“Eles falavam que índio morava no mato”. Cláudia Baré ouve frases desse tipo desde criança, por ser indígena da etnia Baré e morar na capital do Amazonas. Ela é uma entre os mais de 300 mil indígenas que vivem em áreas urbanas no Brasil, segundo dados do IBGE (2010). E, contrariando o que diziam para ela, Cláudia não só ficou na cidade, como participou da fundação do primeiro bairro indígena oficializado pela prefeitura de Manaus, o Parque das Tribos, onde é professora e uma das lideranças femininas.
A comunidade abriga mais de 700 famílias de 35 etnias distintas e é liderada por uma cacica, Lutana Kokama. Foi o pai dela que iniciou o lugar em 1986, mas só em 2014 Lutana conseguiu, após muita luta, o reconhecimento da Justiça e da gestão municipal.
É lá que mulheres como Cláudia e Lutana lutam por melhores condições de existir e pela reconexão com a cultura indígena em ambiente urbano. Elas fazem isso por meio da educação, da arte e da saúde. São mulheres que desejam ser ouvidas; que querem que seus corpos ocupem espaços e sejam respeitados.
Formada em pedagogia, Cláudia Baré, 43 anos, viu na educação uma oportunidade de mostrar para a sociedade que o Parque das Tribos era sinônimo de fortalecimento cultural. Ela implementou lá a educação escolar indígena, por meio do Espaço Cultural Indígena Uka Umbuesara Wakenai Anumarehi, com o apoio do cacique à época, Messias Kokama.
Tudo começou em 2015, em um ambiente improvisado dentro da casa da Cláudia Baré e com doações de materiais escolares. Mas não demorou muito para a iniciativa crescer e ganhar espaço próprio, onde as crianças eram alfabetizadas no ensino regular e aprendiam também a língua materna dos povos originários. “Lá fora a gente se identifica como indígena e sabe que as pessoas vão discriminar, mas aqui dentro a gente pode se fortalecer.”
Apesar de ser um espaço de resistência para os moradores, o Parque das Tribos fica na periferia da capital amazonense, tem pouca infraestrutura, falta de saneamento básico e má distribuição de energia elétrica. Apenas em 2018 recebeu iluminação pública, asfaltamento e água. Há promessas para construção de uma unidade básica de saúde.
Já faz 35 anos que a família indígena da etnia Kokama chegou no local, que tornou-se uma roça. Eles trabalhavam com o cultivo de frutas típicas da região, como o cupuaçu e mari mari. “Daqui nós tirávamos também a farinha, o beiju e a tapioca”, relembra Lutana Kokama, cacica geral da comunidade.
Ela é a primeira mulher manauara a tomar posse do maior cargo hierárquico na cultura indígena. A conquista ocorreu no dia 24 de abril do ano passado. Lutana Kokama, 48 anos, foi eleita através de votação por todas as lideranças. Ser cacica geral é ser mãe de todos os povos, explica ela: “os problemas que vierem, eu tenho que resolver”.
O pai dela registrou a terra perante os órgãos competentes em 1986, mas em 2004 ele faleceu e os impostos deixaram de ser pagos. Nesse mesmo período alguns empresários entraram com um pedido de reintegração, ameaçando despejar todos que moravam ali.
Lutana Kokama, como herdeira, tinha o poder de requerer o território. Para ela, essa era uma oportunidade de criar oficialmente uma comunidade indígena ali. “A gente conquistou essa terra com muita luta. As pessoas diziam que nós éramos invasores. Mas sempre seguimos a lei.” Mesmo sendo ameaçada pela polícia, por empresários e organizações criminosas – que tinham o comando da região -, Lutana Kokama conseguiu elaborar um projeto de moradia para o bairro com a ajuda de outras lideranças. Depois do cadastro das primeiras 200 famílias, veio a decisão favorável da Justiça para os indígenas em 2014 e nasceu o Parque das Tribos.
RECONHECENDO IDENTIDADES
Diferentemente de Lutana Kokama, Shirley Baré só conheceu a trajetória dos seus antepassados quando foi morar no Parque das Tribos. Durante boa parte da infância, Shirley morou em Barcelos, município que fica a 401 km de distância de Manaus. Desde muito cedo, teve um rompimento cultural e perdeu todos os costumes da sua etnia. Aos 18 anos, ao chegar na comunidade, soube da luta dos avós e tios pela resistência, pela educação indígena, pelo resgate da cultura e da língua nheengatú. “Eu só tenho orgulho de saber de onde vim, de quem sou e assim assumir a minha identidade.”
No começo, Shirley Baré se abalava pela pressão por padrões estéticos, pois as pessoas sempre acreditam nos estereótipos do que é ser indígena. “Sofri pelos maus comentários sobre minha aparência, meu cabelo cacheado, e, por mais que eu tenha a minha afirmação identitária, isso gerou um desconforto.” Mas o acolhimento no Parque a ajudou a se reconhecer, e tudo que a colonização causou em sua identidade foi superado. Ela ainda despertou seu dom para pintura e artesanato.
Hoje, Shirley Baré fala de um mundo onde os indígenas são capazes de conquistar o que almejam, têm voz e espaço. “A arte somos nós, pessoas transformadoras que mostram força e resistência, e inspiram outras a terem orgulho de suas trajetórias, não deixando de lado seus costumes.”
