Um estranho no ninho: como o ódio a estrangeiros existe e cresce nos Estados Unidos

Pesquisador da Universidade de Columbia destaca ligação entre xenofobia e a política internacion

Bandeira dos EUA em ato da campanha de Trump em 2016 – Gage Skidmore / Wikimedia Commons

Por Eloá Orazem

Quando escreveu o livro “Xenofobia“, em 2013, o autor australiano Peter Cawdron não imaginou que seu roteiro ficcional pudesse vir à tona quase uma década depois. O enredo fantasioso proposto pelo escritor encosta em muitas das verdades que vemos hoje — inclusive uma bem mensurada: o fato de a maioria dos americanos enxergarem a Rússia como inimiga.

Uma pesquisa feita pelo Washington Post e ABC News mostrou que 80% dos estadunidenses consideram o país governado por Vladimir Putin um adversário, uma porcentagem semelhante aos índices nos tempos da Guerra Fria.

“Quando eu pesquisei sobre xenofobia para essa história, investiguei sob a perspectiva do medo irracional – que é a definição de uma fobia”, conta Cawdron à reportagem do Brasil de Fato. “Mas não acho que é o que estamos vivendo agora, porque os políticos estão usando a xenofobia como uma ferramenta para dividir as pessoas. Nos EUA, por exemplo, existe esse ‘medo irracional’ da população latina ‘roubar os empregos’. A realidade, porém, é que os trabalhos estão sendo automatizados e os latinos nada têm a ver com isso.”

O historiador e psiquiatra George Makari explica melhor essa estratégia de fazer de um determinado grupo de pessoas uma espécie de bode expiatório. “Quando estamos sob pressão, nosso instinto é buscar o culpado e, consequentemente, a solução. Sob a liderança de uma pessoa autoritária, com tendências xenofóbicas, é muito provável que o inimigo se torne imigrantes. É uma forma de terceirizar a culpa para uma má administração”, diz.

Para Makari, que assina o livro “Of Fear and Strangers: A History of Xenophobia” (“Sobre Medo e Estranhos: A História da Xenofobia”, em tradução livre), o argumento de que o ódio — ou o medo — de estrangeiros é um traço primitivo não se sustenta. “Claro que, quando vivíamos em pequenas tribos, poderia haver uma desconfiança em relação a forasteiros, mas se tem uma coisa que a história nos ensina é que a nossa subsistência depende da colaboração. Se você trava uma guerra com qualquer estranho que se aproxima, você está fadado a viver isolado, de forma insustentável”, explica.

Já o professor de sociologia da Universidade de Columbia, Andreas Wimmer, defende que a xenofobia tal qual conhecemos hoje é um reflexo das políticas internacionais. “O sentimento que nutrimos por pessoas de certas nacionalidades é, de certa maneira, guiado pela percepção do seu país originário. Então, se um indivíduo vem de um país alinhado com os nossos interesses, ele é amigável. É por isso que vemos escalar, por exemplo, os casos de sinofobia, o sentimento anti-China. Quanto mais hostil e rival se torna a relação entre China e EUA, maior a prática de sinofobia. O mesmo se aplica aos EUA e à Rússia e a consequente russofobia”.

Ainda de acordo com Wimmer, a forma como a imprensa dos EUA aborda o assunto é uma das partes do problema. “Os jornais estadunidenses se apressam a contar a história bárbara, do Golias Rússia, contra o heróico Davi, Ucrânia, que resiste a todas as custas”, conta. Além de remover a dramatização da narrativa, Wimmer encoraja que qualquer um falando sobre o tema faça a importante diferenciação sobre povos e Estado. “Guerras acontecem entre governos, não entre povos. Podemos ser críticos a Putin e sua administração, como também podemos, por outros motivos, criticar Zelensky e sua liderança, mas isso não significa que temos que atacar os russos ou os ucranianos”.

Soma-se a isso o fato de que as nações são, em si, heterogêneas. “O Brasil talvez seja o melhor exemplo disso”, acrescenta Makari, “um país tão grande e populoso não tem só uma cara, uma voz e uma personalidade. Não dá para dizer que todos os brasileiros gostam de samba e amam feijoada, por exemplo. O mesmo vale para os russos, os ucranianos e pessoas de qualquer nacionalidade”.

Todos esses preconceitos que reduzem um país a uma única identidade se sustenta graças à manutenção dos estereótipos, e Hollywood é mestre nisso. Muitos são os filmes que colocam russos, chineses e outros “inimigos” dos EUA nos papéis de vilão. “Hoje você sequer precisa conhecer um colombiano para temer que ele seja um traficante de drogas, basta assistir a bastante filmes”, explica Makari.

É impossível prever por quanto tempo perdura o ódio a um determinado grupo de pessoas porque ele tende a responder a fatores externos também. “Logo depois da Segunda Guerra, era comum a xenofobia contra os japoneses, mas esse preconceito minguou com o passar dos anos”, analisa Wimmer, “temo, porém, que a russofobia seja mais duradoura, porque a rivalidade estratégica com a União Soviética moldou toda uma ou duas gerações da opinião pública americana, e agora é fácil para essas ideias anti-russas serem alavancadas novamente, dado o ressurgimento da rivalidade geopolítica atual”.

Embora seja bonito o discurso de combater o ódio com o amor, a ideia não é tão eficaz para a realidade quanto é para a poesia. É isso o que se percebe sobretudo nos Estados Unidos, o país provavelmente mais heterogêneo do mundo, com quase 20% de sua população composta por imigrantes.

Como pode um país que recebe tantos estrangeiros ainda assim registrar tantos crimes de ódio ligados a raças, crenças e nacionalidades? “Porque precisamos nos unir”, responde Makari, “e às vezes nos unimos por uma causa, às vezes nos unimos pelo ódio. De forma geral, acho mesmo que precisamos de um inimigo comum. William James, antes de morrer, sugeriu que criássemos um inimigo abstrato, como ‘acabar com as guerras’. Se precisamos mesmo de um inimigo comum, para que possamos verdadeiramente nos unir como seres humanos, acho que a nossa melhor oportunidade seria fazer da mudança climática o nosso alvo. Precisamos salvar o planeta — e precisamos, acima de tudo, nos salvar. Inclusive, de nós mesmos”.

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