POR LÍGIA KLOSTER APEL, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI NORTE 1
Na primeira semana de fevereiro, mais uma notícia crime contra os povos indígenas que vivem em isolamento voluntário tomou conta da imprensa e se somou a tantas outras que revelam as diversas situações de violência contra grupos da sociedade brasileira, por parte do governo federal e dos órgaos públicos de Estado que estão sob seu comando.
Sites de jornalismo investigativo, entre eles a reportagem de Tatiana Merlino no site O Joio e o Trigo, vêm divulgando, nos últimos dias, a “vista grossa” que a Fundação Nacional do Índio (Funai) fez de três relatórios técnicos das expedições realizadas em 2021 pela Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus, instância local da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC) da Funai, situada em Lábrea, no Amazonas, nas imediações do rio Mamoriá.
Os relatórios confirmam a existência, na região sul do Amazonas, mais especificamente no município de Labrea, de um novo grupo de indígenas que preferem viver distanciados da sociedade envolvente – ou seja, a sociedade não indígena – preservando seu modo de vida, sua cultura, hábitos e a relação que têm com a natureza. Um direito que lhes cabe e que tem sua proteção garantida pela Constituição brasileira e como dever do Estado Democrático de Direito brasileiro.
No entanto, o que se viu nos notíciários online dos primeiros dias de fevereiro foi uma situação de completo descaso, negligência e omissão deliberada diante de um fato que, para qualquer nação, seria motivo de orgulho, conforme indica o depoimento da antropóloga Karen Shiratori, pesquisadora do Centro de Estudos Ameríndios da USP e pós-doutoranda do departamento de Antropologia da USP, na reportagem de Merlino: “a notícia é super importante porque prova que povos que a gente considerava que pudessem ter sido extintos certamente resistem”, referindo-se à preferência que esses indígenas têm pelo distanciamento da “civilização”, da “sociedade envolvente” e suas mazelas.
“[Os isolados] estão expostos à doenças contagiosas e a confrontos com terceiros. É urgentíssima a adoção de medidas de proteção pelo governo. Estamos falando do óbvio, da necessidade de afastar a ocorrência de um possível genocídio”
A EAPIL busca providências
Diante do absurdo da omissão e descaso, a Equipe de Apoio aos Povos Indígenas Livres (Eapil), do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), encaminhou um ofício ao Ministério Público Federal (MPF) no dia 2 de fevereiro, solicitando providências para que a Funai dê respostas emergenciais e inicie imediatamente os processos que viabilizem a proteção do povo isolado identificado.
“Estamos diante de uma escandalosa situação, com o governo federal advogando abertamente contra os direitos dos povos originários e se negando a desempenhar seu dever constitucional de demarcar e proteger as terras indígenas” diz Francisco Guenter Loebens, da Eapil/Cimi, indignado e constatando que o governo “só faz a contragosto e quando é obrigado pela Justiça. E, ainda assim, buscando subterfúgios”.
É com preocupação que Guenter alerta para essa posição do governo federal. Afinal, medidas de proteção básicas, como a instalação de Bases de Vigilância e as Portarias de Restrição de Uso do Território, são estratégias tomadas há anos pelas Frentes de Proteção da Coordenação dos Povos Isolados da Funai, justamente porque conseguem diminuir consideravelmente as ameaças de contágio e/ou de conflitos ocasionados pelo contato com outras pessoas. “Nesse caso, se trata de uma questão de vida ou morte. Estão expostos à doenças contagiosas e a confrontos com terceiros. Quadro piorado pela pandemia, que não está controlada, e a cobertura vacinal nas populações próximas não está como deveria ser. É urgentíssima a adoção de medidas de proteção pelo governo. Estamos falando do óbvio, da necessidade de afastar a ocorrência de um possível genocídio”, alerta.
A assessora jurídica do Cimi Regional Norte 1, Chantelle Teixeira, também constata que a atitude de omissão do governo federal desconsidera a própria existência dessas populações e, portanto, as ameaças latentes que os colocam em risco. “Nesse último governo federal, a gente tem visto uma padronização na implementação das políticas para essas populações que desconsideram a diversidade e inclusive desconsideram a existência desses grupos tão específicos, mas ao mesmo tempo tão vulneráveis como são os grupos em isolamento voluntário”.
A advogada diz que a denuncia feita ao MPF chama a atenção para, exatamente, esse ponto da “omissão do governo federal em relação às medidas de proteção que devem ser adotadas para com o novo povo identificado”, pois, mesmo sendo oficiais, os relatórios da equipe da Frente de Proteção de Lábrea, que é instância da própria Funai, são ignorados pela direção do órgão. “Esses relatórios informam e qualificam a confirmação da existência do novo grupo e solicitam que medidas protetivas sejam adotadas urgentemente pela própria Funai, no sentido de proteger o território onde esse povo habita”.
Da mesma forma que os relatórios confirmam que há isolados no Mamoriá, os documentos jornalísticos comprovam a realidade de vulnerabilidade que se encontram, por isso acompanham a denúncia ao MPF e, também, informam a sociedade sobre a gravidade da situação, diz Chantelle.
