Bolsonaro inventou “guerrilha terrorista” em RO para justificar ação da Força Nacional, diz procurador

Raphael Bevilaqua, do MPF de Rondônia, aponta que acusações de terrorismo e atividades de guerrilha são usadas pelos governos federal e estadual para encobrir violações de direitos contra integrantes da Liga dos Camponeses Pobres

Desde a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, em 2019, os integrantes da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), em Rondônia, têm vivido sob um estado permanente de sítio. Na região de Nova Mutum Paraná, em Porto Velho, além das investidas constantes de jagunços e policiais militares, os sem-terra enfrentam a intervenção direta do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados no conflito. Em 07 de maio, durante a inauguração da Ponte do Abunã, que liga a capital do estado ao Acre, o mandatário fez uma ameaça direta ao grupo:

Bolsonaro aproveitou inauguração de ponte em RO para defender tese de “terrorismo”.
(Foto: Anderson Riedel/PR)

— LCP, se prepare! Não vai ficar de graça o que vocês estão fazendo. Não tem espaço aqui para grupo terrorista. Nós temos meios de fazê-los entrar no eixo e respeitar a lei.

Não era a primeira vez que o presidente citava nominalmente o grupo. Dias antes, na abertura da Expozebu, em Uberaba (MG), Bolsonaro qualificou as ações da Liga como “terror no campo“. Em outubro do ano passado, ele já havia postado um vídeo criticando o grupo no Twitter.

Para o procurador da República Raphael Bevilaqua, do Ministério Público Federal (MPF) em Rondônia, foram essas acusações fantasiosas de Bolsonaro que serviram de base para justificar o envio da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) ao estado. “A FNSP foi criada para ser acionada em situações específicas e de maneira pontual, não é o caso do que está acontecendo aqui”, afirma.

Bevilaqua é autor do pedido encaminhado à Procuradoria-Geral da República (PGR) para que o Ministério da Justiça entregasse um plano de ação detalhado ao MPF. “Eles não entregaram quando o pedido foi feito”, diz. “Depois de muita insistência, entregaram um documento genérico, que não justifica a necessidade de uso da força nos conflitos agrários”. Mesmo diante da oposição do MPF e do pedido de apuração sobre a repressão a trabalhadores sem-terra, a FNSP — enviada pelo governo federal em maio pelo prazo inicial de 90 dias — teve sua permanência renovada três vezes, todas pelo prazo de 30 dias.

A FNSP participou de operações ao lado da PM em que são apontadas diversas violações aos direitos humanos. Um exemplo recente é a reintegração de posse nos acampamentos Tiago dos Santos e Ademar Ferreira, que foi tema de reportagem e vídeo do observatório: “Fome, água imprópria, crianças coagidas e assassinatos: as armas da PM contra camponeses em RO“.

LIGA DOS CAMPONESES É ALVO DE LEI PROPOSTA POR SENADOR

A movimentação do governo federal antes do envio das tropas não se limitou ao presidente. Seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), esteve no estado em maio, três semanas após a ida do pai a Porto Velho. Ele é autor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 80/2019, que flexibiliza o princípio da função social da terra, um dos marcos constitucionais que rege a reforma agrária. No início de outubro, pouco antes da última reintegração de posse, realizada em 19 de outubro, o senador voltou a Rondônia, desta vez visitando a área de conflito.

Passagem de Flávio Bolsonaro por Porto Velho foi marcada por provocações a opositores. (Foto: Reprodução)

A visita de Flávio pavimentou a ida do governador Marcos Rocha (PSL) a Brasília, onde se encontrou com o secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, e com o ministro da Justiça Anderson Torres para tratar da LCP. Em setembro de 2020, De Olho nos Ruralistas revelou que o ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) foi o responsável pelo emprego de tropas da FNSP contra acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nos municípios de Prado e Mucuri, no sul da Bahia. À época, o governador Ruy Costa (PT) recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para exigir sua retirada dos agentes, que seria autorizada pelo ministro Edson Fachin.

O fato, no entanto, estabeleceu o precedente para a utilização da Força Nacional em Rondônia — desta vez, com apoio explícito de um governador bolsonarista.

