A militarização
Se o mundo vai tão mal, é também e sobretudo porque tem armamentos em excesso. Nossa economia é militarizada, nossa visão de mundo é militarizada. “Nossa casa está pegando fogo”, (…) mas ainda temos o suficiente para fabricar mísseis, vender caças Rafales, …. No nosso entorno mais próximo, ninguém se manifesta usando o slogan “não toque no meu drone”! Ninguém está pedindo uma desaceleração na corrida armamentista, na qual as potências de hoje estão engajadas.
Essa atitude anda de mãos dadas com o analfabetismo estratégico que causa estragos em todos os níveis. Um número pode ser citado como exemplo: de acordo com uma pesquisa publicada na mídia The Conversation, em junho de 2018, trinta por cento (30%) dos nossos compatriotas não sabem que vivem em um país que possui armas nucleares. A culpa não é do cidadão comum, mesmo que ele ou ela tenda a confundir as iniciativas de desmilitarização com o antimilitarismo. Entre a classe política, a ignorância também é desconcertante. Lembremo-nos: durante um debate transmitido em 2007, dois presidenciáveis foram incapazes de citar o número e a localização dos nossos SNA (Submarinos Nucleares de Ataque) e dos nossos SNLE (Lançadores de Mísseis Nucleares Submarinos).
Quando ocorrerá o declínio militar?
Em um momento no qual o nosso modo de vida está sendo questionado, a redução dos gastos militares não representa uma utopia ou um pensamento ingênuo. Nós somos bem conscientes de que um Estado pode falir (a União Soviética, na época) na tentativa desesperada de permanecer na corrida. O atual rearmamento representa, portanto, uma ameaça em si.
Os dividendos da paz
Enquanto os gastos militares globais dobraram desde 2000, enquanto Hollywood sugere o uso de armas nucleares para nos salvar em caso da queda de um cometa, ou para desviá-lo de sua trajetória (ver filmes “Impacto Profundo”, de 1998, ou “Não Olhe Para Cima”), cada nação pode encontrar interesse em destinar seus recursos (e know-how) para a saúde e a redução da pobreza. É de acordo com essa lógica que 50 ganhadores do Prêmio Nobel lançaram um apelo dirigido aos Estados-membros da ONU para que concordem em reduzir suas despesas militares em 2% ao ano (e) por 5 anos. Esta iniciativa ressoa uma campanha lançada pela ONG Frères des Hommes há mais de dez anos. Lançada na Índia e no Paquistão, a Opção 10% tinha o slogan “Desarmamento para combater a pobreza”, e defendia que os trabalhadores informais pudessem se beneficiar da previdência social.
No apelo atual, espera-se que metade do dinheiro economizado seja reunido em um fundo mundial – administrado pela ONU – destinado a enfrentar os desafios globais das alterações climáticas, das pandemias e da pobreza extrema. A outra metade desse valor permaneceria à disposição da nação. Esses dividendos da paz podem chegar a US$ 1 trilhão até 2030. O apelo foi retransmitido por alguns órgãos de imprensa, aqui e ali, inclusive na França. Uma petição está circulando.
É certo que a redução de 2% recomendada nesse apelo contraria o compromisso assumido pelos Aliados da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a partir de 2014, de aumentar os seus “esforços de defesa” para 2% do PIB (produto interno bruto) e de dedicar 20% das despesas de capital aos equipamentos (militares). Mas essa rejeição ao rigor da aliança atlântica seria uma dádiva para os 27 membros da UE (União Europeia), cujo trabalho é definir uma política externa que seja diferente daquela da OTAN!