“Os documentos jornalísticos que anexamos à denúncia evidenciam a situação e alertam para o risco iminente de genocídio a esse povo extremamente vulnerável que, pela sua escolha em viver distanciado do mundo não indígena, não consegue denunciar”, explica a jurista. “Tem uma grande importância a sociedade civil organizada divulgar reivindicando que medidas do governo sejam adotadas de maneira urgente”.
Para o MPF, “de fato há muitos indícios de grande omissão, porque desde o ano passado há já relatórios encaminhados pela equipe local da Frente de Proteção, sem nenhuma medida tomada”
A posição do MPF do Amazonas
Pelo MPF do Amazonas, o procurador da República Fernando Merloto Soave informa que, tão logo tomou conhecimento do caso, passou a investigar a situação e verificou que “de fato há muitos indícios de grande omissão, porque desde o ano passado há já relatórios encaminhados pela equipe local da Frente de Proteção, sem nenhuma medida tomada”.
Configurando essa omissão como crime de improbidade administrativa, Fernando explica que “deve ser enviado também cópia para investigação de crime, improbidade nesse caso, além das medidas para garantir o território e a proteção local”. O procurador informa que o MPF concedeu de 48 a 72 horas, a contar do último dia 10 de fevereiro, como prazo para a Funai explicar a ausência de providências diante dos relatórios apresentados. “Estamos aguardando a informação da Funai. Não tendo essa informação ou sendo negativa, provavelmente, o MPF deve adotar alguma medida, seja recomendação ou judicialização nesses padrões”.
Em relação às denúncias trazidas pela imprensa, Merloto enfatiza a importância da sociedade civil “falar pelos isolados”, uma vez que por sua condição de isolamento não conseguem falar por si. “Nesse contexto dos povos de recente contato, especialmente de isolamento voluntário, é muito importante a participação das entidades indigenistas, das lideranças indígenas, do movimento social, porque eles não podem falar por si mesmos. Houve uma escolha histórica deles, em face às violações sofridas, de permanecerem afastados da sociedade envolvente e [por isso] não podem falar, o que eles podem é só se afastar”, avalia.
Reforçando a necessária aliança dos órgãos públicos, em especial do MPF, com a sociedade civil, destacando a eficiência do trabalho conjunto quando se trata da defesa dos povos isolados, o jurista diz que “é essencial essa união da sociedade civil com os órgãos públicos de controle, como o Ministério Público, no acompanhamento das políticas indigenistas para esses povos que sofrem, inclusive, riscos de genocídio, de extinção, pois geralmente são grupos pequenos, mas que podem ter diversas ameaças rondando suas vidas”.
Destacando que são pessoas com elementos culturais que integram e formam a identidade cultural brasileira, Merloto evidencia que esses povos “possuem elementos culturais, elementos históricos valiosíssimos para a nossa sociedade. Temos o dever de protegê-los, de defendê-los no seu direito de viver como acham e acreditam ser correto. Diante de tantas atrocidades que vivem [os povos originários] é direito deles optarem por assim viver. Devemos respeitar”.
A cronologia dos documentos
A reportagem de O Joio e O Trigo, que acompanha o ofício enviado ao MPF, traz a cronologia dos relatórios enviados à Funai de Brasília sobre as expedições feitas pela Frente de Proteção Etnoambiental Madeira Purus, instância local da CGIIRC da Funai em Lábrea.
De acordo com essa cronologia, em setembro de 2021, o primeiro relatório refere-se à expedição realizada nas matas da Reserva Extrativista do Médio Purus. Nele, a equipe registra os diversos indícios encontrados, como pegadas de caçadores e quebradas de vegetação que se diferenciam das comuns, e confirma a existência de um novo grupo de indígenas isolados vivendo naquelas matas que pertencem à Resex Médio Purus. No documento, tem destaque a solicitação de “instalação de bases de proteção e a restrição de uso do território” em caráter emergencial pela vulnerabilidade que se encontram as pessoas indígenas desse grupo. A Funai não apresentou retorno à equipe.
Em outubro, um segundo relatório “sobre outra expedição de monitoramento aos indígenas da região” foi emitido com o pedido, em “caráter emergencial”, da instalação da base de proteção, da restrição de uso do território e, dessa vez com a preocupação da pandemia, incluindo barreira sanitária em articulação com o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Médio Purus. Também não houve retorno à equipe pela Funai.
A direção da Funai recebeu, em dezembro de 2021, um terceiro documento da equipe que reitera a informação técnica, portanto verídica, de identificação do novo grupo indígena isolado, batizado pela Coordenação “preliminarmente de Isolados do Mamoriá Grande”, com movimentação nas imediações do interflúvio dos médio rios Juruá e Purus.
Além de reiterar a identificação do grupo, esse terceiro documento informa o planejamento de expedições de monitoramento a serem realizadas no território e reforça a emergência de implantação dos Postos de Controle de Acesso. E mais, ressalta em seus objetivos “a necessária proteção das comunidades tradicionais residentes na Resex Médio Purus e a demarcação da Terra Indígena Alto Hahabiri para uso exclusivo dos povos indígenas isolados e de recente contato da referida região”. A FPE Madeira Purus continuou sem retorno.
