“A estupidez é um inimigo mais perigoso do que o mal. Diferente da estupidez, o mal tem as sementes da sua própria destruição”. A Teoria da Estupidez, descrita pelo teólogo, pastor e membro da resistência anti-nazista, Dietrich Bonhoeffer, explicaria perfeitamente o Brasil atual: a estupidez seria um fenômeno que está na raiz de todos os problemas. Diferente da canalhice e do mal-intencionado, a estupidez não é uma falha no caráter ou súbita suspensão da razão: é uma categoria sócio-psicológica, bem objetiva, com origens no funcionamento heurístico da nossa mente, sempre em busca de atalhos por meio de vieses cognitivos. E de todos os vieses, o efeito de rebanho é o mais proeminente. Por isso, a estupidez é orgulhosa de si mesma: tem a chancela do grupo, da “maioria”. Para Bonhoeffer, conhecer a natureza da estupidez é urgente porque, ao contrário do mal, contra a estupidez não temos defesa.
Em postagem anterior contávamos uma pequena história descrita pelo neurologista inglês Oliver Sacks: como foi a recepção do discurso televisivo do presidente dos EUA numa audiência formada por pacientes de um hospital psiquiátrico. Além de um ex-ator canastrão da fase áurea de Hollywood, como político Reagan era considerado um grande comunicador.
Os pacientes, com transtornos gerais de esquizofrenia, possuíam dois tipos e disfunção cognitiva: afasia global (incapazes de compreender os sentidos das palavras em seu sentido literal se apegavam aos aspectos não verbais do discurso) e agnosia tonal (incapazes de compreender a expressividade da comunicação, apegavam-se à linguagem na sua forma literal, puramente semântico.
O resultado é que Reagan não conseguiu persuadir aquele pequeno público: se sentiram ultrajados, muitas vezes explodindo em risos e escárnio: a afasia e agnosia ajudou-os a perceber que ou a lógica discursiva não levava a nenhuma conclusão ou sentiam uma desconexão entre a expressividade do presidente com seus sentimentos – clique aqui.
Enquanto as pessoas “normais” o consideravam um comunicador persuasivo, aquele grupo esquizoide e com dificuldades cognitivas viram em Reagan apenas um mal ator reciclado pela política. Como explicar?
O teólogo, pastor e membro da resistência alemã anti-nazista, Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), certamente poderá nos ajudar. Opondo-se à onda de evangélicos que aderiam à ascensão do nazismo, Bonhoeffer começou a incomodar ao proferir uma palestra no rádio onde criticava a deificação de líderes, razão pela qual a transmissão foi imediatamente interrompida.
“A estupidez é um inimigo mais perigoso do bem do que o mal”, escreveu o teólogo no livro “Resistência e Indignação: cartas e notas na prisão”. Dez anos depois da ascensão de Adolf Hitler ao poder supremo, Bonhoeffer pagou com sangue sua resistência: foi enforcado em um campo de concentração por soldados da SS.
O tolo e o canalha
Para ele, apenas uma coisa explicava aqueles tempos sombrios de guerra total na Europa e um regime totalitário controlando o país: a estupidez.
Contra a estupidez não temos defesa. Nem os protestos nem a força podem afetá-lo. O raciocínio é inútil. Fatos que contradizem preconceitos pessoais podem simplesmente ser desacreditados – na verdade, o tolo pode contra-atacar criticando-os e, se forem inegáveis, podem simplesmente ser deixados de lado como exceções triviais. Portanto, o tolo, diferentemente do canalha, está completamente satisfeito consigo mesmo. Na verdade, eles podem facilmente se tornar perigosos, pois não é preciso muito para torná-los agressivos. Por esse motivo, é preciso ter mais cautela do que uma atitude maliciosa. Nunca mais tentaremos persuadir a pessoa estúpida com razões, pois isso é sem sentido e perigoso.
Bonhoeffer acreditava que era urgente entender a natureza da estupidez. Para ele, a estupidez para ser melhor compreendida deve se libertar da crítica moral como fosse um fenômeno apenas explicado pela falta de caráter. Para ele, a estupidez deveria ser considerada uma categoria psico-sociológica. Portanto, objetiva e cientificamente compreensível. Para ele, a natureza da estupidez tem raízes profundas no psiquismo. E depois impulsionada pela mecânica fundamental da experiência humana: o fato de os humanos serem animais sociais. É essa mesma sociabilidade que está na base da estupidez.
Constatamos ainda que as pessoas que se isolaram dos outros ou que vivem na solidão manifestam este defeito com menos frequência do que os indivíduos ou grupos de pessoas inclinadas ou condenadas à sociabilidade. E assim parece que a estupidez é talvez menos um problema psicológico do que sociológico.
Fenômeno de grupo
A estupidez seria um fenômeno de grupo. Um indivíduo pode agir estupidamente, mas isso não tem efeito no todo. No entanto, quando um grupo age de forma estúpida, isso causa um grande impacto no indivíduo, agravando todo o efeito.
O comportamento do rebanho está entre as causas mais importantes da estupidez. Numerosos estudos científicos mostraram como os seres humanos individuais podem ser influenciados pela multidão a adotar posições que vão contra toda a lógica. Em um estudo clássico sobre a conformidade humana, o psicólogo Solomon Asch observou como as pessoas individuais reagem ao grupo majoritário ao seu redor – ASCH, Salomon, “Studies of independence and conformity. A minority of one against a unanimous majority”. Psychological Monographs, 70(9).
