Artigo publicado originalmente no Monitor do Oriente.
O presidente da república, Jair Bolsonaro, agenda visita ao Kremlin em plena crise da Ucrânia e dos acordos securitários da OTAN no espaço pós-soviético. Como afirmei recentemente em entrevista para emissora de rádio, mesmo os mais execráveis governos são capazes de tomar medidas aparentemente corretas, ainda que por motivos medíocres. A Guerra das Malvinas em 1982 é o exemplo mais extremado que vimos na América Latina. E agora, no último ano de seu desgoverno, apenas supor que Bolsonaro estaria fazendo uma política externa altiva não passa de perigosa ingenuidade.
A experiência de poder da extrema direita, na versão cucaracha do século XXI, repetiu a bobagem da “guerra cultural” e alinhou-se de forma incondicional à administração republicana de Donald Trump. Na sua primeira viagem para os EUA, o então chanceler Ernesto Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro (aquele que defende o apartheid na Palestina Ocupada) protagonizaram cenas do mais absoluto servilismo, oferecendo tudo sem nenhum princípio ou sentido de reciprocidade. Logo, a visita do ex-capitão de artilharia (praticamente expulso do Exército de Caxias e outros escravagistas) representa mais para sua política doméstica e para um gesto de lealdade ao trumpismo do que qualquer outra motivação. A sandice compartilha a viagem tanto para Moscou como para Budapeste.
Essa agenda teria duas origens. Uma estaria montada pelo ex-ministro de Relações Exteriores. “Internamente, porém, a condução da política externa é alvo de críticos da militância conservadora desde a saída do ex-ministro Ernesto Araújo do Itamaraty. No grupo considerado mais radical, a crítica é que o atual chanceler Carlos França tenta afastar o Brasil de nações cujos dirigentes têm pautas semelhantes. Para aliados de Ernesto, a viagem de Bolsonaro à Rússia e à Hungria poderá ajudar a conter a insatisfação se for bem executada. Eles lembram que essas visitas foram agendadas na gestão do ex-chanceler, mas tiveram de ser canceladas devido à pandemia.”
Já a Hungria estaria na rota a pedido de outro controverso personagem. Segundo foi noticiado:
“A viagem para Budapeste foi incluída nesta missão internacional a pedido de Filipe Martins, assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, segundo informações da coluna de Igor Gadelha, no site Metrópoles. Martins é um dos seguidores do falecido escritor extremista Olavo de Carvalho a integrar o governo de Bolsonaro. A decisão do Itamaraty sinaliza apoio ao presidente ultradireitista às vésperas das eleições da Hungria, marcadas para o dia 3 de abril.”
Infelizmente, a capacidade de promover equívocos supera o que podemos imaginar. Em plena crise entre OTAN e a agenda securitária eurasiática e pós-soviética, os “estrategistas conservadores” do Itamaraty também previam visitar a Polônia, aliada fundamental da União Europeia, Aliança Atlântica e Kiev. Poderíamos imaginar que se trataria de uma manobra diplomática de acercar-se aos aliados da periferia da Europa, como um “gesto de pinça”, de modo a oferecer saídas e conversações. Nada disso. É a insistente “agenda de costumes”, como reforço da “guerra cultural”.
A meta é dar vazão às convocatórias de Trump, do chamado Consenso de Genebra, ou de Viktor Órban e a Cúpula Demográfica de Budapeste. Por isso que se não fosse a absurda viagem à Nova York, o impagável Secretário Especial da Cultura, Mário Frias, estaria acompanhado de sua própria comitiva para essas visitas. Até a finalização deste texto, a agenda também incluía a Polônia e as conversas com o presidente polonês Andrzej Duda, líder do Partido Lei e Justiça (PiS) e mais uma estrela ascendente do conservadorismo europeu. Só faltava visitar a Romênia e as instalações militares da OTAN, ou mesmo a Bielorússia com a primeira linha de tropas russas. Enfim, o descompasso entre o Sistema Internacional e a internacionalização da sandice avança a galope da errática “diplomacia presidencial” de Bolsonaro.
E as forças armadas brasileiras?
Nosso país perdeu após o golpe com apelido de impeachment, em abril de 2016, a condição de ser um agente diplomático de primeira grandeza. Na segunda divisão, com o empenho militar e a Estratégia Nacional de Defesa ocorreu o mesmo. Todo o esforço de elaborar o Livro Branco na primeira década do século foi ignorado ao acertar uma posição de pretendente a membro da OCDE e aliado oficial Extra-OTAN.
Percebam. Abrimos mão da liderança continental dentro do sistema iniciado com o Mercosul, passando pela Unasul e a Celac, possibilidades essas que contavam com uma arquitetura financeira própria – o Banco do Sul – e uma mentalidade anti-imperialista na Escola de Defesa Sul-Americana, então sediada no Equador. Estas capacidades, se bem desenvolvidas, além de integrar as cadeias de valor e indústrias estratégicas – como os clusters de óleo e gás, indústria pesada, engenharia naval e segurança, defesa e material bélico – poderiam gerar condições de barganha e negociação para uma Zona de fato desmilitarizada no Atlântico Sul e compras de envergadura, com transferência de tecnologia embarcada, vindas de países produtores da indústria da defesa altamente avançada, como Rússia, China e Irã.
O vice-presidente Hamilton Mourão – general de quatro estrelas e supostamente operacional – afirma com o tom insosso de sempre:
“Na América Latina são poucos os países que [compram material bélico russo], Venezuela e Peru, talvez. Mas a razão principal é a condição do Brasil de parceiro preferencial extra-Otan. Sinceramente, acho difícil. Não vejo nenhuma simpatia dos meios militares brasileiros a qualquer acordo nesse sentido.”
Nossa primeira compra se deu em novembro de 2008, 12 helicópteros de combate russos. Poderíamos ter comprado baterias antiaéreas russas, justamente as que melhor responderiam a caças desta mesma origem. As negociações começaram em 2009 e, ainda em 2013, se arrastavam. Ao mesmo tempo, o Partido Democrata tenta reverter o status do Brasil de “prioritário”, além da Aliança do Atlântico Norte. Tal “promoção” foi feita por Trump em julho de 2019, fruto possivelmente do servilismo diplomático do país com Ernesto Araújo como chanceler e Olavo de Carvalho no papel de ideólogo.
Um erro duplo
Infelizmente, os dois movimentos acima são erros crassos na política externa brasileira. No conflito do espaço pós-soviético, o Brasil não entra para aprimorar saídas diplomáticas, mas como arroz de festa em um discurso patético que só serve para constranger minorias e animar as piores franjas dos eleitorados dos países envolvidos. Na temática de segurança e defesa, ao ser um aliado prioritário extra-OTAN, perdemos espaço de manobra e deixamos de criar um polo de poder Sul-Sul, a partir da América Latina.
A estupidez é de manual. Ao retomar o “realismo regional”, o desgoverno vê rivais em países vizinhos e “amigos” na superpotência e seus vassalos. Repete-se, assim, o pior do colonialismo interno, de uma mediocridade intelectual tão rebaixada quanto às palestras de “geopolítica racialmente determinista”, que o vice-presidente costumava proferir quando estava na campanha de desestabilização do governo reeleito, em 2014.
A política também é a arte de ver a floresta e não os galhos das árvores que estejam mais evidentes. Mas no caso de Bolsonaro e sua trupe é quase impossível. É como a sentença do Barão de Itararé: “De onde menos se espera, é de onde não sai nada mesmo!”.
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