Por Marco Vasques, para Desacato.info.
ALCENIR
Ele olha para o alto como se estivesse vidrado nas nuvens. Há quem diga que seus olhos estão capturados pela beleza do céu. Assim acontece em dias de azul exuberante, em dias de brancas e esvoaçantes nuvens, em dias nublados e em dias que se insurgem as mais ferozes borrascas. Nada tira o olhar fixo de Alcenir das alturas. O corpo rígido, sem flexibilidade alguma, inclusive nas articulações, caminha pelos bairros da cidade numa aparência fantasmal.
Qualquer vivente que se depare com a travessia diária de Alcenir sente uma provocação estranha, pois é impossível passar ileso pela expressão que o seu caminhar provoca na paisagem acelerada dos dias. Olhar fixo no céu, andar fleumático, óculos de graus tão imensos que apequenam seus olhos negros, lábios carnudos e constituído de uma magreza famélica.
Uma outra curiosidade é que ninguém sabe, ao certo, se ele ouve os ruídos ao seu redor. Ambulâncias perturbadoras e velozes, buzinas frenéticas, falas dos transeuntes, choro de criança, pedido de socorro, estrondo de escapamento de moto, latido de cães, canto de pássaros, enfim, nada é capaz de perturbar a atenção de Alcenir, que, ao que a observação sugere, só tem interesse no firmamento.
Com esse comportamento, tido pelos moradores da cidade como estranho, ele é objeto de muita especulação, calúnia e acusação. Apesar de nunca ter assediado sequer uma mosca, não faltam bocas que o dizem tarado; apesar de não se ter notícia de que tenha roubado algo, muitos o imputam o epíteto de ladrão; apesar de haver nenhum diagnóstico sobre suas faculdades mentais, por outro tanto é tido como louco; apesar de nunca ter pedido um copo de água a ninguém, há quem o insulte de pedinte errante; apesar de ninguém saber ou ter visto ele cometer algum ato violento, tem quem lhe julgue um assassino contumaz; ainda que nunca se tenha visto ele bebendo ou usando qualquer outro tipo de entorpecente, muitos bradam que se trata de um louco paralisado pelo uso excessivo de drogas.
E foi assim que Alcenir, uma incógnita que atravessava a vida indiferente a tudo e a todos, apareceu nas capas dos jornais locais. A manchete, que estampava uma bola de fogo correndo na escuridão, dizia apenas que Alcenir do Anjos, de procedência desconhecida, correu dois quilômetros em chamas em plena madrugada de sábado. Outro jornaleco, que nada sabia sobre Alcenir, dizia que o homem incinerado corria pelas ruas feito cometa. Até hoje não se sabe se alguma face chorou pela morte do solitário desventurado. Tampouco alguém foi acusado, apesar das filmagens e fotos dos incendiários grassarem nas redes sociais, de atear fogo no firmamento.
MARUCIA E ELDO
É pelos olhos que a música de Marucia e Eldo expressam aflições. A verdade é crua e nua. Os dois idosos nada sabem de melodia, ritmo e harmonia. Nunca aprenderam de fato a tocar um único instrumento musical e, ao que parece, não fazem questão alguma de criar engodo aos passantes do centro da cidade.
Ela, com um reco-reco nas mãos, ele, com uma flauta colada nos lábios, dançam tão desajeitados quanto os ruídos que emitem. São magros, maltratados pelo tempo, têm peles enrugadas a não poder mais, poucos dentes e, ainda assim, as faces são constituídas de sorrisos capazes de esfaquear o coração de quem encare ambos nos olhos. É a poesia da mais pura miséria a imagem de Marucia e Eldo arranhando a existência sob o sol escaldante da cidade. É o espetáculo do desespero humano levado ao paroxismo.
E a pequena cena fica ainda mais trágica, mais humana, quando Eldo olha para Marucia com ternura, e ela retribui com feição amorosa. O amor e a cumplicidade entre as duas criaturas são um soco violento nas fisionomias bem vestidas e perfumadas que ignoram as duas vidas gritando pela vida.
Marucia e Eldo nunca souberam de Ulisses e Penélope ou de Dom Quixote e Dulcinéia. Contudo, a troca de olhares, os gestos dirigidos uma ao outro e o sorriso cúmplice trocado quando alguém atira um nota, ainda que de pouco valor, no chapéu que fica aos pés envelhecidos de Marucia, são a carnação de amor cevado nas impossibilidades.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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