Por Marco Vasques, para Desacato.info.
ALEMÃO
Seria necessário possuir um coração que fosse um castelo feito de pequenas catedrais para ouvir as dores estampadas no rosto de Alemão. Para sentar ao seu lado, somente com vinte mãos que pudessem acolher um pouco o peso de seus longos olhos azuis a encarnar a imagem de dois holofotes de nervuras diante de tanto desespero. A sua face se assemelha a um atlas com as geografias tortuosas jamais imaginadas. Alemão, ao caminhar, parece ser carregado pelas roupas. Não é o seu corpo que percorre a paisagem suja, mas um vulto de gente. Alemão parece ter esquecido de sua presença física, tanto que já nem expressa gesto com intenção de afetar as coisas e as pessoas.
Ele segue embaixo da marquise do imenso supermercado. Em uma das mãos, uma garrafa de Corote, a única cachaça que consegue comprar para anestesiar interiores e exteriores; em outra, a fumaça do cigarro cria desenhos em torno de sua cabeça inclinada para o chão. Ele não pede nada a ninguém. As pessoas, por iniciativa própria, compram cigarros, pães e cachaça, e os deixam espalhados em seu entorno. Alemão segue fixo como se fosse um desenho no concreto vermelho que compõe as paredes do estabelecimento. Nem mesmo as pessoas que compartilham do mesmo sofrimento se interessam de alguma maneira por ele.
As unhas, tanto as das mãos quanto as dos pés, são grossas e escuras. O chinelo surrado não nutre desejo de caminhada. É impossível não perceber as toneladas de abandonos que atravessam aquele corpo inerte na crueza da velocidade cotidiana. Os passantes, quase todos ocupados com suas demandas e existências, passam por ele como se pedra fosse.
A verdade é que se sabe muito pouco sobre a vida de Alemão. A senhorinhas do bairro dizem que foi abandonado pelos pais na porta da igreja. Ficou num internato por algum tempo, até que foi adotado. Quando jovem, se meteu em inúmeras confusões: usou drogas, brigou e foi preso. Era o terror nas discotecas do bairro. Um diabo, dizem!
O certo é que ele nunca foi de falar muito, talvez porque não tenha encontrado alguém capaz de um gesto de afago. As únicas palavras que ele emitia, quando chegou ao hospital após uma sequência de paradas cardíacas, causou espanto nos socorristas, enfermeiros e médicos. Alemão, quando tomava consciência de si, abria seus olhos carregados de desesperanças e dizia: passei toda a vida esperando que corações brotassem em minhas mãos; passei toda a vida esperando que corações brotassem em minhas mãos; passei toda a vida esperando que corações brotassem em minhas mãos! E foi assim, no ritmo alucinado dessa frase, que seu coração, pássaro machucado e sem voo, parou.
LUNA
Luna morreu com as mãos para o céu e com uma pergunta que desenhou nas nuvens. Enquanto era espancada, seu corpo, de apenas 12 anos se desmanchava na raiva adulta. A menina só conseguia olhar para o infinito, porque, no horizonte finito que era sua casa, ela não podia entender os motivos que levavam a sua mãe e o seu padrasto a decidirem por imobilizar seus sonhos e arrancar seus olhos do mundo. Luna morreu com dor, medo e desespero. O que fica da sua passagem pelo mundo é este gosto amargo do amanhecer com sua foto estampada nos noticiários e o grande ponto de interrogação que foi tatuado nas expressões de seus olhos mortos.