A perspectiva paquistanesa sobre a “Nova Guerra Fria”: Entrevista com o senador Mushahid Hussain Sayed

O mundo está se dividindo cada vez mais em duas metades, e essa não é a primeira vez. Muito se fala sobre a chamada “Nova Guerra Fria” sendo travada pelos Estados Unidos e a China. Também muito se fala sobre o Afeganistão. Mas, se tem um país que pode desempenhar um papel fundamental nestas questões é o Paquistão. Logo, a perspectiva paquistanesa a respeito dos EUA e da China e dos eventos globais contemporâneos é uma importante forma de se olhar para a situação do mundo a partir de lentes diferentes, com uma visão Oriental, visto que uma visão Ocidental pode ser estreita e limitada.

Eu perguntei ao Senador Mushahid Hussain Sayed, jornalista e político, ex-Ministro da Informação, Cultura e Turismo, qual a posição do Paquistão frente aos EUA e à China, além do seu ponto de vista a respeito de outros países e sua opinião sobre o que está acontecendo no mundo. Mas, façamos primeiro algumas considerações.

Entrevista realizada por Cecilia Capanna para a Pressenza

O papel do Paquistão no diálogo com o novo governo do Afeganistão

O Paquistão auxiliou na construção de um diálogo internacional entre o novo governo do Afeganistão e o resto do mundo. Até agora, nenhum país reconheceu o governo afegão que, por sua vez, prometeu não empregar as regras restritivas adotadas pela gestão anterior, na década de 1990. Entretanto, em sua recente decisão de dissolver a Comissão Eleitoral Independente (IEC, no inglês) e a Comissão de Reclamações Eleitorais (IECC, no inglês), além da catástrofe humanitária pela qual o país passa, demonstra claramente que outra mesa redonda internacional é urgentemente necessária. E o Paquistão poderia ser o moderador.

O Paquistão já sediou uma importante cúpula com a Rússia, os EUA e a China, em novembro, no formato conhecido como “Troika Plus”. Islamabad estava programada para receber o Ministro interino das Relações Exteriores do Afeganistão, assim como os enviados especiais dos outros três países, como parte dos esforços diplomáticos que visavam o preparo do terreno para o reconhecimento do novo governo afegão pela comunidade internacional.

Os quatro países demandavam, coletivamente, que o Afeganistão atendesse aos compromissos da comunidade internacional a respeito da formação de um governo inclusivo, da proteção dos direitos humanos e das mulheres e que não permitisse que o solo afegão fosse novamente utilizado por terroristas. Como resultado, qualquer futuro papel efetivo dos EUA no Afeganistão terá de ser ancorado em cooperação com o Paquistão, e o que o senador Mushahid Hussain Sayed falou sobre a perspectiva paquistanesa acerca deste assunto é extremamente interessante.

Paquistão recusa o convite para a Cúpula pela Democracia dos EUA

Nos dias 9 e 10 de dezembro, o Departamento de Estado dos EUA realizou a Cúpula pela Democracia com o objetivo de “renovar a democracia doméstica e confrontar as autocracias no exterior”. Foram convidados 111 países, incluindo o Paquistão. Alguns países, no entanto, pareciam não serem bem-vindos devido a sua suposta falta de democracia, como a China, Rússia, Líbia, Irã, Síria, Iêmen, Turquia, Sri Lanka e Hungria, enquanto países autoritários, como a Índia e o Brasil, estavam na lista. Este tipo de escolha arbitrária não passou despercebida pelos líderes excluídos, que se sentiram discriminados, e alguns comentaristas de geopolítica consideraram tal feito como uma forma de dividir o mundo ainda mais.

Como resultado, um mês depois do encontro da Troika Plus em Islamabad, que parecia ter sido um marco nas relações de cooperação EUA-Paquistão, este último decidiu não comparecer à cúpula. E na entrevista a seguir, eu perguntei ao senador Mushahid Hussain Sayed o porquê.

— Paquistão foi convidado para a Cúpula pela Democracia dos EUA, mas não compareceu. Por quê?