Fazendo a segurança rimar com “Segurança Comum”
Será que podemos convencer nosso povo de que reduzir os próprios gastos militares (e armaduras) reduzirá a animosidade do adversário em potencial e, portanto, reduzirá o risco de conflito? De qualquer forma, qualquer líder (e, além disso, qualquer presidenciável) que esteja comprometido com os valores da esquerda e da ecologia pode apostar na segurança. Com a condição de que isso não resulte em arruinar a si mesmo e aos outros. Sem se arruinar primeiro, porque é melhor prevenir do que remediar. E sem arruinar os outros, porque reforçar a própria segurança à custa dos outros é a pior escolha: é um erro estratégico. Já uma postura inversa, a de ganhar ou ganhar, é plausível: os 57 Estados-membros da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) (já) assumiram esse compromisso.
Nem todos estão convencidos de que é possível garantir mais paz com menos armas. Isso explica por que os gastos militares estão explodindo aqui e ali, e não apenas no Marrocos ou na Argélia. No entanto, o Chile e a Coreia do Sul realocaram parte de seus gastos militares para combater a pandemia. E na Europa de 2022? Em vez de aplicar nossos padrões de guerra fria, mesmo que os cenários possam se assemelhar muito, seria melhor retornar aos princípios da “segurança comum” definidos dentro da Comission Palme nos anos 80.
Enfim, é urgente que nos armemos…. intelectualmente, para reafirmar que a segurança só faz sentido se garantir a segurança para todos. As únicas conquistas que contam são as conquistas que não empobrecem ninguém. E as únicas vitórias que são merecidas são aquelas que não humilham ninguém. Não é moral, é política.
Como garantir mais paz (no plural) e mais segurança tendo menos armas não é um enigma para os economistas consternados. Essa questão fundamental e básica deve permear o pensamento estratégico de todos. Os políticos de direita e de extrema-direita alegam que a insegurança, alimentada por eles mesmos, exigiria um excedente de equipamentos e, consequentemente, o congelamento dos direitos sociais, a destruição planejada de nossos serviços públicos. É justo! Mas às vezes é possível solucionar as questões militares na democracia. E uma consulta pública sobre o advento de novos sistemas de armas, o lançamento de um porta-aviões ou a designação dos destinatários de nossa armada deviam constar da lista de um Referendo de Iniciativa Cidadã (RIC). Além disso, entre nossos vizinhos suíços, o povo pôde votar em um referendo contra a aquisição de um novo avião de combate – isso ocorreu durante uma “votação”, como dizem, em 2014, contra o Gripen sueco.
Os meros mortais tendem a acreditar que qualquer movimento em favor do desarmamento deve necessariamente ser acompanhado por um gesto recíproco por parte de seu adversário ou do suposto adversário. Mas a diplomacia tem suas razões… e muitas iniciativas foram tomadas unilateralmente, inclusive pela França, quando (por exemplo) o presidente Chirac decidiu renunciar aos mísseis balísticos de Albion Plateau.
Nossa bússola estratégica
Então, se concordarmos que precisamos definir a segurança em função das ameaças do século 21, como enfatizou Lester Brown; se concordarmos em admitir que erramos ao ver a segurança sob um ângulo puramente militar; se reconhecermos que a explosão populacional, a fome, a limitação de recursos e o abuso ambiental e/ou a questão da água não são “riscos de segunda ordem” (para usar uma expressão do ex-chanceler Willy Brandt de 1986).
Bem, se concordarmos com esses pontos, cabe a nós mudar de estratégia ou melhor substituir nosso GPS. E convém a nós também definir uma nova diplomacia e desenvolver outro dispositivo de segurança usando um software que não seja o do velho mundo. Mesmo que estejamos atravessando uma zona de turbulência geopolítica, com um horizonte assombrado pelos riscos do colapso do Império estadunidense, e por suas repercussões, cabe a nós reconfigurar nossa bússola estratégica!
De qualquer forma, declinar os benefícios de uma política de declínio militar seria um desafio em um bom momento, pois o único setor que os autores de “Os limites do crescimento”, do relatório do Clube de Roma, de 1972, preferiram saltar foi o setor militar. E isso foi há 50 anos.