TERRITÓRIO NÃO É LIMITE
Se reconhecer não significa estar presa a um território. “O conceito de delimitação dos territórios surgiu do branco, que precisava nos isolar para que não estivéssemos em todos os espaços”, afirma Vanda Witoto, que saiu aos 16 anos de Amaturá, sua cidade natal, a 1.205 km de Manaus. E recebeu um conselho de seu pai: “ele sempre falava que eu seria um grande pássaro e, por isso, não me manteria presa dentro da nossa comunidade”.
Hoje, ela é técnica de enfermagem e uma das principais vozes do ativismo indígena no Brasil. Foi a primeira pessoa vacinada no Amazonas e deu assistência médica para as 700 famílias residentes do Parque das Tribos, no auge da pandemia da COVID-19 em Manaus.
“Nós mulheres indígenas, nossas vozes e nossos corpos sempre estiveram à frente de grandes lutas”, destacou Vanda Witoto. Para ela, a maior luta que enfrentam é pelo direito de existir em seus territórios. O que tem ajudado nisso, acredita, é o acesso dos indígenas à educação e formação política nos últimos 10 anos, que acaba garantindo espiritualidade, biodiversidade, segurança e saúde.
Apesar da imposição de padrões, por parte da sociedade para as populações indígenas que estão na área urbana, existe um grande esforço de não deixar morrer a conexão com a cultura, a língua e o território.
O CAMINHO DE VOLTA
No ambiente universitário, Vanda Witoto se reconectou com o que ela chama de espiritualidade Witoto. Após passar no curso de pedagogia, em 2016, na Universidade Estadual do Amazonas, ela foi questionada pelo seu RANI – Registro Administrativo de Nascimento Indígena. Um documento que comprova perante a lei quem ela é, mas que deixava em branco algumas lacunas extintas pela colonização, como a falta da língua materna.
Não está escrito no RANI que os avós de Vanda Witoto não ensinaram a língua para seus pais por medo do preconceito, por acreditarem que sem falar o Witoto sofreriam menos na cidade. “O caminho de volta que tenho feito, não é um caminho de tentativa de ser como antes, porque isso não é mais possível. Foram muitas perdas.” Vanda busca compreender as violências que seu povo sofreu, o genocídio e a retirada da língua.
Ela tem viajado para Amaturá, onde sua avó e bisavó, Assuncion e Tereza, criaram a comunidade Colônia Território Witoto, e tenta ressignificar pelas memórias dos seus pais e familiares a vivência dos Witoto. Nesse trajeto rico, Vanda se encontra com a espiritualidade, o alimento sagrado, os cantos, as danças e a língua do seu povo.
Retornar é necessário para que eles consigam seguir em frente, para que não permitam mais que a sociedade os negue. “Porque o tempo de perseguição, de genocídio e da escravidão do nosso povo não simboliza mais a morte e sim a possibilidade de existir hoje”, afirma. Todo esse aprendizado é repassado para a juventude e é o que faz valer a pena. “Quando as crianças Witoto cantam em sua língua é uma maneira de dizer que estamos vivos.”
Os indígenas – complementa Vanda Witoto – assumiram a responsabilidade de proteger os rios e a floresta. “Mas espero que um dia a humanidade possa dividi-la conosco, porque esse fardo é muito pesado para nós.”
RUARINGO: MULHERES QUE CANTAM
Ser indígena hoje no Brasil é estar em uma grande caminhada, que reúne vários povos e ganha continuidade com as novas gerações. “Eu me sinto atravessada por todas as mulheres negras, indígenas, quilombolas, periféricas, ribeirinhas, pescadoras e marisqueiras. Me sinto parte da história de cada uma”, comenta Vanda Witoto.
O trabalho das mulheres originárias é pelo fortalecimento de suas vozes, de seus saberes, de seus corpos e de suas artes. O grupo Ruaringo, que significa “mulheres que cantam”, é formado por indígenas das etnias Witoto, Tariana e Tikuna. Elas dançam e cantam lamentos, alegrias, sonhos, vida ou morte. E é também uma fonte de renda para as moradoras da comunidade.
As apresentações culturais e exposições de artesanatos são realizadas, geralmente, no espaço de convivência Maloca dos Povos Indígenas, criado recentemente no Parque das Tribos. Lá, elas vendem adereços feitos de sementes, como colares e brincos, roupas com pinturas de grafismos indígenas, cocares de penas – que na cultura deles são usados durante rituais e representam as lideranças -, bolsas e itens decorativos.
Leia mais: Marco temporal afeta lutas de mulheres indígenas
Em sete anos de existência, o Parque das Tribos se tornou muito mais que uma comunidade multiétnica: é um lugar seguro para praticar a cultura indígena e quebrar paradigmas. As pessoas que visitam o bairro achando que vão ver indígenas em malocas, se estiverem dispostas, saem aprendendo a enxergar outros valores. “Maloca não existe, mas vai até a casa de um deles e abre a geladeira pra ver se não tem um chibé, vai no quintal e verifica se não vai ter um fogo”, cita Cláudia Baré os exemplos de costumes culturais. O chibé é uma comida indígena muito comum no Amazonas, feita de caldo de farinha, que serve para acompanhar o peixe.
Os saberes estão ali vivos. “Aqui a gente vê que essa memória é real. Ela não existe só na história”, afirma Lutana Kokama, cacica geral da comunidade.