— Então, existe um contexto por trás disto, há algumas reservas sobre como vemos a relação Paquistão-Estados Unidos. Em primeiro lugar, desde que o governo Biden tomou posse, não houve um contato político de alto nível entre os dois países.

Em segundo lugar, consideramos que o Paquistão tem respondido aos EUA de forma bastante positiva em várias questões como a do Afeganistão. Os estadunidenses pediram que pressionássemos o Talibã a promover a paz no país, que os trouxéssemos para a mesa de negociações, antes a pedido do presidente Trump, e agora do Biden. Nós organizamos e facilitamos isso. E, quando o grupo fundamentalista assumiu o controle em Cabul, no dia 15 de agosto de 2021, nós também ajudamos a evacuar os cidadãos estadunidenses e afegãos de lá.

O chefe da CIA veio ao nosso país duas vezes. O Paquistão era o único país onde a embaixada ainda estava funcionando. Então, fizemos muita coisa para os EUA, mas nenhuma vez eles nos agradeceram ou valorizaram o papel do Paquistão pela paz, pela segurança e pela estabilidade na região. E para o próprio interesse dos EUA.

Então, eventualmente, consideramos que a chamada Cúpula pela Democracia é uma arma sendo usada pelo governo dos EUA, numa mentalidade de “Nova Guerra Fria” para pressionar a China e a Rússia. Não diz respeito à democracia, mas sim à contenção, à transformação dela em uma arma a partir de uma visão de mundo ideológica, por motivos geopolíticos. E não podemos e nem queremos fazer parte disso. Logo, consideramos que foi um exercício fútil da democracia, e que promovia somente interesses específicos de uma agenda específica, com a qual não concordamos.

A perspectiva do Paquistão acerca dos países com conotações democráticas controversas

— Enquanto a Índia e o Brasil foram bem-vindos na Cúpula pela Democracia dos EUA, alguns países não foram convidados. Qual é o seu ponto de vista e a perspectiva do Paquistão sobre isso?

— Essa é uma ótima pergunta. E isso demonstra a ambiguidade de critérios que os EUA adotaram para os convites. A Índia foi convidada, logo, Modi foi considerado um democrata. Mas ele é um neofascista que se inspira em Mussolini, no fascismo europeu da década de 1930. As pessoas do seu partido usam camisetas pretas e fazem a saudação, com a única diferença que naquela época a mentalidade era antissemita, agora é islamofóbica. Ambas são inaceitáveis. Ambas são racistas.

Da mesma forma, considero o Bolsonaro como um líder da extrema-direita, e ele foi convidado pelo Departamento de Estado dos EUA, enquanto outros países como a Turquia, Sri Lanka, China e Rússia não foram.

No meu ponto de vista, Erdogan é um líder eleito democraticamente. Ele chegou ao poder por meio das urnas. Recentemente, ele perdeu as eleições para as prefeituras de Istambul, de Ancara e de Esmirna. Três das maiores cidades turcas. E a próxima eleição ocorrerá em 2023. Então, a Turquia e seus governos, nos últimos 20 anos, mudaram através da urna eleitoral. Sim, suas políticas não coincidem com aquelas do Ocidente, com as políticas dos estadunidenses. Ele compra armas da Rússia e não dos EUA, e se posiciona de uma maneira firme em favor da Palestina contra Israel. Então, eu penso que esse é um caso de discriminação. A Turquia é como o Paquistão, como a Indonésia, como a Malásia, uma democracia muçulmana vibrante.

Digamos, também, que a intervenção de Erdogan na Líbia resolveu alguns problemas. E, falando francamente, o problema na Líbia foi criado por Macron e por Blair. Ademais, o presidente turco reconhece o governo da ONU na Líbia. Então, percebe-se que isto é discriminação por motivos geopolíticos.