Eles estão de acordo com a visão do grupo? Ou eles seguem seu próprio caminho contrário (mas, em última análise, correto)? Os resultados foram espantosos, mas incrivelmente reveladores para mostrar como surge a estupidez. No decorrer dos 12 experimentos sobre conformidade, cerca de 75% dos participantes concordaram com a opinião da maioria pelo menos uma vez.
Bonhoeffer dizia que “o poder de um precisa da estupidez do outro”. O processo em ação aqui não quer dizer que as capacidades humanas particulares, por exemplo, o intelecto, atrofiem ou falhem repentinamente. Em vez disso, parece que, sob o impacto avassalador do poder crescente, os humanos são privados de sua independência interior e, mais ou menos conscientemente, desistem de estabelecer uma posição autônoma em relação às circunstâncias emergentes. “O fato de a pessoa estúpida ser frequentemente teimosa não deve nos cegar para o fato de que ela não é independente”, dizia o teólogo alemão.
As pessoas dominadas pela estupidez agiriam como se estivessem possuídas. Sua parte lógica do cérebro está desligada. Tal pessoa passa a atuar como um zumbi político, com o qual falha qualquer tipo de lógica ou discussão de fatos. Em vez disso, eles funcionam no nível de slogans, palavras de ordem e gritos de guerra de baixo nível.
Em uma conversa com ele, quase se sente que não se trata de maneira alguma de uma pessoa, mas de slogans e coisas do gênero que se apoderaram dele. Ele está enfeitiçado, cego, maltratado e abusado em seu próprio ser. Tendo assim se tornado uma ferramenta irracional, a pessoa estúpida também será capaz de qualquer mal e ao mesmo tempo incapaz de ver que isso é mau.
Viés Cognitivo
Aqui Bonhoeffer está nos dando a primeira pista para explicar a exótica história acima contada por Oliver Sacks: por estarem concentrados em seu mundo interior e, portanto, distantes do convívio social, os esquizofrênicos estariam imunes à loucura coletiva do conformismo e dos movimentos de enxame cognitivo. Para eles, Ronald Reagan não passaria de um ator canastrão que não conseguiria nem concluir o que fala e muito menos conferir autenticidade às próprias expressões.
Freud acreditava que a mente humana era regida pela lei do menor esforço: busca atalhos mentais pela simples necessidade de economia de energia psíquica. Modernamente, isso é chamado de “tendência e vieses cognitivos” – tendências que podem levar a desvios sistemáticos de lógica e a decisões irracionais.
Esses usos de processamento de informações, ou seja, atalhos mentais (chamados de heurística) são criados pela nossa mente para produzir decisões ou julgamentos e nos ajudar a navegar por este mundo.
Porém, essas tendências podem se transformar em vieses com uma variedade de formas: ruídos mentais, crenças, escalada irracional de compromisso (persistir em uma decisão que gera prejuízo por já ter investido muito nessa decisão) etc.
Entre estes, seguir o rebanho é indiscutivelmente o mais proeminente. Faz até sentido. Quando as informações são escassas e a indecisão predomina, fazer o que os outros estão fazendo é provavelmente o melhor curso de ação. Infelizmente, isso não funciona o tempo todo, podendo trazer resultados catastróficos. Como a História nos mostra repetidas vezes.
Por esse motivo, para Bonhoeffer, lutar contra a estupidez é mais difícil do que contra o mal. Podemos lutar contra o mal. Podemos expô-lo, denunciá-lo. O mal sempre deixa as pessoas inquietas. Como Bonhoeffer observou, “o mal carrega consigo as sementes de sua própria destruição”. Para evitar a malícia intencional, você sempre pode erguer barreiras para impedir sua propagação. Contra a estupidez estamos indefesos.
O estúpido, o canalha e o mal-intencionado
Enquanto a canalhice e a má-intenção têm a ver com falha no caráter individual, a estupidez é muito mais perigosa, por ser um fenômeno coletivo, sócio-psicológico.
O canalha é sempre um covarde, que busca sempre tirar a melhor vantagem pessoal do infortúnio coletivo ou do outro. Quanto à má intencionada, basta denunciá-la, desmascará-la. O canalha e o mal-intencionado estão no campo da imoralidade: necessitam de máscaras, subterfúgios, uma sombra na qual possam se esconder e operar.
Porém, a estupidez se desloca para outro campo: o da amoralidade. Estúpidos são orgulhosos da própria estupidez, porque têm a chancela do grupo, do coletivo. Sabe que não estão sozinhos, e isso já é mais do que suficiente para ele.
Freud já expunha isso no texto “Psicologia de Massas e Análise do Ego”: mais do que a morte, o que o homem mais teme é a solidão. Os indivíduos nas massas permanecem unidos não pelo poder da hipnose do líder, como sugeriam antigos psicólogos como Gustave Le Bon. Mas por “amor a eles”, aos outros que formam a massa ou o grupo.
As redes sociais apenas exponenciaram esse funcionamento interno de cada um de nós desde que abandonamos as savanas da África há 50 mil anos. Só que de forma virtual, como farsa – agora são robôs alt-rightque impulsionam hashtags, criando enxames e vieses cognitivos. E, como sempre, o efeito de rebanho: oferecer aos usuários o atalho mental que desperta a nossa ancestralidade.
Umberto Eco tinha razão ao dizer que a Internet deu voz a uma “legião de imbecis”: as unanimidades virtuais acabaram criando a estupidez orgulhosa de si mesmo. No caso brasileiro, o “tiozão do churrasco”: ele descobriu que suas bravatas, que no passado provocavam vergonha alheia a todos nos encontros familiares, viraram “lacração” nas redes sociais. E que conseguiu eleger Bolsonaro, a melhor tradução política da estupidez orgulhosa de si mesma.
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