O movimento de criminalização da LCP conta com a participação ativa de outro senador. Conhecido por ter comandado a base governista na CPI da Pandemia, Marcos Rogério (DEM-RO) apresentou em junho um projeto de lei para enquadrar a ocupação de terras por movimentos sociais como “terrorismo”. O parlamentar — que esteve ao lado de Bolsonaro na inauguração da Ponte do Abunã — chegou a afirmar que a proposta tinha como alvo a LCP. “Não podemos confundir, de maneira nenhuma, essas organizações criminosas com movimentos sociais”, afirmou na época. Rogério é dono de 98,65 hectares em uma área de conflitos de terras de Rondônia, o Vale do Jamari.

Segundo o procurador Raphael Bevilaqua, as acusações de “terrorismo” e formação de “guerrilha” tiveram início em 2003, quando autoridades ligadas a fazendeiros locais pressionavam o governo federal para que empregasse o Exército no combate à LCP. Frente à impossibilidade de usar tropas regulares, a FNSP entrou no radar dos ruralistas.

CASOS MOSTRAM RELAÇÃO DE PM COM GRILEIROS

A equipe do De Olho nos Ruralistas esteve durante uma semana nos acampamentos Tiago dos Santos e Ademar Ferreira, onde conversou com dezenas de integrantes da LCP para entender o conflito de terras que assola a região. Para os camponeses, a polícia atua em Rondônia na defesa de interesses de grileiros, como é exemplificado pela própria fazenda alvo da última reintegração de posse, realizada em 19 de outubro.

Uma das últimas edições do De Olho na Resistência, programa semanal do observatório, tratou do tema:

A propriedade, uma área total de 57 mil hectares, pertence à Leme Empreendimentos, uma sociedade entre o fazendeiro Antônio Martins dos Santos, conhecido como Galo Velho e considerado o maior grileiro da Amazônia Ocidental, e seu irmão, o advogado Sebastião Martins dos Santos. Os dois são alvo, desde o ano passado, de uma operação do MPF que investiga a grilagem de terras. Além deles, são investigados um juiz e um servidor federal que, juntos, teriam faturado pelo menos R$ 330 milhões com crimes agrários cometidos entre 2011 e 2015, em Rondônia. Em razão desta investigação, o registro da fazenda alvo da reintegração de posse está bloqueado.

Esta cumplicidade também é marcante em outro caso recente. Preso pela Polícia Federal em 2019, durante a Operação Deforest, Chaules Volban Pozzebon é considerado um dos maiores desmatadores da Amazônia. Ele foi condenado em 2021 a 99 anos de prisão por crimes de organização criminosa e extorsão. O empresário seria dono de, pelo menos, cem madeireiras clandestinas. Junto com ele, foram presos oito policiais militares, quatro deles ainda na ativa. Um deles conseguiu escapar e era considerado foragido. Segundo as investigações, os PMs eram usados para a cobrança de “pedágio”, para o despejo forçado de trabalhadores e ações de pistolagem.

SECRETÁRIO PARTICIPOU DO MASSACRE DE CORUMBIARA

A promiscuidade de agentes públicos e políticos com os grileiros foi um dos motivos para que a LCP rompesse com o MST e buscasse um caminho mais radical. A dissidência teve início logo após o Massacre de Corumbiara, em 1995. Durante a operação na Fazenda Santa Elina morreram 9 camponeses, incluindo uma criança, dois policiais militares e um homem não-identificado. Participaram da ação quase 200 policiais e um bando de pistoleiros contratados por ruralistas. Dados oficiais citavam outros 53 sem-terras feridos e 355 presos por resistência.

O atual secretário de Segurança Pública de Rondônia também teve participação no episódio. Hoje coronel da PM, José Hélio Cysneiro Pachá era tenente na época e participou da operação como comandante da Companhia de Operações Especiais (COE). Ele acabou absolvido, como a maioria dos policiais envolvidos na ação. Foram condenados apenas dois soldados e um capitão, além de dois sem-terra.

Além da violência contra camponeses, o governador Marcos Rocha tem avançado sobre áreas de proteção ambiental. Em maio deste ano, ele sancionou uma lei de autoria do governo, aprovada na Assembleia Legislativa, que retirou 220 mil hectares da Reserva Jaci-Paraná e do Parque Guajará-Mirim, ambos listados entre as dez reservas ecológicas mais desmatadas do país.

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