O Sri Lanka, por exemplo, é o primeiro país do sul da Ásia que derrotou o maior grupo religioso terrorista asiático, o LTTE, Tigres de Liberação do Tamil Eelam. E eles fizeram isso sozinhos, ao longo de 30 anos de guerra. Logo, eles deveriam ser apoiados. Estes países são vítimas de guerra. Tanto o Sri Lanka como o Paquistão são vítimas do extremismo. Portanto, não concordamos com isso, porque no Sri Lanka o governo também chegou ao poder através das urnas. Então, qual é o critério? E você está disposto a apoiar um governo racista e fascista na Índia e o chama de democrático, enquanto não aceita a democracia na Turquia ou no Sri Lanka? Isto é inconsistente.

— E quanto a Rússia e a China?

— A Rússia tem uma história diferente. A China é governada pelo Partido Comunista, que chegou ao poder por meio da revolução popular. Darei um ou dois exemplos para a China.

Existe uma pesquisa do Ash Center for Democratic Governance and Innovation da Universidade de Harvard, que realizou uma pesquisa à longo prazo (2003–2016) sobre como os cidadãos chineses julgam o seu governo nos níveis nacionais, regionais e locais. A pesquisa foi concluída e publicada em julho de 2020: mais de 85% das pessoas expressaram satisfação acerca de como eles têm sido governados e de como é a vida real na China.

— E quanto a Taiwan e Hong Kong?

— Só um momento, por obséquio. Então, a pesquisa mostra que o Partido Comunista é popular. E por que é popular? Porque proporciona às pessoas uma vida melhor. Eu fui à China como um estudante adolescente, tinha por volta de 16 anos, mais de 45 anos atrás, e a China era um país pobre, atrasado, as pessoas andavam de bicicleta e se vestiam igual. Hoje, o país está transformado. Quando a visitei naquela época, pensei que o Paquistão era tão rico em comparação a ela. Mas, enquanto isso, aquele país se transformou. Eles deram uma vida boa para as pessoas. O sistema chinês foi entregue. Logo, os EUA não deveriam tentar impor a sua tão famosa democracia.

— A perspectiva do Paquistão acerca dos EUA

— Eu vivi em Washington D.C., nos Estados Unidos por 4 anos. Os EUA que eu conheci mudaram, já não existem mais. Os estadunidenses são boas pessoas, calorosas, acolhedoras, possuem um senso de humor, são trabalhadores. Agora, é um país dividido, polarizado, fragmentado. É quase como uma guerra civil, ideologicamente e politicamente.

E no que diz respeito ao Congresso dos EUA, o seu sistema está quebrado. Para exemplificar, 75 milhões de estadunidenses não aceitam o resultado da eleição de 2020, sob a justificativa de que foram roubados. Em suma, Trump pode voltar em 2024. Então, que sermão Washington pode dar a outros países, quando seu próprio sistema não funciona?

Falemos um pouco, então, sobre as severas consequências para as violações aos direitos humanos para o mundo todo, enquanto perseguem Julian Assange. O que ele fez? Ele expôs os crimes, contou a verdade. Eu já fui um jornalista e expus as políticas equivocadas dos governos, do meu país e dos estrangeiros. Isso é um serviço para a humanidade, já que é um serviço em prol da verdade. Ao fim, seremos julgados pela verdade. O que, em nome da segurança nacional, estão fazendo?

O caso Assange é um péssimo precedente, é antidemocrático. Se eu tenho uma história que mostra que meu governo está mentindo para as pessoas, e o que eu digo é verdade, então eu deveria ser homenageado, e não perseguido.

— Se você fosse um Assange no Paquistão, você ficaria livre depois de dizer a verdade ou seria perseguido?

— Eu não saberia dizer, visto que muitos governos trabalham de maneira similar. Quando eu era editor de um jornal de centro-esquerda chamado “The Muslim”, era a época do regime militar no Paquistão, e nós éramos da oposição. Eu costumava dizer “essa é a verdade oficialmente certificada”. Mas, todos os governos se escondem atrás dos Segredos de Estados.

