Por Marina Rossi
“Foi meu primo quem encontrou os corpos. A menina estava morta em cima da tábua de passar roupa”. Regina Lisboa, de 51 anos, conta, com poucas palavras e muito medo, sobre o assassinato da neta, Joane Nunes Lisboa, de 17 anos, da filha, Márcia Nunes Lisboa, 39, e do genro, José Gomes, 61. A família foi encontrada morta em São Félix do Xingu (PA), no início de janeiro, nos arredores da casa onde vivia, com ao menos 18 cápsulas próximas aos corpos. Conhecido como “Zé do Lago”, José Gomes, o padrasto de Joane, era um ambientalista e mantinha na região, a cerca de mil quilômetros de Belém, um projeto de criação de tartarugas. Além disso, a família vivia em uma área alvo de disputa.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) aguarda as investigações para confirmar se o crime ocorreu por conta de conflitos rurais. Se assim for, a execução de Joane entrará para uma estatística que só vem aumentando nos últimos anos: a de crianças e adolescentes vítimas da violência no campo.
Para além das mortes, há dezenas de casos de ameaças, agressões, tortura, estupro e contaminação por agrotóxico e outros crimes. Somente em 2021 foram ao menos 68 desses casos de violência – o maior índice em cinco anos –, segundo uma análise inédita realizada pela CPT a pedido da Repórter Brasil. No comparativo da década, o ano passado está entre os três piores, ficando atrás somente de 2016, quando houve um recorde de 127 menores de 18 anos vítimas desses tipos de violência, e de 2013, com 97 (veja tabela abaixo).
O levantamento revela uma realidade sangrenta para crianças e jovens das áreas rurais. Um cenário que reflete, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, o acirramento da violência no campo. Segundo Carlos Lima, da coordenação nacional da CPT, a vulnerabilidade desses jovens está diretamente ligada aos conflitos fundiários, seja em uma ocupação de sem-terra ou em uma comunidade quilombola.“No cotidiano dessas famílias, essas crianças também sofrem violências por conta das ameaças constantes, seja por um despejo, por uma ação da grilagem, da pistolagem; elas estão sujeitas a tudo isso”.
Executado à queima-roupa
Outro exemplo da brutalidade à qual estão submetidas as crianças e jovens do campo ocorreu exatamente um mês após o assassinato da família de Joane. Um garoto de apenas 9 anos foi morto em Pernambuco. Filho de um líder rural, Jonatas de Oliveira dos Santos foi executado à queima-roupa dentro do seu quarto.
O crime ocorreu em 10 de fevereiro, quando homens encapuzados arrombaram a casa de Geovane da Silva Santos, uma das lideranças do Engenho do Roncadorzinho, que fica no município de Barreiros, a 110 km do Recife. Segundo Santos afirmou ao portal G1, eles invadiram a propriedade afirmando ser “a polícia”, deram um tiro que acertou seu ombro e foram até o quarto da família, onde estavam a mãe e outras quatro crianças. Jonatas tentava se esconder debaixo da cama quando foi brutalmente assassinado pelos pistoleiros. O assassinato é “típico de atividade de um grupo de extermínio”, segundo disse ao G1 o promotor de Justiça de Barreiros, Júlio Elihimas.
Palco de uma disputa fundiária, o Engenho do Roncadorzinho fica em uma área que abrigava a usina de açúcar Santo André, que decretou falência judicial há décadas. A maioria dos moradores é de ex-funcionários, que vivem no local desde então e aguardam pelo pagamento de indenizações trabalhistas. Alvo de uma batalha judicial entre os novos donos do terreno, a Agropecuária Javari, e os moradores locais, o Engenho do Roncadorzinho é foco de uma tensão que se arrasta por anos.
