Por Márcio Pochmann.
A massa insurgente que se alvoroçou em 2013 revelou o quanto a capacidade de alcançar os fins desejados pelo ciclo político da Nova República estava exaurida. Decorridas mais de três décadas, a temporalidade e as circunstâncias históricas que permitiram emergir o regime democrático após 21 anos de autoritarismo tinham se modificado profundamente.
Contribuiu decisivamente para isso o reposicionamento do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho. O retorno ao antigo modelo econômico primário-exportador se tornou possível através da imposição neoliberal que terminou por liquidar as classes sociais estruturadoras da sociedade urbana e industrial*. Não somente a burguesia da manufatura se metamorfoseou em rentista ou maquiladora-comerciante como também a classe média assalariada e o operariado da manufatura se transmutaram na relação débito-crédito para sobreviver.
Não sem motivo, a institucionalidade política e econômica se tornou carcomida, e suas disfuncionalidades foram sendo reveladas pelo descrédito crescente no interior da sociedade. Tanto assim que as jornadas de protestos iniciadas em 2013 podem ser identificadas como marca da inflexão profunda transcorrida no ciclo político da Nova República.
A partir daí, a sucessão de acontecimentos confirmou o esgotamento da institucionalidade política existente. Nas eleições presidenciais de 2014, por exemplo, o candidato derrotado no segundo turno não aceitou o resultado final, interrompendo o pacto constitucional de 1988 que exigia que todos os participantes das eleições deveriam acatar o que as urnas oficialmente revelassem.
Menos de dois anos depois, ao iniciar o segundo ano do segundo mandato presidencial, a presidenta Dilma foi surpreendida pelo movimento golpista da oposição que a derrubou do governo por impeachment em 2016. Nas eleições presidenciais de 2018 – eivadas de arbitrariedades –, o candidato da extrema-direita foi eleito por voto popular, jamais antes visto no Brasil. Este governo se preocupou em configurar outro ciclo político pautado pelo mandonismo, clientelismo e neocoronelismo das oligarquias regionais.
Essa tortuosa e intensa trajetória política percorrida nos últimos 10 anos tem sido confusa, se considerarmos a aparente inversão das tradicionais posições ideológicas no tabuleiro da política nacional. Em geral, percebemos que a direita, usualmente conservadora, procurou capturar a posição antissistema que havia sido expressa nas manifestações de 2013 no Brasil, enquanto a esquerda, normalmente renovadora, ocupou-se da defesa do sistema da ordem existente.
A posição antissistema evidenciada pelas forças de direita concedeu vitórias sucessivas nas eleições tanto municipais (2016 e 2020) como presidencial de 2018. A construção do novo modelo político nacional pelos vitoriosos das três últimas eleições tem se dado pela acentuada destruição da ordem passada, demarcado pelo retrocesso em diversas dimensões.
As reformas trabalhista e previdenciária, entre outras, exemplificam o grau de destruição de direitos dos governos que assumem a retórica e a prática do negacionismo ao ciclo político da Nova República. Sem que soubesse colocar algo melhor no lugar, o neoliberalismo ganhou vida própria e avançou rapidamente no desmonte da institucionalidade política existente.
Por outro lado, a esquerda, intérprete antecipada do caos que estaria em curso com a ascensão da direita, assumiu a posição pró-sistema existente. Apegou-se à defesa do passado sem conseguir oferecer algo novo, capaz de permitir o diálogo com a perspectiva antissistema que não seja a explicitação dos erros dos governos da direita.
Com isso, parece desconhecer que a sociedade mudou e o modelo político da Nova República está superado. A insistência na reconfiguração dos fragmentos pró-sistema não deveria deslocar da disputa acirrada em torno da construção do novo ciclo político a temporalidade e as circunstâncias históricas que apontam para o horizonte de expectativas superiores.
A opinião do/a/ autor/a/s não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
—