internet”, afirma a advogada do Intervozes.
Outros aplicativos
O WhatsApp continua importante, “mas o ecossistema como um todo se diversificou”, na visão de Letícia Cesarino. “A gente tem, por exemplo, o TikTok, que apesar de não ser grande, tem um investimento do bolsonarismo. Só que geralmente são conteúdos camuflados, que ficam naquela zona cinzenta, entre o entretenimento e a propaganda política. Mas os vídeos do TikTok também circulam no WhatsApp, então tem esse trânsito também”, afirma a pesquisadora.
Um estudo do grupo de monitoramento de mídia Media Matters for America, divulgado ainda em março do ano passado, mostrou que o TikTok estava direcionando os usuários para conteúdos relacionados à extrema-direita nos Estados Unidos. Mais recentemente, o grupo informou que os algoritmos da plataforma estão permitindo a disseminação de desinformação em meio à invasão russa ao território ucraniano.
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Cesarino também cita “o próprio Instagram, que não expressa muito esse uso político, tem uma incidência adjacente ao bolsonarismo com desinformação sobre tratamento precoce, ciências alternativas, a pauta antivacina”.
Ao longo desses anos também surgiram plataformas alternativas às mais conhecidas, principalente depois que estas passaram a endurecer as regras de moderação de conteúdo, com banimento de canais, por exemplo. Entram nesse rol as redes Gettr – lançada por membros da equipe do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump –, Rumble e BitChute, para onde grupos da extrema-direita migraram.
Jair Bolsonaro e seus apoiadores criaram perfis na Gettr, dias depois que a rede foi criada, a exemplo dos filhos Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), além dos apoiadores Carla Zambelli (PSL-SP), Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), o ministro Fábio Faria (Comunicações) e o blogueiro Allan dos Santos. Flávio Bolsonaro caracterizou a Gettr como “mais uma rede em defesa da liberdade” ao anunciar o seu perfil aos seguidores do Twitter.
Cruzando certas linhas
Na visão de Cesarino, é possível “aumentar bastante” a abrangência da esquerda nas redes sociais, mas chegar no nível em que estão os grupos da extrema-direita é “difícil sem cruzar certas linhas éticas e até legais”. “Eles sempre vão estar na frente, porque não tem limite nenhum de distorção e sensacionalismo, porque é baseado na eficácia. Se uma mídia viraliza, o conteúdo vai seguir na mesma linha, e a tendencia é o sensacionalismo viralizar. É o diferencial dessa mídia com relação à grande mídia”, afirma.
“A esquerda está melhorando, mas é questão de organicidade. A esquerda precisa de canais orgânicos. Não adianta o PT ter uma ótima estratégia de comunicação para falar a linguagem da internet se não tem a rede de criadores orgânicos”, afirma Cesarino.
Flávia Lefèvre também vê outra linha que separa os grupos da esquerda dessa abrangência: o financiamento e a organização internacional na produção e difusão de notícias falsas que chegou aos grupos da extrema-direita brasileira.
“A indústria é muito bem financiada. Aqui no Brasil, as pesquisas que foram feitas com base nas eleições de 2018 e que têm sido feitas de lá para cá identificaram que esses grupos são financiados por forças de direita, não só daqui do Brasil, mas por um financiamento internacional. Existem instituições internacionais que financiam que são voltadas para a defesa do neoliberalismo, e a necessidade de sustentação do neoliberalismo não acontece só no Brasil”, afirma Lefèvre.
Brasil, um passo atrás
Desde 2018, no entanto, o Brasil pouco caminhou na identificação desses setores e grupos que financiam a produção e difusão de desinformação no país, segundo Lefèvre.
Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral [TSE] ampliou as medidas de combate às notícias falsas tendo em vista as eleições presidenciais deste ano, com a ampliação da Comissão de Segurança Cibernética, a fim de incluir a incidência sobre notícias falsas. Agora a comissão também irá “monitorar, elaborar estudos e implementar ações para combate à disseminação em massa de informações falsas em redes sociais”.
Antes, o TSE e o Twitter, por exemplo, firmaram um memorando de entendimento para juntar esforços no combate à desinformação no processo eleitoral deste ano. Entre as medidas do memorando, o Twitter se comprometeu a criar uma ferramenta em sua plataforma que possibilite aos usuários buscar informações sobre as eleições sem sair da rede.
As mudanças ainda, no entanto, são insuficientes para fazer frente à disseminação de desinformação e estão longe de identificar os grupos financiadores da disseminação no Brasil. “A gente ainda não conhece esses grupos. A gente precisa que as instituições, a Polícia Federal, o TSE e o Ministério Público Eleitoral sigam o rastro do dinheiro e identifiquem as forças que estão financiando [a desinformação]”, afirma Lefèvre. “Para confrontar essas forças de direita ultraneoliberais, é necessário ter uma rede muito bem articulada entre as instituições, os partidos, a sociedade civil e o terceiro setor.”
Entre o primeiro e segundo turno das eleições de 2018, a então presidente do TSE, Rosa Weber, afirmou que “notícias falsas não são novidade”, contra as quais não há milagre, e que aqueles que tivessem “uma solução para que se coíbam fake news” deveriam apresentá-la.
Edição: Rodrigo Durão Coelho