Comunidade aguerrida ficou muda
“Não há nada que justifique uma invasão na casa de uma família para matar um pai. Motivo nenhum justifica”, afirma Bruno Ribeiro, advogado da Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Pernambuco (Fetape). Ele explica que recentemente, apesar da tensão, não havia confrontos. “Nesse último um ano e meio, não teve conflito direto porque a Agropecuária Javari estava tentando despejar a comunidade por vias judiciais”, explica. “Mas, para a nossa surpresa, vem essa barbaridade”, diz. De acordo com ele, tudo indica que o alvo era Geovane e não o garoto. “Nem a polícia trabalha com essa linha de investigação. O alvo era o pai”.
A Polícia Civil de Pernambuco afirmou à Repórter Brasil que prendeu dois suspeitos e apreendeu um adolescente pela participação no assassinato de Jonatas e na tentativa de homicídio de seu pai. Informou também que “o trabalho investigativo prossegue até a conclusão do inquérito policial com empenho para a elucidação de todos os fatos relacionados”.
O assassinato de Jonatas deixou muda uma comunidade historicamente aguerrida. Carlos Lima, da CPT, conta que foi organizado um ato em homenagem ao menino. Parlamentares das Comissões de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e do Senado Federal, além de outras autoridades, estiveram no local para prestar apoio à família e cobrar respostas dos investigadores. “Mas pouca gente [da comunidade] quis pegar o microfone e falar”, contou. “O clima é de muito medo e insegurança”.
Lima, que esteve no local do conflito e conversou com familiares e amigos de Jonatas, também não acredita que os pistoleiros invadiram a casa da família atrás do garoto. “Existem teses que dizem que matar o filho é mais forte do que matar o próprio pai ou a própria mãe. Mas no caso do Jonatas, a leitura que fazemos é que a vítima seria o pai, mas as pessoas contratadas [para executá-lo] não tinham muita informação [de como ele era fisicamente]”.
Já no Pará, o assassinato de Joane levanta outras suspeitas. Uma fonte que pediu para não ser identificada afirmou à reportagem que acredita que a adolescente não foi morta por mero acaso. “Joane estava pegando gosto pela causa ambientalista. Ela seria a sucessora do padrasto e eu acredito que isso tenha sido ponto fundamental para a execução”.
À reportagem, a Polícia Civil do Pará limitou-se a dizer que “o caso segue sendo investigado” e que “diligências estão sendo feitas para que o inquérito seja concluído dentro do prazo necessário para a elucidação do fato”. Ninguém, até o momento, foi preso. Dona Regina, a avó da adolescente executada, ao ser questionada como está, responde com um apático “vou levando né?”. Seu medo, agora, é pela própria vida. “Temos medo de que aconteça alguma coisa com a gente, porque aconteceu lá e não sabemos quem foi até agora”.
‘Cenário de piora nos indicadores’
De maneira geral, os índices de violência no campo aumentaram vertiginosamente nos últimos anos. Relatório publicado pela ONG Global Witness no ano passado colocou o Brasil em quarto lugar no ranking dos países com mais assassinatos de lideranças ambientais. E os números levantados por pesquisadores no Brasil vão no mesmo sentido. O Atlas da Violência no Campo no Brasil, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostrou que entre 2007 e 2017 os homicídios no campo cresceram 75%, enquanto nos centros urbanos o crescimento foi de 40%.
Janine Mello, uma das organizadoras do Atlas, explica que a violência no campo é sistêmica. “A gente vive com a violência urbana como uma coisa mais visível, mas a violência no campo tem séculos de trajetória e configura as relações sociais no campo”, diz. “Não é algo pontual, faz parte de uma dinâmica”.
E a pesquisadora afirma que os índices de violência podem se agravar ainda mais. “As evidências mostram um cenário de piora devido a um conjunto de fatores: aumento do armamento, desmonte de políticas públicas que poderiam contribuir para não acirrar os conflitos fundiários e a possível liberação de terras indígenas para mineração, que contribui para acirrar o potencial violento nessas regiões”.
Fonte: Brasil de Fato