O sentimento do mundo. Por Marco Vasques.

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

Tem dias que a cabeça da gente nasce acelerada. Acontece algo diferente com o corpo. Talvez a rotação dos sentidos entre em confronto maior com o mundo, com as paisagens, com as pessoas, com a luz, com o som, enfim, há dias em que acordar traz um sentimento diferente. Não sei se isso acontece com a maioria das pessoas, contudo, em tempos de pandemia, não é necessário muita coisa para levar a gente às lágrimas e ao desconforto. Como não chorar ao acompanhar o noticiário que diz que uma garotinha de apenas dois anos de idade precisa de uma dose de remédio que custa 9 milhões de reais para que possa ter uma vida sem dor e com alguma dignidade? Impossível. É preciso estar morto por dentro para não ser tomado por pranto, desespero e desconforto. Viver num mundo em que uma única dose alcance tal valor monetário é a prova mais que cabal de que colocamos a vida e o amor numa prateleira de mercado.

Tornar o amor e a vida mercadorias não causa mais vergonha. Ao contrário, pois existe quem se enalteça de promover turismo espacial, enquanto milhares de pessoas sonham, esquálidas, com um simples prato de comida. É preciso dizer que, enquanto escrevo, meninos negros são assassinados, vítimas única e exclusivamente do racismo e do preconceito; enquanto escrevo, há crianças sendo estupradas por seus tios, pais, padrastos e outros homens menos próximos; enquanto escrevo, a comunidade LGBTQIA+ amarga a realidade de viver no país mais violento do mundo para ela; enquanto escrevo, pessoas ficam cegas por imaginarem um prato de comida; enquanto escrevo, nossos parentes morrem em filas de hospitais porque afanaram o dinheiro que poderia salvá-los; enquanto escrevo, mulheres são assassinadas e estupradas pelos próprios companheiros; enquanto escrevo, existe um parente nosso defendendo o uso da violência como prática de conter a violência; enquanto escrevo, o mundo produz quase o dobro de alimento suficiente para alimentar todo o planeta; enquanto escrevo, homens engravatados investem uma quantia capaz de acabar com a desigualdade social em guerras e armas; enfim, enquanto escrevo, as paredes do mundo escorrem violências e usurpações inconcebíveis.

Há dias em que o poema “Sentimento do Mundo”, do poeta Carlos Drummond de Andrade, parece cravar na mente e no corpo. “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”, dizem os primeiros versos, que finalizam assim: “esse amanhecer/ mais noite que a noite”. E como os nossos amanheceres têm sido destituídos de brilho e prenhes de noite! Ao caminhar nesta manhã outonal, percebo todos os passantes como fantasmas, como uma paisagem seca. Estariam, para lembrar de outro poeta importante, todos os homens ocos? Em qual dimensão colocamos nossa capacidade de alteridade? Paulo Leminski diz em seu ensaio “Poesia: a paixão pela linguagem” que se a palavra paixão está na moda, é porque vivemos num mundo desapaixonado. A presença e urgência da palavra, neste caso, é a sua própria reivindicação de voltar para a carne, de se fazer corpo, de sair dos livros, tratados, teses e dicionários direto para a pulsão das gentes vivas das ruas.

Algo similar acontece hoje com a palavra afeto. Nos corredores dos cursos de artes, nos bares, em teses e dissertações, nas peças de teatro, nos poemas, nas mídias sociais, enfim, em toda sorte de lugar logo surge uma apologia à esta palavra. Contudo, a pronúncia, em sua grande maioria, não sai da retórica, pois essas pronúncias excessivas são incapazes de abrir os braços para o amigo, colega ou conhecido, que chora em silêncio, e vive ao nosso lado. Tal como atestou Leminski sobre a palavra paixão, a palavra afeto necessita de corpo, de espírito. Ela precisa encontrar as gentes que queiram olhar para a dor e as sombras de outras gentes. Isso é aquilo que Drummond chama de ter apenas duas mãos e um sentimento do mundo impalpável.

O problema é que congelamos os sentidos, sobretudo o sentindo em direção ao outro. Olhar o outro tem sido um abandono constante. É só observarmos ao nosso redor e veremos uma multidão concentrada em pequenas telas. No carro, no mercado, no ônibus, na rua, nas praias, dentro de nossas casas, enfim, está quase todo mundo capturado e imerso dentro de seus interesses, de suas bolhas. Olhar no olho, cumprimentar na rua, convidar para uma caminhada na praia, pegar um vinho e fazer uma visita a um amigo parecem programas do passado. Não se trata de mera nostalgia filosófica. É um fato.

Estamos perdidos de nossos irmãos e isso tem implicação direta na vida prática, na vida política. Uma coisa que perturba bastante, hoje, é o fato de não conseguirmos adentrar na vida de nosso tios, pais, irmãos, amigos e colegas que estão imersos no esgoto bolsonarista. E por quê? Porque eles se identificam, feito Narciso, com esse mundo derrocado de beleza, com essa adoração pelas ruínas, com esse desejo constante de falsear a vida. Eles se unem nesse lodo de mentiras que cria um mundo paralelo, um mundo sem conexão alguma com a vida real, com a vida presente. Como enfrentar tanta brutalidade? O que fazer para desvendar essa gente da fantasia macabra em que foram metidos? Não basta mostrar o deputado perverso, que viaja para se aproveitar de pessoas em extremo grau de vulnerabilidade. Não adianta mostra o vereador que forja filmes para ganhar milhões. E o ministro deseducado mergulhado na propina? Por qual motivo, ainda que mostremos todos os números, dados, estudos, essa gente prefere vendar os sentidos e exalar o perfume da morte, o pútrido perfume do atraso?

As eleições que se aproximam serão marcadas por este campo de pobreza, por essa terra arrasada. E o que temos que fazer? Promover, em nossos dias, um reencontro com o sentimento do mundo, mas para isso é preciso ter duas mãos que queiram segurar e empurrar o mundo para dentro do mundo e singrar rumo à dor e às sombras do outro.

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.