O município de Lábrea tem registrado um aumento das invasões a territórios indígenas e tradicionais e foi um dos que registrou maior número de focos de incêndio em 2021, o que coloca a região em situação de alerta – e agora, com a identificação do novo grupo de isolados, em alerta máximo
O impacto gerado na sociedade
O silêncio da Funai é “simplesmente chocante” e preocupa pessoas e organizações indígenas e indigenistas, antropólogos, juristas e, inclusive, ex-servidores da Funai, como é o caso da ex-presidente do órgão entre 2013 e 2014, Maria Augusta Assirati, que manifestou sua indignação à reportagem de O Joio e o Trigo: “é simplesmente chocante saber que a Funai não está tomando nenhuma medida para fazer proteção da vida desses grupos, chocante saber que tem tido essa ação absolutamente descompromissada e que tenha simplesmente deixando de cumprir suas atribuições legais e venha fazendo com que o Estado deixe de proteger povos em situação de isolamento voluntário no Brasil”.
Em carta de repúdio, no último dia 9, a Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (FOCIMP), que representa 18 povos indígenas da região da bacia do rio Purus, sul do Amazonas, que vivem em cerca de 250 comunidades das Terras Indígenas nos municípios de Beruri, Tapauá, Itamarati, Camutama, Lábrea, Pauini e Boca do Acre, expõe sua indignação com mais essa comprovação de descaso e negligência de quem tem a obrigação ética e constitucional de proteger os povos originários e seus modos de vida. “É preocupante e revoltante a morosidade do setor de índios isolados e de recente contato da Funai de Brasília em não tomar nenhuma providência concreta há mais de cinco meses, após a confirmação oficial” da existência de mais esse grupo de indígenas em isolamento voluntário”.
A FOCIMP denuncia na carta, também, as diversas invasões que saqueiam os recursos naturais e os impactos dos grandes empreendimentos que chegam em seus territórios. Há um enfrentamento a esse cenário pelos indígenas, mas as dificuldades para conter a situação são muito grandes devido à ausência do Estado. “Nossa região tem sido alvo de madeireiros, grileiros, caçadores ilegais e temos resistido e lutado contra grandes empreendimentos que vêm invadindo os territórios e destruindo rios, lagos, igarapés e tem colocado nossa existência constantemente em risco”, denuncia a carta.
Segundo Chantelle Teixeira, o município de Lábrea “tem registrado um aumento das invasões a territórios indígenas e tradicionais, de exploração de madeira e, no ano de 2021, junto com a cidade de Apuí, que fica localizada nessa mesma região, foi um dos municípios do Amazonas que registrou maior número de focos de incêndio”, o que coloca a região em situação de alerta – e agora, com a identificação do novo grupo de isolados, em alerta máximo. Para Teixeira, é esse quadro “que torna necessário e urgente que medidas sejam adotadas no sentido de evitar que essas incidências, que esses problemas aconteçam no território desse povo, o que poderia levar inclusive à extinção dele, ao seu genocídio”, afirma a assessora.
A carta da FOCIMP evidencia essa situação atestando o alto índice de desmatamento e revelando que a região é campeã, também, de violência no campo. “A região sul está entre as de maiores índices de desmatamento e violência no campo também entre nosso vizinhos extrativistas, com quem juntos temos lutado pela defesa de nossos territórios e da floresta, de nossas vidas”.
O cacique Zé Bagaja Apurinã, Coordenador Executivo da FOCIMP, revoltado com a injustiça que sofrem, afirma que os direitos constitucionais dos povos indígenas são originários. “Por onde andamos fazemos nossas casas, nossos roçados, pescamos, caçamos, por onde vivemos e continuaremos vivendo, sempre defendendo nossos territórios e a vida de nossos parentes autônomos”. Ele assevera que o Estado brasileiro “deve exercer o seu papel com o devido respeito à Constituição e às nossas vidas”. Respeito esse que deve ser redobrado, diz o cacique, durante a pandemia. “Se nesse momento de pandemia, [os isolados] tiverem contato com a gente, vai ter extermínio daquele grupo”, alerta.
Se posicionando na denúncia e na ação em defesa do novo grupo de índios isolados, mas também de toda a população indígena contatada e ribeirinha da região de Lábrea, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) é convicta de que “uma articulação ampla de diversos órgãos, o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Ministério Público, a Coiab, o Cimi, organizações indígenas e indigenistas, defensores de direitos, sociedade civil, todo mundo deve somar para averiguar a omissão dessa gestão da Funai. Exercer uma pressão política forte para que ela cumpra com sua função, com sua missão institucional e que tome as devidas medidas para que uma proteção efetiva seja garantida para esse povo, especialmente sanitárias, com todas as populações próximas”, afirmou Luciano Pohl, da Gerência de Povos Indígenas Isolados da Coiab.