Acontece em todos os países, então, eu não saberia dizer. Mas dei o meu melhor para contar a verdade. Eu fui oposição à guerra do Afeganistão, eu era contra ela. Entrevistei várias pessoas em Cabul e descobri que as políticas erradas, o regime militar e os EUA destruíram o Paquistão; infelizmente, foi provado que eu estava certo.

Para os EUA, eu diria… tem um ditado famoso: “Médico, cura-te a ti mesmo”. Doutor, cure-se primeiro antes de dizer para os outros como se curar.

— Racismo é o problema principal

— Eu vejo uma aliança mundial do que eu chamo de três Rs: Extrema-direita, Religião, Racismo (Right wing, Religion, Racism, no inglês). Nos EUA há os evangélicos, eles são muito extremistas, supremacistas brancos. Está acontecendo na Europa também, e isso por que eles julgam que a civilização ocidental está sob ataque, e uma das razões pelas quais os EUA estão contra a China também é o racismo. A competição é entre os países não-brancos.

A China despontou e eles não conseguem lidar com isso. Então, o racismo é uma parte importante. Não se esqueça que, em 1882, o Congresso dos EUA promulgou a Lei de Exclusão dos Chineses: que impedia a entrada no país e impossibilitava a cidadania aos chineses naturalizados. Veja só, se isso não é racismo! Antigamente, o racismo era voltado contra os italianos, judeus, poloneses, épocas diferentes, idades diferentes. E é por isso que eles têm os guetos, dos judeus, dos italianos, dos poloneses e, agora, a mesma coisa com os afro-americanos, não há nenhuma integração com a comunidade. É chocante quando um assassino de uma pessoa negra se torna um herói e ganha um processo judicial nos EUA.

— E quanto ao governo chinês em relação ao povo uigur? Também não é racismo?

— Sim, se for verdade, há muito falatório acerca disso, mas acredito que seja muita propaganda. Os EUA e o Ocidente, depois do 11 de setembro, gastaram 6,4 trilhões de dólares na chamada Guerra ao Terror, e 900 mil pessoas foram mortas no Paquistão, no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Líbia e na Somália, além das 37 milhões de pessoas que ficaram desabrigadas.

— Assim como Erdogan com os curdos, também não é racismo?

— Sim, os curdos também são vítimas, eu concordo. Mas os curdos não vivem em um só país, eles vivem em quatro países. As suas terras foram roubadas, assim como os palestinos. Os curdos, agora, vivem no Iraque, no Irã, na Síria e na Turquia.

O racismo pode, também, se tornar chauvinismo. Quando eles dizem “nossa língua, nosso país, nossa cultura, nossa raça, são superiores a dos outros”. É o que está acontecendo nos Bálcãs: eles são eslavos, incluindo os bósnios, os sérvios.

— A perspectiva do Paquistão acerca da OTAN e da Europa

— Eu li o relatório OTAN 2030, e lá diz que a China é uma ameaça. Mas e a China faz parte da OTAN? Faz parte da Europa? Por que a organização está sendo usada como instrumento super partes? Será que a OTAN está tentando se reinventar nessa nova guerra fria?

Eu acredito que a UE deveria ter a sua própria política externa. Eu gostaria que existisse uma pessoa como o general de Gaulle com uma “visão europeia gaullista”. Os europeus deveriam ser independentes. Eles deveriam fazer parte da Iniciativa Cinturão e Rota da China, unindo sua tradição de comércio, economia e integração.

Porque agora os chineses estão mais ricos que os estadunidenses, e o equilíbrio de poder econômico e político está se deslocando do Ocidente para o Oriente. Os EUA estão em declínio, assim como a Europa. O que está acontecendo? O Reino Unido tem o Brexit, a Espanha a Catalunha. E, graças aos imigrantes do Paquistão, o Reino Unido continua sendo um país, visto que a maioria dos paquistaneses que moram na Escócia querem uma Grã-Bretanha unida e, também, a maioria dos paquistaneses de Barcelona desejam a mesma união na Espanha. As pessoas que se importam com a união não são europeias, são imigrantes.

Tradução do inglês: Edmundo Dantez / Revisão: Doralice Silva

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